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em sentido reverso, da Irlanda para a Gália: a peregrinação do monge ... comparativo estabelecido pela pesquisa, o qual, como veremos, pôs em relevo.
Tipologia: Exercícios
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650 d.C. Uma comparação entre a Vita Amandi e a Vita Columbani NITERÓI 2010
650 d.C. Uma comparação entre a Vita Amandi e a Vita Columbani Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História da Universi- dade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: História Social. Setor Temático: História Antiga e Medie- val. Orientador: Prof. Dr. EDMAR CHECON DE FREITAS Niterói 2010
A Moacir de Souza e Silva e Maria Mendes dos Santos, com amor e gratidão eternos. A lembrança do apoio e confiança deles foi a principal motivação desta obra.
A Deus, Aos meus mestres, Aos meus pais, À Universidade Federal Fluminense, Ao Professor Doutor Edmar Checon de Freitas, Ao Professor Doutor Renan Frighetto, Ao meu noivo, cuja lealdade se mos- trou presente em todos os momentos deste trabalho.
This paper investigates the Vita Columbani of Jonas from Bobbio and the Vita Amandi , whose author is unknown, establishing a comparison between these texts based on the content analysis’ methodology. The analysis aims to situate the stylistic options of each text in the Irish and Frankish hagiographic writing traditions, which are related to the activities of the Irish monks living on the Mer- ovingian Gaul on the first half of the seventh century. Among these monks the most notorious was Saint Columban, who arrived at Gaul in 590 d.C and soon had close connections with the royal Merovingian family. His familiarity with the aristocratic environment attracted Frankish disciples who later started to preach, found monasteries of the Irish line or to support them, this way opening a new phase in the Frankish monastic history. Saint Amand, one of the main names of this generation, illustrates this trend, and that’s the reason why he became known as the “traveling bishop”. Keywords: Columban, Amand, Ireland, Gaul, Monasticism.
10 aristocracia na primeira metade do século VII – “controverso, sem dúvida, mas santo ainda assim.” 2 Agilberto, o nobre franco ao qual nos referimos acima, foi enterrado em Jouarre, um monastério próximo a Paris que fora fundado por uma das mais in- fluentes famílias a dar suporte ao trabalho de Columbano. Do ponto de vista de Charles-Edward, sua viagem evidencia que os elos entre Gália e Irlanda não haviam sido quebrados até então. O ponto de partida para a construção destes vínculos se deu com a chegada, em território gaulês, de um grupo de doze monges irlandeses conduzidos pelo próprio Columbano, no ano de 590 d. C. A viagem de Agilberto não representa um caso singular e isolado dentro do contexto sócio-cultural franco da primeira metade do século VII. Ao contrá- rio, não foram poucas as pessoas que, naquela época, passaram algum tempo como estudantes na Irlanda. Tais viagens refletem o fato de que muitas famí- lias francas de renome começaram a vivenciar, a partir de 590, uma atmosfera religiosa então dotada de alguns novos traços, oriundos, em boa medida, das idéias e práticas monásticas irlandesas que chegaram ao continente por meio de seus monges. Tal é o contexto imediato do objeto de pesquisa deste traba- lho, porém para fins introdutórios é necessário situá-lo em um quadro ainda mais amplo, a saber, o processo de implantação e consolidação do cristianismo em território franco. A conversão oficial dos invasores germânicos da Gália, Espanha e, pos- teriormente, Itália, ao catolicismo, permitiu à Igreja levar muito adiante a cristia- nização do campo. 3 Os Francos, embora tenham sido os últimos invasores da Gália, foram os que lograram maior êxito. A história de sua conversão tradicio- nalmente se inicia com a conversão de um indivíduo: Clóvis, o rei guerreiro que consolidou boa parte da expansão territorial franca sobre a Gália entre os anos de 481 e 511 d.C. Sabe-se que a tradição de atribuir à conversão de Clóvis o caráter de pedra fundamental do processo de conversão dos Francos remonta ao registro de Gregório de Tours, porém não interessa aqui a discussão sobre o grau em que o cristianismo estava implantado nesta sociedade antes ou de- pois da conversão de Clóvis. Para nosso objetivo basta deixar claro que a con- 2 Ibid. p. 11. 3 HILLGARTH, J. N. (ed). Christianity and paganism, 350-750: the conversion of Western Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1989, p.137.
