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Epidemiologia Clínica: Teoria, Metodologia e Controvérsias, Notas de estudo de Epidemiologia

Uma análise crítica da proposta integrativa de epidemiologia clínica, examinando suas dimensões teóricas, metodológicas e as controvérsias que envolveram sua implementação na prática clínica. O texto aborda a relação entre diagnóstico clínico, construção do conhecimento etiológico, metodologia de pesquisa e a tecnificação da prática médica.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Botafogo
Botafogo 🇧🇷

4.5

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A Clínica, a Epidemiologia
e a Epidemiologia Clínica
NAOMAR
DE
ALMEIDA
FILHO *
Neste ensaio, pretendo desenvolver a tese de que o modo como a epide-
miologia constrói o seu objeto de conhecimento, que equivale ao seu modo
produção de saber, é inadequado, se usado sem
mediaçõt~s,
para cons-
tituir o discurso da clínica. Isto um cnfrentamento da proposta da
chamada "epidemiologia clínica" -talvez a mais importante ideologia
científica na área
da
saúde desde a "medicina preventiva"
-,
na tentativa
de organizar
um;a
argumentação que critique a lógica do projeto clínico-
epidemiológico.
Os
manuais da "epidemiologia
clínica"1.2.3
apresentam
as
seguintes
dimensões como características dessa proposta de disciplina integratíva:
a) uma certa teoria do diagnóstico clínico, baseada na avaliação da
vali~
e na confiabilidade dos procedimentos de identíficação de caso;
b)
uma metodologia para a construção do conhecimento etiológico partir
de estratégias observacionais de pesquisa em pequenos grupos; c) uma
metodologia correspondente para estudos de eficácia e efetividade de
procedimentos terapêuticos; d) a proposição de uma "clinimetria", estru-
Ph.D., professor adjunto
do
Departamento de Medicina Preventiva
da
FAMED-UFBA Professor
visitante
do
Departamento de Antropologia da Universidade
da
Califórnia
em
Berkeley. EUA.
Pesquisador
l-A
do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico"-CNPq.
L Fletcher P.H., Fletcher S.W
.•
Wagner
E.,
Clinical Epidemiology -The Essentials. Baltimore,
Williams & Wilkins, 1982.
2.
Saekett D., Haynes
B.,
Tugwell P.,ClinicaIEpidemiology. Boston, Llttle, Brown Co., 1985.
3. Jénicek
M.,
Cléroux
R,
Épidémiologie Clinique. Québec, Edisen Inc., 1985.
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A Clínica, a Epidemiologia

e a Epidemiologia Clínica

NAOMAR DE ALMEIDA FILHO *

Neste ensaio, pretendo desenvolver a tese de que o modo como a epide miologia constrói o seu objeto de conhecimento, que equivale ao seu modo produção de saber, é inadequado, se usado sem mediaçõt~s, para cons tituir o discurso da clínica. Isto um cnfrentamento da proposta da chamada "epidemiologia clínica" - talvez a mais importante ideologia científica na área da saúde desde a "medicina preventiva" -, na tentativa de organizar um;a argumentação que critique a lógica do projeto clínico epidemiológico. Os manuais da "epidemiologia clínica"1.2.3 apresentam as seguintes dimensões como características dessa proposta de disciplina integratíva: a) uma certa teoria do diagnóstico clínico, baseada na avaliação da vali~ e na confiabilidade dos procedimentos de identíficação de caso; b) uma metodologia para a construção do conhecimento etiológico partir de estratégias observacionais de pesquisa em pequenos grupos; c) uma metodologia correspondente para estudos de eficácia e efetividade de procedimentos terapêuticos; d) a proposição de uma "clinimetria", estru

Ph.D., professor adjunto do Departamento de Medicina Preventiva da FAMED-UFBA Professor visitante do Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia em Berkeley. EUA. Pesquisador l-A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico"- CNPq. L Fletcher P.H., Fletcher S.W .• Wagner E., Clinical Epidemiology - The Essentials. Baltimore, Williams & Wilkins, 1982.

