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Este artigo apresenta como as corporações de ofícios interagiram na colônia portuguesa na américa, com ênfase na realidade social e econômica de rio de janeiro. Ele mostra como essas associações se espalharam em diferentes regiões da colônia e apresentou formas diferenciadas de organização de ofícios mecânicos. O artigo analisa as características que marcaram a presença das corporações de ofícios na sociedade colonial brasileira, dando especial destaque à relação que se estabelecia entre a atuação dessas associações na colônia, a historicidade de sua atuação e a importância social e econômica que assumiram no meio urbano.
Tipologia: Notas de estudo
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Recebido em 15/05/12. Aprovado em 20/07/12.
Mônica de Souza Nunes Martins (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)
Resumo: O artigo apresenta como interagiam as corporações de ofícios na colônia portuguesa na América - com ênfase na realidade social e econômica do Rio de Janeiro -, mostrando como elas proliferaram em diferentes regiões da colônia e apresentando formas diferenciadas de organização dos ofícios mecânicos. Analisando a proeminência da Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa e os aspectos gerais das guildas portuguesas foi possível verificar a forte influência delas sobre as corporações de ofícios na colônia, levando em conta sua considerável atuação política no Brasil até a primeira metade do século XIX. Ressalta-se a ingerência fundamental desempenhada pelas irmandades leigas, tanto nas associações portuguesas quanto em suas congêneres na colônia, destacando-se como importantes instituições na consolidação das relações de trabalho entre mestres e aprendizes, além de fortes canais de interação com a vida política da cidade. Palavras chave : Corporações de Ofícios – Mestres e Aprendizes – Brasil colônia
Abstract: The article presents an overview of the craft guilds in colonial Brazil, showing how they proliferated in various regions by introducing organizational structures that had a deep relationship to the realities of colonial life, with an emphasis on social and economic reality of Rio de Janeiro. Analyzing the prominence of Casa dos vinte e quatro in Lisboan and certain common characteristics of Portuguese guilds, it is possible to verify their strong presence and considerable political influence in Brazil through the first half of the nineteenth century. The article emphasizes the fundamental role performed by these craft brotherhoods, both in the Portuguese guilds and in their colonial offshoots, standing out as important institutions in the consolidation of relations between masters and apprentices, and strong channels of interaction with the political life of city. Key-words : Craft Guilds - Masters and apprentices - Colonial Brazil
Corporações de ofícios e trabalho
Analiso neste artigo as características que marcaram a presença das corporações de ofícios na sociedade colonial brasileira, com enfoque na cidade do Rio de Janeiro, dando especial destaque à relação que se estabelecia entre a atuação dessas associações na colônia, a historicidade de sua atuação e a importância social e econômica que assumiram no meio urbano.
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A organização do trabalho artesanal em ofícios se fez presente desde o início do processo de colonização, incorporando características diferenciadas no ambiente colonial em relação às suas congêneres europeias. As relações entre os ofícios e os elos religiosos com irmandades leigas, as características mutualistas que garantiam proteção aos trabalhadores, as funções econômicas que elas desempenhavam na vida urbana e o papel político junto ao senado da câmara, marcaram algumas das características fundamentais dessas corporações que se mantiveram na vida socioeconômica colonial. Os trabalhadores artesanais estiveram entre os primeiros desembarcados no processo de colonização. Por certo, para levar a frente o empreendimento colonial, fazia-se necessário a presença de artesãos especializados, embora muitos daqueles que acabaram se dedicando a prática dos ofícios mecânicos tenha sido formada e especializada no ofício já no ambiente colonial. O trabalho indígena foi, também, largamente utilizado nas funções artesanais e, mais tarde, apostou-se no ingresso de escravos oriundos da África nestas funções, tanto nas vilas e cidades como dentro das fazendas.