11 versão deste povo foi um processo bastante gradual, o qual progrediu em dis- tintas velocidades em distintas partes do mundo franco. Deste heterogêneo mundo destacaremos, para nossos propósitos, a região Nordeste da Gália, área em que vivia uma grande proporção do povo franco e em que os proces- sos de migrações e estabelecimentos haviam desestruturado totalmente o ar- cabouço diocesano.^4 Aqui a conversão dos Francos e a reconversão ou con- versão dos Galo-Romanos ainda estavam em pleno curso em meados do sécu- lo VII. De acordo com Edward James, nesta região, embora sejam conhecidos alguns eclesiásticos Galo-Romanos que trabalharam como reorganizadores e talvez missionários, a atividade missionária de bispos parece ter sido reduzida até o século VII; a partir de então, a maior parte desta atuação associa-se ao movimento monástico iniciado por São Columbano, o líder do primeiro grupo de monges irlandeses que desembarcaram em território gaulês.^5 Por esta razão, delimitamos nosso recorte temporal entre o ano de chegada ao continente des- te grupo, em 590 d.C, e o ano de 750 d.C, visto que a partir de 730, aproxima - damente, a Regra de São Bento começou a predominar, inicialmente ao lado da de São Columbano. Pouco tempo depois, porém, a Regra de São Bento as- sumiu o papel principal no cenário monástico da Gália, sendo que o predomínio foi praticamente completo antes do fim do século VIII. 6 A importância do processo de expansão cristã na Gália, a nosso ver, re- side no fato de que aí vem a se estabelecer a primeira monarquia católica do Ocidente, para o sucesso da qual a aliança entre a Igreja e a casa real desem- penhou um papel fundamental. Além disso, a Gália franca converteu-se no novo centro político e econômico do Ocidente, após a desagregação definitiva do Império Romano nessa região.^7 O universo cultural dentro do qual essas transformações se deram esteve profundamente associado à religião cristã, e daí a necessidade de uma melhor compreensão dos sucessos e reveses por ela enfrentados em seu estabelecimento definitivo nessa porção do Ocidente. Naturalmente, uma das formas de se buscar entender como o cristianismo 4 JAMES, Edward. The Franks. Nova York: Basil Blackwell, 1988, p.128. 5 Ibid., p. 135. 6 BROWN, Peter. A ascensão do cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999, p. 128. 7 Cf. LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1995, cap. e 5.
13 zada na Provença, Aquitânia e Burgúndia e eram mais urbanos que rurais. Mas o autor chama atenção para a necessidade de considerar que a dimensão as- sumida pelo monasticismo nas áreas ao Norte da Gália provavelmente foi sub- representada nos registros históricos, posto que as fontes sobreviventes ten- dem a ser menos informativas sobre as regiões Norte e Nordeste do que as de- mais. 9 Sobre este pano de fundo introdutório, o historiador britânico nos alerta para o fato de que Columbano não representou a única figura a trazer novas in- fluências para o monaquismo merovíngio; mesmo em termos de influências ir- landesas sua atuação não significou um monopólio. 10 Entre outros irlandeses vivendo na Francia destacaram-se os irmãos Fursey e Foilan, os quais, em um momento posterior, também estiveram relacionados com importantes famílias nobres, como a de Pepino I. Além disso, Wood observa que, de várias manei - ras, os sucessores francos de Columbano foram mais influentes do que ele próprio. A distinção entre duas tradições monásticas de origem irlandesa – a dos irlandeses na Gália e a de seus discípulos francos – corrobora a tese de que, em lugar de juntar todos os múltiplos elementos presentes na história mo- nástica da Gália no século VII em um único movimento, é mais prudente pen- sar em termos de diversidade de influências. Como conseqüência, é preciso manter em mente que Columbano, embora tenha passado à história como uma das personagens de maior destaque na história monástica da Gália do século VII, não representou a única forma de monaquismo irlandês lá encontrado. Para I. Wood, Columbano sequer teria desempenhado o principal papel na ex- pansão da influência de Luxeuil, já que esta teria ocorrido após sua morte e pe- las mãos de francos, mais do que de irlandeses, e em um momento em que Lu- xeuil já havia modificado a legislação dada por seu fundador.^11 Embora o recorte espacial aqui efetuado privilegie o Nordeste da Gália, é mister observar que a influência irlandesa também foi sentida sobre a Gália meridional. Neste sentido, Michel Sot^12 faz duas importantes considerações, em sentido oposto ao defendido por I. Wood. A primeira delas salienta que, em um 9 WOOD, 1994, p. 185. 10 Ibid., p. 190. 11 Ibid., p. 192. 12 SOT, Michel; BOUDET, Jean-Patrice; GUERREAU-JALABERT, Anita (orgs.). Histoire culturelle de la France. Paris: Éditions du Seuil, 1991. 4v.