  1. Saekett D., Haynes B., Tugwell P.,ClinicaIEpidemiology. Boston, Llttle, Brown Co., 1985.
  2. Jénicek M., Cléroux R, Épidémiologie Clinique. Québec, Edisen Inc., 1985.

36 PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Vo1.3, Número^ 1,^1993

turada com o emprego de modelos probabilísticos de tomada de decisões, para o estabelecimento do prognóstico clínico. Com exceção do esboço de uma certa propedêutica de base quantitativa, denóminada clinimetria,4 aparentemente nada há de novidade em termos de aplicação da metodologia epidemiológica corrente a problemas clíni cos. Apesar da evidente falta de originalidade, trata-se de uma proposta admiravelmente orquestrada. Em termos práticos, grupos de epidemiolo gia clínica têm se organizado em competição com os núcleos de pesquisa epidemiológica, antagonizando-os em praticamente todos os níveis da práxis institucional. Tal "luta ideológica" tem se desenrolado em todas as frentes, desde a formação de recursos humanos (disputando a primazia pelo ensino de conteúdos epidemiológicos nas escolas médicas) até a própria produção de conhecimento (competindo ferozmente por financia mentos de pesquisa), desde o controle das sociedades científicas até o monopólio dos veículos de divulgação. Em termos conceituais, tal competição expressa-se em uma luta aberta pelo arbítrio da cientificidade. Os grupos da Universidade de Yale e da Mcmaster, pioneiros do movimento da epidemiologia clínica,5,6,7 têm sus tentado, em diversas oportunidades, que o "paradigma experimental" deve ser tomado como padrão exclusivo de rigor científico para a pesquisa em saúde. É evidente que tais movimentos articulam-se estreitamente com uma tendência de tecnificação da prática médica, que vem cada vez mais reduzindo-se à aplicação de tecnologias para o reconhecimento e manuseio de quadros patológicos. Nessa direção, a prática clínica tem se pautado quase exclusivamente por um enfoque individualizado e biologicista, com pouca ênfase no desenvolvimento conceituai da medicina e de suas ciên cias básicas. Trata-se de um projeto a-histórico e acrítico, que se defronta com impasses e dilemas próprios, como espero adiante demonstrar.

Inicialmente, pretendo discutir de uma maneira sistematizada os múl tiplos vínculos, empíricos e teóricos, entre a clínica^9 e a epidemiologia,.

  1. Idem.
  2. Feinsléjín A., "Why clinical Epidemiology?" ClinicalResearch 20:821·5,1972.
  3. Feinsteip A., "An additional basic science for clinical medicine, I·Iv." Annals of Internal Medicine 99:393-397,554-560,705-712,843-8848,1983.
  4. Sackett D., Haynes B., Tugwell P., op. cito
  5. Horwitz R.I., "The experimental paradigm and observation studies of cause-effect relationships in clinical medicine".J. Chron Dis 40:91-9, 1987.
  6. Apenas para simplificar, chamaremos genericamente de clínica à clínica médica. Recordemos que há outro tipO de clínica, a psicanalítica, por exemplo, cujo referencial é bastante diverso, senáo oposto, ao da clínica médica.

38 PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Vol.^ 3,^ Número^ 1,^1993

constituição epidemiológico dado que a doentes é produzida, pela abordagem Tanto a quanto a epidemiologi(l teorias produzidas para se afirmarem cientí ficas. A clínic(I, sujeitos humanos, conhecimen tos no campo da patologia. A epidemiologia, no tratamento de grupos humanos, tem utilizado, com sucesso relativo, o saber produzido pelas ciências sociais a fim de subsidiar teorias da sociedade para compreender processos coletivos de saúde-doença.^13 Nesse aspecto, não se encontra realmente uma teoria clínica da doença, tanto quanto não faz nenhum sentido qualquer teoria epidemiológica da sociedade. Metodologicamente, e epidemiologia lugar, servem-se como fontes de modelos hipóteses de pesquisa, epidemiológica são pre, a partir oriundos da observação cI a validade e dos procedimentos clínica têm sido testados por meio da metodologia epidemiológica. Nesse aspecto específico, será sempre instrutivo rever a origem da nosologia e os funda mentos dos exames ditos complementares, no começo da clínica.^14 Desenhos de pesquisa originalmente desenvolvidos para a investigação clínica vêm sendo aperfeiçoados, cada vez mais, pela epidemiologia, no momento em que são ampliados e aplicados em populações. Tais avanços são quase devolvidos à clínica, que com sucesso no configurar uma "metodologia investigação clínica". A história da evolução da epidemiológica realizada por exemplar desse processo mútua, especialmente estudos longitudinais. trole 16 parece exemplo da tendência estratégia de pesquisa concebida no campo epidemiológico que logo tornou-se hegemó nica na investigação clínica etiológica.