^1 Logo se configurou na colônia portuguesa uma organização de ofícios mecânicos similar àquela que marcou a formação para o trabalho mecânico em Portugal, onde os mestres e aprendizes se reconheciam no processo de aprendizado e na formação para determinada atividade artesã junto a compromissos consolidados com uma irmandade leiga ou confraria. A relação entre os oficiais mecânicos e sua respectiva irmandade se configurou na colônia com determinados traços de herança e semelhança em relação às congêneres ibéricas guardando, contudo, profundas diferenças derivadas do peculiar universo da sociedade colonial.^2 Essa primeira forma de associação entre artesãos ligados a uma irmandade leiga foi denominada corporação de ofício, conhecidas na Europa como Guilda. Essas associações cumpriam obrigações relacionadas à atividade profissional do artesão, cuidavam dos aspectos socioeconômicos e mantinham os vínculos religiosos e compromissos com a irmandade do santo protetor do respectivo ofício. Logo, as corporações de ofícios caracterizavam-se como polos de proteção, crédito, previdência e seguridade, além de serem fundamentais no estabelecimento de regras e critérios para a execução do ofício e para a legitimação e aceitação dos produtos nas ruas da cidade. Destaco a importância dessas associações para a formação do trabalho na América portuguesa e para a composição de interesses dos artesãos dos quais elas se
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povo aumentou a importância das corporações junto à vida administrativa dos municípios onde atuavam.^6 Somente no final do século XV começaram a aparecer documentos escritos da vida corporativa, sendo importante ressaltar que no aspecto pedagógico as corporações não deixaram registros escritos de suas técnicas e dos segredos sobre a prática dos ofícios. Nesta época, por todo o velho continente as corporações tinham atingido seu apogeu. Antes do último quartel do século XVI poucas profissões em Lisboa eram regidas por escrito e as mais antigas leis que se conhecem, relacionadas à mestrança, são do reinado de D. João I, tendo sido inseridas nas Ordenações Afonsinas. Foi no século XVI que a organização dos ofícios adquiriu uma forma mais acabada, tanto em sua estrutura quanto nas suas funções, ao mesmo tempo em que a participação dos mestres na vida pública tomava vulto em municípios de todo o país. Do processo até a consolidação da organização dos regimentos, os ofícios desprovidos de estatuto tinham suas normas regidas pelos costumes, atos régios ou pelas posturas municipais.^7 Na segunda metade do século XVI, organizava-se a estrutura jurídica da vida corporativa em Portugal, período a partir do qual as questões a respeito da assembleia dos ofícios e das eleições passavam a ser regulamentadas: estabeleciam-se os critérios para o fornecimento da carta de exame, documento que daria ao mestre a aptidão para o exercício da arte e para o estabelecimento de seu ofício por conta própria, tornando-o apto a formar aprendizes e empregar obreiros em sua loja. De posse da carta de exame, o profissional passava a ser designado como um mestre de tenda. Esta nova estrutura definia com maior exatidão, por exemplo, as distinções entre os oficiais, mestres, obreiros e aprendizes:
oficial é todo aquele que exerce o ofício; oficial examinado o que tem aprovação no exame; mestre de tenda chama-se o oficial examinado com estabelecimento próprio; obreiro ao que trabalha numa tenda de outrem, sob as ordens do mestre, sem ter sido examinado e recebendo salário.^8
Essa organização jurídica dos ofícios estabelecida no século XVI foi a que esteve em vigor até o século XVIII. A partir deste período, as Bandeiras de ofícios adquiriram características mais definidas em Portugal, com uma estruturação padronizada segundo normas jurídicas gerais e determinadas pelo poder régio. A
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iniciativa de reforma da Casa dos vinte e quatro , em especial, foi do juiz do povo Clemente Gonçalves, que dirigiu representação à Câmara a fim de fosse solicitada uma reforma ao rei. Esta teria como finalidade a distribuição das corporações por bandeiras e a organização da representação dos respectivos ofícios na Casa.^9 Cada uma das Bandeiras passaria a ser representada por um padroeiro e tinha a incumbência de organizar os festejos e procissões nas cidades nos dias dos respectivos padroeiros. Charles Boxer mostrou a importância desta representação de artesãos, que se constituiu como importante polo de interesses e núcleo aglutinador de atividades na vida socioeconômica e política portuguesa. O autor mostrou que algumas câmaras municipais tinham uma forma de representação de trabalhadores que se baseava no sistema de corporações, desfrutando de intensa presença política em Portugal. Boxer descreveu que