14 primeiro momento, o monaquismo columbiano atingiu mais os aristocratas que os eclesiásticos, sendo os jovens aristocratas os que se juntaram aos irlande- ses. Dos grandes nobres saíram os monges ou fundadores de monastérios, como por exemplo Arnulfo, ancestral dos carolíngios, que se tornou padre em Metz em 620 e fundou um monastério columbiano naquela cidade. Através destas personagens, as quais participaram da corte dos reis merovíngios Clotá- rio II e Dagoberto, o espírito columbiano atingiu o sul da Gália, embora em me- nor medida. Michel Sot chega a afirmar que uma certa unificação cultural da Gália se operou pela espiritualidade e monaquismo columbianos, o que não significa, vale ressaltar, que os monastérios fundados pelos discípulos do mo- naquismo trazido por Columbano se restringissem à obediência dos preceitos de tal regra. Em realidade, neste momento, as regras seguidas pelos mosteiros caracterizavam-se pela coexistência de elementos oriundos de regras distintas, algumas anteriores à de Columbano e que ainda floresciam. A própria regra co- lumbiana, inclusive, não era hostil a outras tradições monásticas, e a história do começo do desenvolvimento da regra beneditina esteve intimamente ligada a monastérios influenciados por Luxeuil. O segundo ponto destacado pelo autor se refere ao papel desempenha- do pela primeira geração de monges irlandeses na história cultural gaulesa. Sot observa que a chegada dos mesmos não provocou diretamente uma renova- ção dos estudos clássicos mas uma renovação da consciência religiosa. Entre- tanto, ressalta o autor, na história do cristianismo é de se notar que toda reforma ou renascença religiosa implicou um retorno aos textos e por conseguinte uma grande exigência acerca da qualidade da leitura, da cópia e portanto da escrita. Toda reforma religiosa implica uma renovação dos estudos [...], sendo assim, o monaquismo columbiano teve uma influência decisiva na história cultural da França no século VI e na primeira metade do século VII. 13 Os estudos de Patrick Geary corroboram estas observações. Geary des- taca que os efeitos da influência religiosa irlandesa não se limitaram ao rei, à corte neustriana e à aristocracia do norte da Gália. Nobres do sul, habituados ao ambiente da corte, como Desidério de Cahors, foram afetados, e 13 SOT, 1991, v.1 ( Le Moyen Age ), p. 320.