Até aqui, mencionei somente alguns pontos de intersecção dos dois campos disciplinares. Gostaria agora de discutir algumas das suas

  1. (^) Society-Se!ected Papers, Nova Press, 1987.

  2. (^) números -Uma introduçiio

  3. (^) Study". J. Chron. Dis, 32:15-27,

A Clínica, a Epidemiologia e a Epidemiologia Clínica 39

contradições potenciais, inicialmente abordando oposições de caráter epistemológico.

Oposições epistemológicas

o que é essencial no raciocínio clínico ao lidar com um problema de saúde-doença? Ou, mais concretamente, qual a atitude objetiva do clínico frente a uma pessoa que o procura com um conjunto de sinais e sintomas?

Sempre que o quadro de sinais/sintomas lhe dá elementos suficientes, ele (ou ela) firma um diagnóstico. Quando o perfil sintomatológico não se mostra suficientemente claro, como ocorre na maioria das vezes, o clínico levanta hipóteses diagnósticas, partindo para a realização de exames ditos complementares. Esses testes têm a finalidade de produzir novos dados que, integrados às outras informações clínicas, serão enquadrados em uma "entidade mórbida" estabelecida ao longo do processo da observação c1ínica. J7^ ,1s Nessa fabricação do conhecimento sobre um caso clínico, muitas vezes o diagnosticador tem que agir de um modo que pode ser considerado "intuitivo". Geralmente, o seu roteiro de trabalho consiste, porém, em estudar os casos particulares empregando formulações gerais previamente definidas (que é a nosografia estabelecida), tratadas como se fossem leis universais. O modo de raciocínio do clínico é, portanto, fundamentalmente dedutivo.19.20. O raciocínio epidemiológico parte da observação de casos ocorridos em uma dada população, agrupa-os segundo séries de variáveis (indivi duais, temporais, geográficas, socioeconômicas, culturais), analisa o que eles têm em 'Comum, estabelece associações (potencialmente, fatores de risco), buscando explicações tipo causalidade para a ocorrência da pato logia. Dessa forma, a partir da observação de casos particulares de um determinado evento de saúde-doença, os epidemiologistas derivam infe rências sobre o que terá ocorrido em outras amostras, grupos ou popula ções e que eventos futuros provavelmente ocorrerão naquelas populações, caso as características e condições observadas sejam mantidas. Portanto, o conhecimento epidemiológico é produzido através de um método predo minantemente indutivo. 22 ,

  1. Foucault M., O nascimento da clínica. São Paulo, Forense, 1979.
  2. Gonçalves R.S., op. cito
    1. Murphy E., The Logic o[Medicine. Baltimore, Johns Hopkins Univ. Press, 1965.
  3. Black DA, The Logic o[ Medicine. Edinburgh, Oliver & Boyd, 1968.
  4. Ledermann E.K., Philosophy and Medicine. Cambridge, Gower, 1986.
  5. Susser M., op. cito

/ A Clínica, a Epidemiologia e a Epidemiologia Clínica 41

miológico (ou complexo de determinantes: a configuração de risco) que incide sobre uma dada população, produzindo um subconjunto de doentes, especificados como tal a partir da perspectiva clínica, O entendimento desse processo tem sido convencionalmente constituído em torno de mo delos explicativos de base clínica, não obstante o enorme esforço que as abordagens chamadas socioepidemiológias têm feito para desenvolver modelos teóricos próprios, De todo modo, pelo menos como pano de fundo, a legitimação científica da ciência epidemiológica tem sido buscada nas ciências matemáticas. Entretanto, os pontos de contradição entre estes dois campos de conhe cimento não se esgotam no nível da conceitualização. As oposições en contradas na esfera dos processos concretos de produçã() de conhecimento, com uma natureza mais restritamente metodológica portanto, podem ser ainda mais marcantes, como veremos a seguir.