Os principais oficiais e artesãos (...) elegiam anualmente dentre os membros de sua corporação doze representantes (conhecidos como os Doze do Povo ), no caso da maioria das cidades, e 24, no caso de Lisboa, do Porto e de algumas outras, onde formavam a Casa dos vinte e quatro.^10
Dos doze, quatro eram nomeados, tornando-se conhecidos como procuradores dos mestres, representando os interesses dos artesãos perante o conselho municipal, e com amplo direito a voto nas questões relacionadas à vida econômica urbana. Além disso, destacava-se ainda a figura do Juiz do Povo – membro mais velho dos Doze do Povo – que, como tal, “tinha o direito e o dever de representar os interesses das classes trabalhadores no Senado da Câmara e, no caso de Lisboa, diretamente junto à Coroa”.^11 O Juiz do Povo se destacou como uma figura de fundamental função política nas principais cidades portuguesas, especialmente em Lisboa. Era o presidente da Casa dos vinte e quatro e eleito no senado da câmara, não tendo o seu cargo vínculo por nomeação ou hereditariedade. Escolhido por representação das vinte e quatro guildas que constituíam a Casa ele tinha acesso direto à Coroa, da mesma forma que os ministros do reino. Tornou-se importante articulador e representante político dos ofícios mecânicos e dos interesses das corporações de artesãos, destacando-se em momentos políticos importantes do país e opinando sobre assuntos de interesse econômico, especialmente em âmbito regional.^12
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eles se dividiam em duas espécies de ofícios: os ofícios domésticos comuns e os ofícios mecânicos – alfaiates, sapateiros, pedreiros, barbeiros, ferreiros, torneiros, carpinteiros ou entalhadores, livreiros, encadernadores, agricultores, enfermeiros, cirurgiões, construtores navais e outros. Estes ofícios foram desempenhados inicialmente pelos irmãos da Companhia, padres jesuítas que, com o passar do tempo, preocuparam-se em doutrinar os índios e ensinar-lhes alguma arte.^17 Segundo a descrição de Serafim Leite, em 1570 um grupo de jesuítas teria chegado à América portuguesa desempenhando ofícios próprios: um roupeiro, um tecelão, um pintor, um ourives, um bordador, um marceneiro, um carpinteiro e dois alfaiates e entre os oficiais seculares encontravam-se dois carpinteiros, quatro pastores, três tecelões, um sapateiro, quatro trabalhadores, um telheiro e dois peleiros. Quase um século depois, em 1660, registrou-se o pedido do padre Antônio Vieira para que fossem enviados “Irmãos coadjutores oficiais, principalmente pintores, alfaiates, sapateiros, ferreiros, carpinteiros e pedreiros”.^18 Com o propósito de disciplinar os nativos para o trabalho e doutriná-los foram montados seminários para a formação missionária, responsáveis pela cristianização, pelo ensino e pela formação para o trabalho nas artes e ofícios. Isso ocasionava, por vezes, alguns problemas: depois de aptos para exercerem o ofício, esses índios despertavam o interesse de moradores e governantes locais, que tentavam aliciá-los e acabavam, dessa forma, desorganizando as aldeias. Somente em 1727, o governador do Maranhão determinou que “nas Aldeias de índios houvesse sempre alguns que fossem oficiais ferreiros, tecelões, carpinteiros e oleiros, e que não pudessem ser tirados delas por nenhuma pessoa (...) sem ordem dos padres”.^19 Os ofícios se organizaram atrelados ao aparato colonizador português, visando atender às necessidades da estrutura colonial. Ao ideal doutrinário e cristianizador somava-se a intenção de organizar o trabalho e formar os nativos para os ofícios fundamentais ao estabelecimento desse aparato. A mesma hierarquia dos ofícios existente nas corporações portuguesas foi adaptada para a organização dos ofícios no Brasil colônia: ao longo do aprendizado do ofício os artesãos eram denominados aprendizes ; o artesão que obtinha perfeita preparação técnica era denominado oficial ; aqueles que conduziam e ensinavam os serviços eram chamados mestres. No século XVIII a organização em corporações se apresentou na colônia de forma mais acabada, em consonância com a estruturação jurídica definida em Portugal,