16 lações entre reis, aristocratas, bispos e santos - já que é especificamente nes- se contexto político que deve ser situada a atuação dos monges irlandeses-; por outro, os contatos estabelecidos entre as casas columbianas e a corte real. Conforme foi dito, para Marcelo Cândido é evidente que as guerras civis benefi- ciaram a aristocracia laica e a aristocracia eclesiástica da Gália, na medida em que esses grupos puderam ampliar sua influência diante das divisões do poder real. Assim, durante a segunda metade do século VI, os grandes do reino te- riam exercido um papel bem mais importante no Regnum Francorum que du- rante os períodos precedentes. Para M. Cândido, as minoridades de Childeber- to II, de Clotário II, de Teuderico II e de Teudeberto II proporcionaram a esses grupos uma experiência ímpar e a prática do exercício do poder nos três regna. Durante a primeira metade do século VI, esse fenômeno teria sido mais raro.^17 Feitas tais considerações, cabe agora definir com precisão o propósito que nos guia. Dado o relevante papel do monaquismo irlandês na Gália mero- víngia da primeira metade do século VII, decidimos estabelecer uma compara- ção entre as hagiografias de Columbano e Amando, homens cuja reputação foi aureolada com o atributo da santidade e que são, respectivamente, marcos da influência dos monges irlandeses na Gália e da expansão deste legado. A op- ção por Amando é justificada tanto por sua trajetória quanto por suas relações: ele fora um nobre franco que, embora nascido na Aquitânia, teve conexões com os discípulos de Columbano e atuou em regiões mais ao norte. A decisão de passar a vida “em exílio”, tomada cedo em sua vida, está diretamente na tradição irlandesa de “peregrinação em nome de Cristo” - uma tradição por ele compreendida, conforme diz seu testamento, como uma missão “por todas as províncias e nações por amor a Cristo” 18. A jornada de Amando pelo Danúbio para evangelizar os eslavos e suas pregações aos bascos ilustram sua convic- ção. A isso são adicionadas as conexões com Roma, evidentes nas duas via- gens de Amando a esta cidade, e com os governantes merovíngios, na medida em que as duas missões remotas de Amando - aos eslavos e aos bascos - diri- giram-se a povos sob a influência (embora não sob o controle) dos francos. Deste modo, nosso objetivo é perceber, nos textos, a existência ou não de ecos da relação cultural estabelecida entre Gália e Irlanda, expressa, sobre- 17 SILVA, 2008, p. 270. 18 HILLGARTH, J. N, op. cit., p. 156.
17 tudo, no meio monástico. Identificar tais possíveis reflexos e relacioná-los com as forças sociais em jogo no período mostra-se, portanto, desejável e pertinen- te. Para tanto, optamos pela adoção da metodologia própria da análise de con- teúdo, em virtude de sua adequação ao trabalho com textos de cunho narrati- vo, definidor, em primeira instância, do chamado gênero hagiográfico. Vê-se, portanto, que é indispensável discutir conceitos como o de santo, santidade, cultura e religiosidade popular, motivo pelo qual reservamos a discussão dos dois primeiros ao terceiro capítulo, dedicado às particularidades e necessida- des da abordagem histórica das hagiografias, ao passo que os últimos iniciam, aqui, a apresentação dos conceitos teórico-metodológicos – bem como do tra- tamento historiográfico que tem sido dispensado aos mesmos - que nortearam a pesquisa.
A discussão sobre os conceitos de religiosidade e cultura popular na Ida- de Média inscreve-se no próprio curso do desenvolvimento de distintas aborda- gens históricas do milênio medieval, sendo parte de um movimento historiográ- fico moderno que defende uma história mais democrática e diversificante. A aproximação entre história e antropologia, defendida pela corrente historiográfi- ca francesa conhecida como Escola dos Annales, gerou uma multiplicação de trabalhos que buscaram revalorizar as manifestações religiosas populares, quer sob a rubrica da história das mentalidades , quer sob a da história cultural. Alguns destes trabalhos foram elaborados de forma claramente séria, outros tem alcance mais duvidoso. De qualquer maneira, um estudioso da cultura me- dieval já não pode, hoje, ignorar a questão muito delicada da religiosidade po - pular, ainda que ela não constitua seu principal objeto de análise. Nesse âmbito, embora a percepção da existência de distintos níveis cul- turais sempre estivesse presente, as divergências se deram – e ainda se dão – no que se refere às relações entre estes níveis. Há abordagens que podem ser definidas pelo foco nas relações de oposição, resistência ou bloqueamento, seja das camadas superiores ou das camadas inferiores da sociedade altome- dieval. Todavia, também destacaram-se muitos autores que optaram pela via da influência mútua entre estes níveis culturais. Passaremos agora à exposição sucinta dos principais argumentos de uma e outra posição, escolhendo para