Oposições metodológicas

Na sua prática concreta, a clínica tem um compromisso predominante com a intervenção sobre a saúde individual e, como um corolário, com o desenvolvimento de tecnologias efetivas para o apoio às estratégias diag nósticas e terapêuticas. No nível da pesquisa, em última instância, a clínica busca produzir diagnósticos e prognósticos que sejam tratados como evidência científica. Em contrapartida, o .compromisso fundamental da epidemiologia é com a produção de conhecimento em si, um tipo de conhecimento que, apesar das limitações do seu próprio método, busca, no fim de contas, elucidar a determinação do processo saúde-doença em geral.^31 Para isso, a epidemiologia se interessa explicitamente pela descri ção dos padrões de distribuição da ocorrência em massa de doenças em populações. Fornece, ainda, subsídios para o desenvolvimento e o aperfei çoamento de medidas preventivas e práticas de saúde coletiva. Com isso não quero dizer que os clínicos pouco se interessam pelas correlações sociais e históricas dos processos coletivos da saúde-doença, ou que os epidemiologistas nada têm a ver com os processos biológicos individuais. Na verdade, gostaria aqui de propor a existência de éticas opostas nas práticas respectivas. Na clínica, dado o seu compromisso ético primordial com a saúde de cada paciente,32 a incerteza não deve ser

  1. Miettinem O., op. cito
  2. Cassei EJ., uThe conflict between the desire to know and the need to care for the patient". ln: Spicker S (ed.), Organism, Medicine, andMetaphysics. Boston, D. Reidel Publ. Co., 1978, p. 57-72.

42 PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Vol. 3, Número I , 1993

obstáculo para a ação, "Na dúvida, faça alguma coisa" - diz um antigo aforisma clínico. Na epidemiologia, considerando o seu compromisso ético com a busca de um conhecimento positivo ina\cançável, a dúvida incidental inviabiliza proposições afirmativas. Em outras palavras, a pro dução do conhecimento científico não tolera a incerteza; portanto, "na dúvida, não se pode afirmar". O caráter idealista de ambas as éticas, científica e médica, que de modo equivalente as aliena do mundo real da prática, não muda a substância deste argumento, que indica essências em contradição, apontadas para direções radicalmente opostas. Nem o grande esforço de construção de proposições usando um jargão probabilístico, observado em ambos os campos, atenua o antagonismo aqui exposto. Enunciados probabilísticos de fato propiciam matéria adicional para o processo decisório de avaliação da prova científica, seja para o estabelecimento de diagnóstico, prognós tico ou tratamento, seja para a derivação de inferências ou predições. Entretanto, o critério para a validade da evidência científica não é prima riamente a significância estatística, mas um conjunto bastante complexo e compreensivo de operações heurísticas, particulares a cada disciplina científica. No que se refere à avaliação da abordagem clínica, em vez da significância estatística, deve-se procurar estabelecer primeiro a signifi cância clínica de uma dada evidência.^33 A mirada da clínica sobre ° seu objeto, olhar que transforma fenômenos indiferenciados em objeto específico de conhecimento ( ou intervenção), tem para cada caso um caráter particular e subjetivo, restrito, na maioria das vezes, aos seus próprios limites de visão. Num movimento de dedu ção-intuição, o profissional clínico busca apreender a "essência patológi ca" de cada caso em estudo, utilizando métodos diagnósticos complexos e exaustivos. 34 As estratégias modais da pesquisa clínica se caracterizam pelo enfoque particularizado, acentuando o que há de singular no sujeito investigado, com uma aproximação mais bem caracterizada como intensi va-profunda. A clínica tem como pretensão última saber tudo sobre o um (enquanto projeto idealizado, evidentemente). Dada a especificidade de seu objeto - doentes em população - a epidemiologia não pode pretender abordagens "personalizadas" de cada caso. A disciplina é empurrada na direção de critérios universais pela sua própria vocação histórica e epistemológica. Seus desenhos de pesquisa tendem ao geral e à "extensidade", na medida em que procuram a extra