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segundo as Bandeiras de ofícios. Isso ocorreu especialmente em decorrência do enorme fluxo migratório provocado pela descoberta de metais preciosos, que demandou mais serviços, mais produtos e mão de obra. Na colônia, no entanto, essas associações de trabalhadores tiveram características distintas e muito peculiares relacionadas às necessidades locais, pois a sociedade escravista imprimia a essas associações de mestres um caráter distinto das portuguesas. Isto porque a inserção de não brancos e, em alguns casos, de não livres era comum dentro das corporações, ainda que em alguns casos permeado por conflitos. De qualquer modo, guardadas as respectivas diferenças, foi estruturada uma organização dos ofícios mecânicos na colônia bastante similar àquela circunscrita aos municípios lusitanos. O exercício profissional dos mestres era rigorosamente controlado pela câmara municipal, somente autorizado mediante os exames, que ao fim garantiam a carta de exame como prova do exercício liberado ao mestre. A câmara era responsável também pela fiscalização do cumprimento das posturas e do desempenho do ensino pelos mestres, bem como a regularização de suas funções junto à vida religiosa citadina, tais como a participação em procissões e o carregamento da bandeira do santo padroeiro dos ofícios durante as procissões, sob pena de pagarem multa para a câmara e à irmandade da qual fizesse parte o seu ofício.^20 No estudo sobre o Rio de Janeiro setecentista, Nireu Cavalcanti identificou esta organização das corporações em período posterior afirmando que as Bandeiras dos ofícios surgiram no Rio de Janeiro no século XVIII, articulando-se ao Estado através das Câmaras locais. Segundo o autor, cada ofício mecânico tinha sua atividade vinculada a uma irmandade leiga, que controlava o processo de formação dos artesãos, de produção e de comercialização das obras, sendo tudo isso registrado e controlado pelas câmaras municipais.^21 A reorganização das Bandeiras de ofícios em Portugal ao longo do século XVIII levou a um novo ordenamento também das irmandades embandeiradas do Brasil. Nireu Cavalcante identificou a existência de seis Bandeiras de ofícios neste período que se mantinham em funcionamento: Irmandade do Patriarca São José (pedreiros, carpinteiros e outros ofícios anexos), Irmandade do Glorioso Mártir São Jorge (ferreiros, serralheiros e outros ofícios), Irmandade do Senhor Bom Homem (alfaiates), Irmandade do Glorioso Santo Elói (ourives de ouro e prata), Irmandade de São Crispim e São Crispiniano (sapateiros), Irmandade da Gloriosa Virgem Mártir Santa Cecília (músicos).^22
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Mesa da Bandeira e só então poderia exercer a atividade, adquirindo junto ao escrivão do ofício uma carta de exame que o habilitava a exercê-lo. Cada mestre, por sua vez, poderia ter em casa no máximo quatro aprendizes. Os ofícios eram exercidos por artesãos e eram denominados ofícios mecânicos , com exceção dos pintores, escultores, engenheiros e “arquitetos”.^27 As artes mecânicas tiveram uma organização significativa no Rio de Janeiro, desde cedo se organizando em ofícios, com a eleição de juízes da mesa da irmandade correspondente. Foram identificados na cidade, no ano de 1792, dez juízes de ofício.^28 Entre os oficiais examinados e com lojas abertas trabalhando na cidade do Rio de Janeiro, foram identificados 103 para o mesmo ano. Entre as funções mais corriqueiras encontravam-se: dois serralheiros, cinco espingardeiros, sete carpinteiros, oito marceneiros, sete pedreiros, nove barbeiros e sangradores, dois tanoeiros, dois caldeireiros e um funileiro. Entre os marceneiros foram apontados dois oficiais mulatos forros e entre os barbeiros e sangradores apenas dois eram brancos, sendo seis deles escravos e um deles forro.^29 O Almanaque, publicado pelo IHGB, registrou para o mesmo ano a existência de 1037 lojas e oficinas diversas em funcionamento na cidade, sendo 111 de sapateiros, 90 de alfaiates, 35 de marceneiros, 23 de ferreiros, 21 de latoeiros, 18 de tanoeiros, 7 de entalhadores e 7 de caldereiros.^30 Somadas, estas oficinas de ofícios mecânicos abertas na cidade chegavam a 725 lojas. O crescimento das oficinas, especialmente em determinados ofícios, indica a progressiva importância que elas assumiam na vida urbana, especialmente com a alteração do estatuo político do Rio de Janeiro, elevada a condição de capital da colônia em 1763. Nos anos seguintes essa condição rapidamente se alterou e se ampliou, com uma atuação e força política crescente que esses oficiais mecânicos e as bandeiras mais organizadas passaram a exercer na vida urbana.