19 Mais ainda, o autor salienta que nos séculos VII e VIII é possível observar o ideal aristocrático invadir a literatura hagiográfica a ponto de lhe impor um tipo aristocrático de santo. Esta observação será retomada e analisada no capítulo IV desta dissertação, quando formos comparar as hagiografias de Columbano e Amando. É interessante observar que, na busca de analisar a atitude da cultura eclesiástica perante a cultura popular, Le Goff se refere a esta como “cultura folclórica”. Citemos sua definição da mesma: Por cultura folclórica entendo sobretudo a camada profunda da cultura (ou da civilização) tradicional (no sentido de A. Varagnac) subjacente em toda sociedade histórica e, parece-me, aflorando ou prestes a aflorar na desorganização que reinou entre a Antiguidade e a Idade Média. O que torna a identificação e a análise desta camada cultural particularmente delicadas é ela ser recheada de contribuições históricas discordantes pela idade e pela natureza [...]. São, se se quiser, os dois paganismos da época: o das crenças tradicionais de muito longa duração e o da religião oficial greco-romana. 21 Vale ressaltar que não obstante o autor tenha, no texto acima transcrito, estabelecido uma distinção entre o paganismo oficial e as crenças tradicionais cuja origem perdia-se no tempo - ambos ainda presentes e atuantes no univer- so cultural de então, mesmo que não isentos de transformações –, ele admite que os autores cristãos da Baixa Antiguidade e da Alta Idade Média não a ti- nham em mente e pareciam mais preocupados em combater o paganismo ofi- cial do que as velhas superstições, as quais mal distinguiam. Le Goff afirma que houve, sem dúvida, um certo acolhimento deste fol- clore na cultura clerical. Este acolhimento teria sido favorecido por certas “es- truturas mentais” comuns às “duas culturas”, em especial a confusão entre o terrestre e o sobrenatural, o material e o espiritual, possível de ser observada, por exemplo, na atitude perante os milagres e no culto das relíquias. Outra ra - zão seria a tática evangelizadora, já que sua prática reclamava um esforço de adaptação cultural do clero que se manifestou na língua ( sermo rusticus ), no recurso às formas orais (sermões, cantos) e a certos tipos de cerimônias, tais como as procissões, ladainhas e a cultura litúrgica. A cultura eclesiástica, mui- 21 Ibid., p. 212.
20 tas vezes, inseriu-se nos quadros da cultura folclórica, como nos casos da loca- lização das igrejas e oratórios e das funções pagãs transmitidas aos santos. Porém, para o autor, a iniciativa foi a recusa desta cultura folclórica pela cultura eclesiástica, de tal forma que a oposição foi mais fundamental do que os amálgamas e as simbioses. E em que consistia este fosso cultural? De acor- do com o autor, na oposição entre o caráter fundamentalmente ambíguo e equívoco da cultura folclórica, isto é, na crença em forças simultaneamente boas e más, a qual ia de encontro ao “racionalismo” da cultura eclesiástica, herdeira da cultura aristocrática greco-romana. Esta, em contraposição, pressu- punha a separação do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, da magia negra e da magia branca, sendo o maniqueísmo propriamente dito evitado apenas pela onipotência de Deus. Por este motivo, a barragem que a cultura clerical opôs à cultura folclórica provinha não somente de uma hostilidade consciente e deliberada, mas também da incompreensão. Em outras palavras, o fosso que separava a elite eclesiástica da massa rural era sobretudo, para Le Goff, um fosso de ignorância, ainda que “a formação intelectual [daquela elite], origem social e implantação geográfica (quadro urbano, isolamento monástico) a tor- nassem permeável à cultura folclórica” 22. Sob sua perspectiva, então, o que assistimos, no Ocidente da Alta Idade Média, foi mais “um bloqueamento da cultura inferior pela cultura superior, uma estratificação relativamente estanque dos níveis de cultura, do que uma hierar- quização, dotada de órgãos de transmissão que garantam influências uni ou bi- laterais, entre os níveis culturais.” 23 Naturalmente, é possível notar que, embo- ra a tenhamos exposto como símbolo de uma posição historiográfica que con- cede maior peso às relações culturais de oposição, o trabalho de Le Goff não apenas menciona e justifica a inter-relação entre os distintos níveis culturais – por ele denominados “superior” e inferior” -, como também apresenta suas pró- prias ambiguidades e limitações. Ao mesmo tempo em que o autor trata a exis- tência de certos traços culturais comuns a ambos os níveis - a saber, a ausên- cia de uma delimitação precisa entre os mundos terrestre e sobrenatural - como um fator facilitador do acolhimento da “cultura folclórica” pela cultura eclesiástica, ele identifica na oposição entre o caráter ambíguo da cultura fol- 22 LE GOFF, 1993, p. 215. 23 Ibidem.