  1. Sackell D., Haynes B., Tugwell P., op. cito
  2. Black D.A., op. cito

44 PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Vol. 3, Número 1, 1993

Por outro lado, a epidemiologia trabalha com populações ou amostras,. condenada à ambição da "lei dos grandes números".38 Por esta pretensão, a produção de dados epidemiológicos normalmente realiza-se em poucas oportunidades de trabalho de campo, exigindo instrumentos capazes de fornecer apenas os dados essenciais para a análise (que, por sua vez, já será pré-dirigida para estabelecer associações previamente admitidas como hipóteses). Nesse processo, a referência fundamental para o dado epidemiológico é sua representatividade perante o conjunto amostral da população. Nos elementos de análise também residem oposições entre os campos disciplinares considerados. A investigação epidemiológica parte de hipó teses previamente levantadas (mesmo que implícitas) e refutáveis. O efeito das variáveis em estudo pode ser controlado no próprio desenho da pesquisa, pela restrição do âmbito da observação, ou na fase de análise de dados, através do emprego de técnicas de ajuste. A principal (mas não a única) fonte de certeza da investigação epidemiológica é a significância estatística,39 também expressa quantitativamente por meio do famigerado índice chamado de "valor p". Tem havido muita discussão sobre o sentido preciso da testagem da significância estatística. 4o,41 Porém, para os propó sitos da presente argumentação, basta admitir que se trata simplesmente de uma medida da confiança do investigador no potencial de inferência dos resultados do estudo, pelo menos da amostra para a população de referência. O raciocínio clínico, por sua vez, parte de hipóteses sucessivas e plausíveis que potencialmente levam a proposições diagnósticas e/ou prognósticas. 42 O controle da investigação é dado a priori pelo próprio desenho de estudo (como no caso dos ensaios clínicos), ou pela estratégia das aproximações sucessivas, presente no do processo terapêutico. As fontes de certeza da clínica são a consistência e a coerência. Um certo resultado de pesquisa terá validade clínica quando puder ser inscrito em uma dada casuística, compondo a homogeneidade de um conjunto estabe lecido de casos similares. Dessa forma, contribuirá para o refinamento de uma "experiência clínica" consistente pela ampliação quantitativa e qua litativa da casuística. Além disso, um resultado clinicamente relevante é

  1. Almeida Filho N., op. cito
  2. Rothman K., Modern Epidemiology. Boston, Little Brown, 1986.
  3. Howson C .• Urbaeh P. , Scientific Reasoning. The Bayesian Approach. La Salle, Open Court Publ.,
  4. Oakes M., StatisticalInference. Chestnut Hill, Epidemiology Resourees Ine., 1990.
  5. Murphy E., op. cito

A Clínica, a Epidemiologia e a Epidemiologia Clínica 45

aquele que se revela coerente com objetos de doença preexistentes, ou seja, que faz sentido dentro dos modelos ontológicos de doença que estão na base de cada abordagem clínica em particular. 43

Em síntese, não obstante as complexas relações dialéticas entre esses campos de conhecimento, como vimos acima, as suas formas privilegiadas de aproximação aos objetos da saúde-doença não podem ser reduzidas uma à outra. A tese subjacente a este ensaio é que débito não significa submis são. A forma como a epidemiologia constrói seu objeto de conhecimento, que equivale ao seu particular modo de produção de conhecimento, não pode ser subsumido pelo discurso clínico. Nem vice-versa: a epidemiolo gia não é "a clínica das populações ", tanto quanto a clínica nunca se tornará a "epidemiologia dos indivíduos". A negação desta impossibili dade original é que parece fundamentar a proposição de uma "epidemio logia clínica".

