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A apropriação cristã da iconografia greco-latina - tema O BOM PASTOR, Trabalhos de Teologia

A estruturação de uma nova religião − o cristianismo − não representou uma ruptura com a cultura e a arte greco-romanas. Contrariamente, verificou-se a apropriação de símbolos e imagens, que vão ser integradas em novos esquemas compositivos e dotadas de um significado distinto em correspondência com os novos princípios doutrinários. Neste quadro tem particular evidência a imagem do Crióforo greco-latino, cujo modelo formal se perpetuou na arte cristã sob a forma do Bom Pastor.

Tipologia: Trabalhos

2020

Compartilhado em 12/03/2020

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MÁTHESIS 14 2005 9-28
A apropriação cristã da iconografia greco-latina:
o tema do Bom Pastor1
Maria de Fátima Eusébio
Ao Prof. Doutor Manuel de Oliveira Pulquério
O “Pastor” que orientou e defendeu
a Faculdade de Letras da UCP
RESUMO
A estruturação de uma nova religião o cristianismo não
representou uma ruptura com a cultura e a arte greco-romanas.
Contrariamente, verificou-se a apropriação de símbolos e imagens,
que vão ser integradas em novos esquemas compositivos e dotadas de
um significado distinto em correspondência com os novos princípios
doutrinários. Neste quadro tem particular evidência a imagem do
Crióforo greco-latino, cujo modelo formal se perpetuou na arte cristã
sob a forma do Bom Pastor.
ABSTRACT
The appearance of a new religion, the christianity, did not
represent a rupture with the greco-roman culture and art. Contrarily, it
was verified the appropriation of symbols and images, that go to be
integrated in new composite plans and endowed with one meaning
distinct in correspondence with the new doctrinal principles. In this
picture the image of the Kriophorus has particular evidence greco-
latin, whose formal model was perpetuated in the christian art under
the form of the Good Shepherd.
1 Texto apresentado nas XV Jornadas de Formação de Professores, de
Homenagem ao Prof. Doutor Manuel de Oliveira Pulquério, Faculdade de Letras da
UCP, 29 e 30 de Abril de 2004
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MÁTHESIS 14 2005 9-

A apropriação cristã da iconografia greco-latina:

o tema do Bom Pastor^1

M aria de F átima E usébio

Ao Prof. Doutor Manuel de Oliveira Pulquério O “Pastor” que orientou e defendeu a Faculdade de Letras da UCP

RESUMO

A estruturação de uma nova religião − o cristianismo − não representou uma ruptura com a cultura e a arte greco-romanas. Contrariamente, verificou-se a apropriação de símbolos e imagens, que vão ser integradas em novos esquemas compositivos e dotadas de um significado distinto em correspondência com os novos princípios doutrinários. Neste quadro tem particular evidência a imagem do Crióforo greco-latino, cujo modelo formal se perpetuou na arte cristã sob a forma do Bom Pastor.

ABSTRACT

The appearance of a new religion, the christianity, did not represent a rupture with the greco-roman culture and art. Contrarily, it was verified the appropriation of symbols and images, that go to be integrated in new composite plans and endowed with one meaning distinct in correspondence with the new doctrinal principles. In this picture the image of the Kriophorus has particular evidence greco- latin, whose formal model was perpetuated in the christian art under the form of the Good Shepherd.

(^1) Texto apresentado nas XV Jornadas de Formação de Professores, de

Homenagem ao Prof. Doutor Manuel de Oliveira Pulquério, Faculdade de Letras da UCP, 29 e 30 de Abril de 2004

10 MARIA DE FÁTIMA EUSÉBIO

No quadro de expansão e afirmação dos seus princípios doutrinários, a religião cristã socorreu-se essencialmente de expedientes orais e, em menor proporção, escritos. Paralelamente, os cristãos desde cedo compreenderam as potencialidades da expressão artística no processo de comunicação com os fiéis, bem como para a sua participação no novo culto, imbuído de caracteres diferenciados e de um espírito específico. Esta emergência e definição da nova linguagem artística, ocorreu num contexto muito particular, marcado pela intersecção de várias orientações:  A cultura judaica^2 que rejeitava as representações figurativas, por as considerar fonte da idolatria que era apanágio das manifestações pagãs.  O alcance e a firmeza da cultura e produção artística greco- latinas, nas quais se encontravam integradas as sociedades cristãs.  O contexto de perseguições e de clandestinidade do cristianismo primitivo, exigindo a adaptação de locais para o culto − as catacumbas e as casas particulares: as domus ecclesiae. Este quadro vai influenciar fortemente a estruturação da nova linguagem plástica. Não obstante a tradição judaica e a oposição ao paganismo, os primitivos cristãos vão adoptar a representação figurativa, para assim facilitarem a comunicação dos princípios que enformavam a nova religião junto de uma sociedade acostumada a visualizar as imagens das divindades do panteão greco-latino. Simultaneamente, presenciou-se a adopção de símbolos pagãos, aos quais foi imputada uma nova leitura. Através deles procurava-se transpor para a imagem mensagens de conteúdo cristão. Contudo, esta tolerância concretizou-se com fortes restrições: foi suprimido o naturalismo e o realismo das representações figurativas, sendo relevado o seu significado alegórico. As imagens foram exauridas da sua dimensão corporal, pois não se destinavam a ser objecto de idolatria, característica do paganismo. Desenvolveu-se, assim, uma linguagem de cariz simbólico, “ uma expressão plástica na qual se procura sintetizar uma ideia ”^3 , através da qual se codificam os princípios e ideais cristãos. Contudo, os fracos recursos económicos da maioria dos cristãos e o contexto de

(^2) A cultura dos povos do Oriente traduzia-se por uma forte aversão ao naturalismo de raízes helénicas, havendo uma clara preferência pela linguagem simbólica. Cf. PLAZAOLA (1999: 5). 3 VIANA (1958: 1).