Características socioeconômicas e prática política nas corporações
A organização política dos artesãos não correspondia de forma tão severa às rígidas hierarquias sociais previstas nas ordenações lusas: a participação política dos mestres e o poder de peticionar demonstram que havia espaços de organização dos oficiais que não se dava apenas de maneira vertical na estrutura social. Embora houvesse o rigoroso controle do poder público sobre essas associações havia também
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um exercício político exercido a partir da representação perante o poder local, de forma a defenderem seus interesses, demonstrado inclusive pela acentuada atuação que os mestres tiveram durante o período colonial e pela atuação de mestres mecânicos junto ao senado da câmara. A estreita fiscalização sobre os mestres e aprendizes era desempenhada pelas irmandades leigas, sob a responsabilidade de bandeiras de ofícios ligadas a determinados santos. Elas eram responsáveis por inspecionar também os juízes e todos os aspectos legais que envolviam a contratação de mão-de-obra, a habilitação e licença dos artesãos para o exercício da atividade. Cobravam joias e mensalidades aos mestres de loja aberta e tinham autoridade para impedir a habilitação dos artífices que não tivessem cumprido suas obrigações junto à irmandade e para punir aqueles que não seguissem as regras estabelecidas pelos compromissos.^31 As irmandades e ordens terceiras^32 exerceram um papel crucial na vida socioeconômica do Rio de Janeiro, constituindo-se como referências para os trabalhadores dos mais diversos ofícios mecânicos. A estreita relação entre religiosidade, relações de trabalho e o lugar social dos indivíduos se entrelaçavam na organização dessa estrutura denominada corporação de ofício , onde a ingerência de irmandades leigas era a essência para uma fina teia que reunia a defesa dos interesses do ofício e dos seus artesãos, as ações de ajuda mútua e empréstimos concedidos aos irmãos, a cobrança de obrigações em relação à irmandade, o controle sobre os deveres do ofício e a obrigatoriedade com o exercício de suas regras. Ao mesmo tempo em que essas tomavam para si a proteção dos irmãos embandeirados, monopolizavam todas as atividades ligadas àquele ofício, agindo no controle, fiscalização e inspeção tanto das atividades dos artesãos como restringindo a atuação daqueles que não estivessem ligados à irmandade, reservando ainda o exercício do ofício aos irmãos. Um caso exemplar da forte atuação em defesa dos interesses dos artesãos assumido pelas irmandades pode ser verificado no caso dos embates em torno do regimento do ofício de 1764, que proibia a venda de sapatos pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Em 1771 e 1772, a Irmandade de São Crispim e São Crispiniano recorreu à justiça a fim de que fosse cumprido o regimento, exigindo ainda a fiscalização sobre o número de aprendizes por mestre. Em 1813, outra representação da mesma irmandade ao rei criticava a venda em praça pública de obras feitas por “cativos, mulheres e
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declínio da atuação dessas organizações no universo colonial. Esse era o embate que se colocava nas ruas de uma cidade como o Rio de Janeiro, onde a população urbana crescia rapidamente junto à oferta de serviços, aumentando também o aparecimento de artesãos não ligados as irmandades. Se aqui elas não tiveram a altivez e a vida longa das bandeiras de ofícios portuguesas, o início do século XIX se mostrou profícuo nas condições para a sua extinção nos dois lados do Atlântico. Por fim, totalizaram no referido abaixo assinado cento e uma assinaturas a favor de que fossem fixados novos editais pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro proibindo a venda de calçados. A permissão da venda de calçados pelas ruas por artesãos que não estivessem ligados à irmandade atentava contra os interesses daqueles que contribuíam regularmente para a entidade, que desempenhavam suas obrigações junto aos irmãos e oficiais, que obedeciam as regras do compromisso e aos costumes do ofício. Significava ainda prejuízo comercial na venda de suas obras, que sofriam por esses anos forte concorrência também dos artigos estrangeiros que entravam na colônia após o decreto de abertura dos portos, assinado em 1808. O forte apelo político desempenhado pela organização dos sapateiros influenciou a ação de outras corporações na defesa de seus interesses comerciais. Em abril de 1813, a Irmandade de São José, dos ofícios de marceneiro e carpinteiro, fazia petição ao rei para que, seguindo o exemplo da proibição da venda de calçados, proibisse também que fossem vendidas as obras de marceneiro pelas ruas da cidade.