As críticas da epidemiologia clínica

Alvan Feinstein, talvez o mais competente formulador teórico da epide miologia clínica, em uma interessante provocação publicada em 1988 na prestigiada revista Science, propõe que a metodologia observacional ca racterística da investigação epidemiológica não é capaz de produzir o conhecimento etiológico rigoroso, necessário nos termos desse suposto paradigma para a produção científica em saúde. Feinstein 45 argumenta ainda que, se o critério último de atribuição de causalidade a evidências epidemiológicas consiste na confirmação experimental, não se justifica a realização de estudos de desenho observacional prospectivo ou retrospec tivo, em geral dispendiosos e altamente propensos a resultados inconclu sivos. Este e outros autores 46 , 47 privilegiam os desenhos de pesquisa con trolados para a construção do conhecimento clínico-epidemiológico, em detrimento de estudos de coorte e estudos de caso-controle. Implícita em tal proposta encontra-se a posição de que a epidemiologia seria dispensá

  1. Gonçalves R.B., "Contribuição à Discussão sobre as Relações entre Teoria, Objeto e Método em Epidem io logia". Anais, I Congresso Brasileiro de Epidem io logia, Campin as, 1990, p. 346-361.
  2. Em termos retóricos, trata-se de um escandaloso oxímoro, conforme denunciado por Last (1988) [Last J., Editorial. Journal of Public Health Policy (summer):1988.
  3. Feinstein A., "Scientific Standards in Epidemiologic Studies of the Menace of Daily Life". Science 242:1257-63,1988.
  4. Sackett D., Haynes B., Tugweel P., op. cito
  5. Horwitz R.I., op. cito

A Clíllica, a Epidemiologia e a Epidemiologia Clínica 47

mundo real, a sujeitos históricos, sadios e doentes, e não referidos ao microcosmo asséptico e controlado dos laboratórios. Este é um argumento antigo -levantado na década de 1930 por Theobald Smith^51 para defender a pesquisa médica fora dos ambientes clínicos - porém extremamente atual, merecendo um lugar de destaque neste debate.

Clinimetria: novidade antiga?

Aparentemente, a proposta da clinimetria seria então a única dimensão da epidemiologia clínica que não se configura como uma simples aplicação de técnicas de pesquisa epidemiológica a questões clínicas. A proposta consiste basicamente na adoção de um raciocínio probabilístico, com base em modelos estocásticos, para a tomada de decisões sobre comportamen to de doenças em indivíduos. Em outras palavras, trata-se da substituição dos modelos causais, mecanicistas ou estruturais, característicos do pen samento clínico, por modelos de determinação probabilística, que até então pareciam típicos do raciocínio epidemiológico. Não é nenhuma novidade a passagem direta, ou redução, de um modelo causal para uma estrutura de explicação derivada da aplicação de expectativas aleató rias a eventos observados. Muito pelo contrário, significa talvez a mais primária (e primeira) tentativa de sistematizar o pensamento clínico cm bases inferenciais, fazendo da medicina a ciência humana apli ca da. 52.53, A induç~o já havia sido proposta como método privilegiado do racio CÍnio sistemático da ciência desde o século XVI, com Bacon e Galileu. Posteriormente, defrontou~se com inúmeras dificuldades para a sua apli cação concreta no âmbito da chamada "histôria natural",55 face relativa escassez de regularidades unívocas e absolutas encontradas na observação dos seres vivos. Porém, no momento em que a prática científica passou a adotar as regras dc indução, a filosofia já antccipava críticas cruciais à fundamt:ntação lógica desse método, propondo a existência de um "pro blema da indução".56.

51, Smith T, Parasitism and Disease, Princeton, Princeton Press, 1934, 52, Foucault M" op, cit, 53, Clavreull, A ordem médica, São Paulo, Brasiliense, 1983,

  1. Bench RJ .• '"Health Science, Natural Science. and Clínical Knowledge". TheJournal ofMedicinearul Philosophy 14:147-11';4, 1989. 55. En passant, notem aqui a origem baconiana da noção de "história natural das doenças", tão cara à ideologia medicina preventiva (Arouca 1975).
  2. Salmon W.C., "Lajustificación pragmática de la inducción".ln: Swinburne R (org,) La Justificación dei Razonamielltolnductivu. Madrid, Alianza Editorial. 1976, p, 105-11&.

48 PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Vol. 3, Número 1, 1993

Não obstante, o emprego de ramos aplicados da matemática, como o cálculo, a teoria das probabilidades e a estatística, mostrava-se atraente e adequado para a abordagem sistemática, a descrição precisa e o desenvol vimento analítico dos objetos de conhecimento do campo da biologia, com imediatas repercussões na clínica. Um exemplo histórico e familiar é bastante ilustrativo da questão: descendente de uma família de influentes matemáticos, Daniel Bernoulli (1700-1782) foi um físico, matemático e médico suiço que, como nos contam Lilienfeld. & Lilienfeld (1980), influenciou o aparecimento da "aritmética médica". A principal contribui ção de tão ilustre precursor terá sido a proposta de emprego da recém-nas cida teoria dos jogos de Pascal-Bernoulli (Jacques Bernoulli, seu tio paterno) para o aperfeiçoamento dos métodos diagnósticos e prognósticos da então nascente clínica. Uma das primeiras etapas na constituição da clínica moderna incorpo rou uma séria tentativa de quantificar o processo de tomada de decisões, através do cálculo do que veio a se chamar "grau de certeza". A questão da segurança diagnóstica foi, naquela fase, essencial para o estabelecimen to'd.a clínica como uma "ideologia científica". Conforme Foucault,58 nos primórdios da clínica moderna propunha-se que todo e qualquer diagnós tico ou prognóstico seria uma totalidade divisível em tantas certezas quantas fossem possíveis de ser estabelecidas pela experiência clínica. Trata-se, evidentemente, de uma aplicação bastante ingênua da noção de probabilidades. Porém, é inegável que traz uma confortável concepção cumulativa da tarefa diagnóstica. Cada sinal e sintoma desvendado pelo exame clínico ou pela anamnese acrescentaria mais "graus de certeza" à exploração científica da doença do paciente. Um interessante exemplo do modo como operava esta primitiva "clíni ca probabilística", datado do ano 10 da Revolução Francesa, é assim narrado:

"Um doente que consultara Brulley desejava ser operado de cálculo; a favor da intervenção, duas probabilidades favoráveis: o bom estado da vesícula e o pequeno volume do cálculo; mas, contra elas, quatro pro babilidades desfavoráveis: o doente é sexagenário; é do sexo masculino; tem um temperamento bilioso; está afetado por uma doença de pele. O indivíduo não quis entender essa aritmética simples: não sobreviveu à operação".

  1. Escher R., MethodoJogicaJ Pragmatismo New York, Nova York Univ. Press, 1977.
  2. Foucault M., op. cit, 1979.
  3. Foucault M., op. cit, 1979, p. 118.

50 PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Vol. 3, Número 1, 1993

bilidade de a dado b) como o grau de crença em a que pode ser racional mente justificado pelo nosso conhecimento total e efetivo b. Assim, se interpretarmos a interpretação lógica subjetivamente - isto é, em termos do nosso conhecimento ou ignorância - então p(a,b)^ passará^ a ser, precisamente, o grau a que o nosso conhecimento total efet,ivo b justifica racionalmente um a dúbio ou hipotético."

Nesta perspectiva, a probabilidade objetiva define-se em termos de fre qüência e tendência de eventos em uma seqüência virtual computável, enquanto a probabilidade subjetiva é interpretada no sentido de depen dente do estado de conhecimento. Para o que nos interessa, trata-se de admitir que qualquer uso subjetivo do conceito de probabilidade, tanto no sentido causa lista etiológico quanto para o reconhecimento da correspon dência sinal/sintoma e diagnóstico, não poderá ser legitimado pela mesma lógica fundamental do cálculo matemático das probabilidades objetivas. Em outras palavras, a lógica oriunda da interpretação objetiva da teoria probabilística não será capaz de sustentar a abordagem clinimétrica. Por tanto, a expressão do grau de certeza da clínica segundo os termos da probabilidade objetiva é estranha ao raciocínio clínico, estruturado sobre modelos causais sistêmicos ou mecânicos. Isto ocorre porque, no âmbito da teoria das probabilidades, a aleatorie dade e a independência são axiomas fundamentais. Define-se um evento como probabilístico quando, por sua independência em relação a ocorrên cias prévias ou equivalentes, e daqa a sua regência pelo acaso (o que implica também ausência de desvio, direção ou tendenciosidade), as pro babilidades das suas conseqüências são recuperadas integralmente a cada nova ocorrência. Então, se eu lanço uma moeda, as probabilidades de cara e coroa serão igualmente 0,50; a cada nova jogada, estas probabilidades serão restauradas. Caso consideremos seqüências definidas de jogadas, as probabilidades de repetição serão dependentes dos eventos anteriores, porém tal dependência resulta da decisão de considerar um único lança mento, dois ou uma série finita de lançamentos. Mesmo assim, as pro babilidades das jogadas individuais são rigorosamente as mesmas, torno a repetir, restauradas a cada novo arremesso.