^37 As corporações desempenhava assim seu papel vital de proteção, auxílio econômico e controle sobre a produção e o comércio das obras pela cidade. A esse controle somava-se um conjunto de delicados interesses comerciais que orientavam a ação dessas irmandades leigas junto aos seus artesãos. A Irmandade de São José chegou a expressar claramente em ofício ao Senado que a venda de obras de marcenaria nas ruas estava sendo um empecilho para as suas atividades e que eles se sentiam “gravemente prejudicados nos seus lucros, e, que é mais, no crédito do seu ofício”. Argumentavam sobre a imperícia e a falta de qualidade das obras “por que muitas pessoas, que tem escravos marceneiros mandam por estes fazer obras do ofício, e depois bem, ou mal trabalhadas as expõe a vendagem publica”.^38 Essa Irmandade obteve do rei a autorização para que ficasse proibida a venda de obras pelas ruas, deixando-se livre apenas a venda de obras que chegassem de fora.
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A proibição aponta a força assumida ainda por determinadas Irmandades do ofício, mesmo que já se encontrassem em franco declínio. Mas indica também que havia uma credibilidade adquirida pelo que era produzido por essas oficinas e por artesãos habilitados e embandeirados, que os respaldava na defesa dos seus interesses junto ao governo. O papel das irmandades era crucial na manutenção das relações entre os trabalhadores de um mesmo ofício, assim como entre estes e a sociedade. Era atribuída à irmandade a confiança necessária, confirmada pelo aval da sociedade dado às obras executadas pelo ofício, bem como a garantia que recebiam do trabalho desempenhado nas corporações. O papel religioso, os valores morais e as obrigações desempenhadas pelas irmandades junto às corporações não significavam a ausência de interesse pelo lucro ou pelo aperfeiçoamento e qualidade das obras do ofício. Em estudo pioneiro sobre as categorias sócio profissionais no Rio de Janeiro no período entre 1820 e 1850, Eulália Lobo mostrou que o aumento paulatino de estabelecimentos comerciais no Brasil e a franca expansão do comércio na cidade do Rio de Janeiro - que já ocorria desde fins do século XVIII – evidenciavam-se pelo aumento das casas de comércio e pela crescente presença de negociantes estrangeiros na cidade.^39 A autora discorre sobre a crescente importância econômica da atividade artesanal no meio urbano, importante fator de suprimento do mercado interno. Tais atividades eram predominantemente controladas pelas corporações de ofícios que pareciam ter, inclusive, um sistema de crédito organizado pelas irmandades. Segundo a autora, “As irmandades funcionavam como bancos, defendiam os interesses das corporações”.^40 Ademais, eram as corporações responsáveis ainda pelo controle dos preços das obras artesanais, impedindo que houvesse concorrência, considerada nociva às atividades comerciais. O estabelecimento dos preços dos produtos foi, por diversas vezes, alvo de conflitos na cidade do Rio. Embora a situação não atine diretamente ao caso dos oficiais mecânicos, um exemplo dos conflitos corridos em torno do estabelecimento de preços pode ser verificado pelos Autos de apelação e agravo dos taverneiros do Rio de Janeiro, em 1796, que reivindicavam sobre os rigores estabelecidos em relação à venda do pão. Sebastião Leonardo Correa, João Vieira Borges e outros vendeiros da cidade escreveram um abaixo-assinado pedindo que o senado remediasse as “vexações que continuadamente lhes fazem os juízes almotacés”.