Quando se produz uma série de observações em uma população (o que se constitui na prática típica da pesquisa epidemiológica), as relações entre o evento observado e o processo ou fenômeno que se supõe seu fator são primariamente interpretadas como independentes e aleatórias, regidas exclusivamente pelo acaso. Ou seja, testa-se em primeiro lugar os pressu

  1. Popper K., op. cit., p. 300.

A Clínica, a Epidemiologia e a Epidemiologia Clínica 51

postos de um modelo estocástico abstrato, construído a partir de relações puras, e os nexos encontrados, caso tais supostos sejam satisfeitos pela configuração dos dados produzidos. Quando o modelo de base observa cional se revela desviante em relação ao modelo estocástico original, propõe-se uma estrutura de explicações de natureza determinística, capaz de melhor ajustar a série empírica observada.

Comentário final (sobre pretensões)

A prática concreta dos sujeitos sociais precede a sua produção discursiva, prioritariamente feita de expectativas e desejos investidos sobre objetos idealizados de conhecimento e intervenção. Neste caso, mesmo os discur sos mais eloquentes, atrativos e aparentemente razoáveis mostram-se impotentes perante a lógica interna dos campos científicos e a prática efetiva dos seus intelectuais. Clínicos e epidemiologistas parecem pretender certas realizações que se encontram além do alcance do seu instrumental lógico-racional. Se, por um lado, alegam fazer coisas que, de fato, nunca poderiam fazer, por outro lado têm alcançado o que não parecia ser possível. De todo modo, observo a facilidade (ou leviandade) com que os epidemiologistas asseguram que pensam em termos de causalidade e que produzem um saber sobre causas. Os manuais epidemiológicos falam até mesmo de critérios de atribuição de causalidade. Mas, como vimos, na verdade a prática heurística da epidemiologia enquanto disciplina científica simplesmente não autoriza a construção de enunciados com tal grau de positividade,64,65 na medida em que se ancora em um modo de raciocínio essencialmente probabilístico. No caso específico, por mais que os clínicos valorizem a proposta de uma clinimetria capaz de projetar uma probabilidade objetiva sobre o construto diagnóstico-prognóstico,66 não conseguirão produzir nem operar um saber probabilístico autêntico. Sua prática concreta não possibilita a operação de modelos probabilísticos. Sua prática concreta não possibilita a operação de modelos probabilísticos. No que se refere à luta pela "hegemonia teórica" no campo disciplinar da saúde, acredito que a epidemiologia não é o único (nem mesmo o principal) alvo da epidemiologia clínica. A própria clínica médica, en quanto prática científica peculiar por sua capacidade integrativa e totali

  1. Wallace W., "The Declineand Fali ofCausality". ln: CausalityandScientificExplanation. Ann Arbor, University of Michigan Press, 1974, p. 165-97.
  2. Weed D., op. cito
  3. Jénicek M. e Cléroux R., op. cito

A Clínica, a Epidemiologia e a Epidemiologia Clínica 53

RESUME

Pratique clinique, epidemiology et épidémiologie clinique

Ce texte discute les rapports conceptuels et méthodologiques entre la

pratique cIinique et l'épidémiologie. Cette discussion mene l'auteur à la

conc1usion suivante: le mode de production de la connaissance épidémio logique n'est pas convenahle pour la formation du discours cIinique. Ce texte s'occupe aussi d'une analyse épistémologique de l'épidémio logic clinique ct de la pratique c1inique.