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Muitas vezes o trabalho nas oficinas se sustentava graças ao conhecimento que os escravos tinham do ofício. Nos casos em que o mestre falecia desenrolavam-se longas discussões acerca do direito de continuidade do ofício e de venda das obras da oficina. Como ocorreu, por exemplo, com Matheus da Cruz Xavier Paragrana, que se casou com uma mulher viúva de um mestre latoeiro. Ela herdava uma loja do ofício, aberta na cidade há treze anos, mas Matheus não era mestre do dito ofício. Contudo, argumentava ao Senado que todos os seus escravos eram do ofício e que “sempre se conservaram no tráfico e trabalho público na mesma loja aberta”.^45 A pendenga se arrastou desde 1815 e há um ofício de permissão do rei para a abertura da tal loja, que data de 20 de junho de 1822, na qual S. A. R. o Príncipe Regente remeteu requerimento ao Senado da Corte pedindo para que fosse conservada aberta a sua loja de latoeiro, “sem embargo de não apresentar carta de exame”.^46 Essas análises nos levam a indagar sobre a atuação dos homens não livres entre os oficiais mecânicos como um fator de constante conflito, que era intensificado quando aumentava a concorrência com produtos estrangeiros e crescia a oferta de mão-de-obra, numa cidade em pleno crescimento demográfico, econômico e de serviços. Os embates entre artesãos “independentes” e aqueles vinculados às irmandades nos mostra as tensões inerentes a uma sociedade com importantes cisões no mundo do trabalho, marcada pela presença da escravidão e por uma forte hierarquização entre os ofícios e irmandades. Mas aponta também para o declínio evidente vivenciado por essas associações que, pouco a pouco, foram perdendo sua expressão política e sua força econômica na vida urbana.^47 As primeiras décadas do século XIX apontariam para rupturas decisivas nessa forma de organização do trabalho, um processo que correspondia ao avanço das ideias liberais na Europa e à implementação de políticas econômicas de caráter liberal em vários países. Essa ruptura foi a marca essencial da defesa do livre comércio; livre, sobretudo, da ingerência das guildas, sem o controle régio sobre a produção, distribuição e estabelecimento de preços. As ideias de Adam Smith pairavam entre intelectuais e na pena de políticos da nascente nação brasileira. Em grande medida baseando-se nestas ideias, as corporações de ofícios no Brasil foram definitivamente proibidas na Constituição de 1824 e tiveram suas práticas gradualmente extintas ao longo das décadas seguintes.^48
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Notas (^1) MATTOSO, Kátia. Ser Escravo no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988. (^2) Sobre a formação dos artesãos em Portugal e Espanha e as características dos artesãos na América colonial ver: JOHNSON, Lyman. “Artisans”, in: HOBERMAN, L.S e SOCOLOW, S.M. Cities and 3^ Society in Colonial Latin America.^ Albuquerque: University of New Mexico Press, 1996. Embora haja amplo debate sobre a origem das corporações de ofícios, não há consenso sobre esta datação. Isso não interfere na análise, no entanto, sobre o percurso e características dessas associações 4 ao longo da Idade Moderna e suas características na sociedade colonial. GONÇALVES, Lopes. “As corporações e as Bandeiras de ofícios”. In: Revista do IHGB. Rio de 5 Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1952, vol. 206/ jan-mar, pp. 171-191. FAZENDA, José Vieira. “Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro, As Bandeiras dos Ofícios”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , 1904, t. 86, v. 140, pp. 152 – 158. Informa que a 6 Casa dos vinte e quatro foi extinta por Decreto, em 31 de maio de 1834. 7 Gonçalves, L.^ Op. cit,^ pp. 179-^180_._ LANGHANS, Franz-Paul_. As corporações de ofícios mecânicos:_ subsídios para a sua história. Lisboa: 8 Imprensa Nacional de Lisboa, 1943, 2 vols. 9 Ibid , pp. XX-XXI. 10 Gonçalves, L. Op. cit , pp. 183-185. BOXER, Charles. O Império Marítimo Português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, 11 pp. 286-288. 12 BOXER, Charles,^ op. cit.^ Ibidem. BERNSTEIN, Harry. O Juiz do Povo de Lisboa e a Independência do Brasil: 1750-1822, ensaio sobre o populismo Luso-brasileiro. In: KEITH, Henry H. e EDWARDS, S. F. (Orgs.) Conflito e continuidade 13^ na socied ade brasileira^ –^ ensaios. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970, pp. 226-265. SERRÃO, Joel. Pequeno dicionário de História de Portugal. Porto: Figueirinhas, 1993. Ver o verbete 14 “Juiz do Povo”, p. 183. FLEXOR, Maria Helena. “Ofícios, manufaturas e comércio”. In: SZMRECSÁNYI, T. (org.) História 15 Econômica do Período Colonial. São Paulo: ABPHE/HUCITEC, 1996, pp. 173-194. Fazenda, José Vieira, op.cit. p. 155. Sobre as artes e ofícios no século XIX, ver: FILHO, Adolfo Morales de los Rios. O Rio de Janeiro Imperial. 2ª^ ed. Rio de Janeiro: Topbooks/ Univer Cidade, 2000. Segundo o autor, “Os juízes e escrivães faziam parte do grupo de personalidades chamadas homens bons , ou bons do povo ; o que quer dizer, de 16 categoria profissional, moral ou soci al”,^ p. 306. 17 Ibid,^ p. 155. Em todos os casos a grafia dos documentos foi atualizada. LEITE, Serafim. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil (1549-1760 ). Lisboa, Rio de Janeiro: Edições 18 Brotéria, Livros de Portugal, 1953, pp. 19-20. 19 Ibid , p. 22. 20 Ibid , pp. 23-25. RABELO, Elizabeth Darwiche. “Ofícios, corporações de”. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). 21^ Dicionário da História da Colonização portuguesa no Brasil. Lisboa e São Paulo: Verbo, 1994, p. 591. CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão 22 francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, pp. 208-209. 23 Ibid , p. 209. 24 Flexor, Ma. H., o p. cit , pp.174-175. 25 Ibid , p. 176. Estudo sobre a composição populacional ao longo do período colonial e uma análise metodológica sobre a utilização de fontes de registros paroquiais e recenseamentos para o levantamento sobre a dinâmica populacional de São Paulo, ver: MARCILIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo : 26 povoamento e população. 1750-1850. São Paulo: Pioneira; Edusp, 1973. 27 Rabello,^ op.cit. , p. 579. 28 Marcilio,^ op.cit ., p. 88. 7,4,4. Artes Mecânicas : Relação geral de todos os juízes dos diferentes ofícios mecânicos existentes nesta Cidade, te ao princípio do prezente anno de 1792. Biblioteca Nacional, Divisão de manuscritos, 29 fls. 2-4v. 30 Idem. Almanaque Histórico da Cidade do Rio de Janeiro para o ano de 1792, in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , vol. 266, jan/mar 1965, pp. 159-217.