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As catacumbas^8 eram câmaras subterrâneas construídas no subsolo, onde se efectuava o enterramento dos defuntos. A sua origem é oriental^9 , tendo sido importadas para o Ocidente pelos primeiros fiéis e judeus convertidos no século II, tendo continuado a ser utilizadas até ao século V, transformando-se, após a liberdade do cristianismo, em santuários dos mártires aí sepultados, aonde afluíam muitos peregrinos. Localizavam-se no aro envolvente da cintura das muralhas da cidade de Roma^10 , beneficiando das características geológicas, pois o subsolo calcário facilitava a sua construção. Os cristãos, tomando como referência Cristo, abandonaram o costume pagão da cremação, optando pela inumação que permitia a preservação do corpo necessário à ressurreição. As catacumbas não obedeciam a uma planimetria única. A sua estrutura baseia-se na existência de corredores^11 ( ambulacrum ), cujas paredes são escavadas, formando cavidades alinhadas e sobrepostas para a colocação dos defuntos, fechadas por uma lápide (figs. 1 e 2). Estas galerias desembocam em espaços mais alargados, pequenas salas ( loculi ) onde eram colocados os túmulos dos mártires (inseridos em arcossólios), se sepultavam famílias completas e se realizavam os rituais fúnebres (fig. 3). Na sua origem tinham vocação essencialmente sepulcral, nelas processavam-se os rituais fúnebres e celebravam-se os aniversários dos mártires. Nas fases em que as perseguições eram mais intensas

(^8) Durante o primeiro século os cristãos de Roma eram enterrados em cemitérios

próprios, terrenos particulares, ou nos cemitérios comuns, daí que São Pedro tenha sido enterrado numa necrópole da Colina do Vaticano. A partir da primeira metade do século II recorrem ao subsolo – às catacumbas. Com o Édito de Milão foi possível a construção de locais de culto próprios, mas as catacumbas continuaram a ser utilizadas como cemitérios até ao século V. Com as invasões bárbaras muitas basílicas foram vandalizadas, o que levou os papas a retirarem as relíquias dos mártires e a transpô-las para as igrejas. Ficando abandonadas, as suas entradas foram progressivamente tapadas por terras, pedras e vegetação, pelo que durante a Idade Média se ignorou a sua localização, sendo descobertas no século XVI por António Bosio. 9 Para além das mais conhecidas, que são as de Roma, também existiram catacumbas em outros locais como em Nápoles, na Sicília, em Alexandria, na Grécia, etc. 10 Em redor das muralhas de Roma localizam-se várias catacumbas, das quais destacamos as de Domitilia, as de Via Latina, as de Pedro e Marcelino, as de São Calixto. A sua nomenclatura tem origem no nome de um mártir aí sepultado, ou no nome do proprietário do terreno ou pode estar ligado a vicissitudes ocorridas no âmbito das escavações. Cf. HISTÓRIA DA ARTE (1996: 233). (^11) No caso concreto das Catacumbas de Domitilia esta rede de galerias subterrâneas estende-se por uma área de 15 Km.

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foram também utilizadas para a celebração da eucarística sem levantar suspeitas.

Figs. 1 e 2 - Catacumbas Domitilia, Roma. (retirado de www.catacombe.domitilia.it).

Fig. 3 - Catacumba de São Calisto, sala funerária. (Retirado de www.catacombe.roma.it).

As superfícies parietais das salas funerárias e as lajes que lacravam as sepulturas vão constituir o suporte dos primeiros programas iconográficos representativos da espiritualidade cristã. Símbolos e figuras que marcam a emergência da iconografia cristã, utilizada com objectivos catequéticos e pedagógicos. Neles são codificados os princípios da nova religião que se pretendiam

A APROPRIAÇÃO CRISTÃ DA ICONOGRAFIA GRECO - LATINA 15

Figs. 4 e 5 - Catacumbas Domitilia, Roma. (retirado de www.catacombe.domitilia.it).

A videira, motivo decorativo muito utilizado na cultura clássica associada ao culto do deus do Vinho, é reabilitada pelos cristãos para simbolizar Cristo e os seus fiéis de acordo com a parábola evangélica:

Eu sou a videira verdadeira e o meu Pai é o agricultor. Ele corta todo o ramo que não dá fruto em mim e poda o que dá fruto para que dê mais fruto ainda ”^16_._ “ Eu sou a videira; Vós os ramos. Quem está em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto, pois, sem mim, nada podeis fazer ”^17_._

Simultaneamente, o vinho é a materialização do sangue de Cristo, derramado para salvar os homens. A cruz, que a partir da Idade Média se converte no símbolo máximo, no cristianismo primitivo aparecia disfarçada sob a forma da âncora, do T, da vela de uma embarcação, etc. O tema da crucificação não era objecto de representação, pela conexão directa com o castigo infligido aos delinquentes da sociedade coeva. A pomba com um raminho de oliveira aludia à salvação da alma que descansava na paz divina. Entre as representações humanas destaca-se a presença da figura orante (fig. 6), com as mãos erguidas, exaltando a importância da oração individual e colectiva para a salvação. Foram também encontradas figurações de Adão e Eva e da última Ceia. Simultaneamente, apareciam representações de episódios do Antigo Testamento, expondo narrativas exemplares onde a Fé proporcionava o ultrapassar das dificuldades e conduzia à eternidade. São exemplos cenas como Daniel na Fossa dos Leões, Jonas na Boca da Baleia e os Três Meninos na Fornalha Ardente.

(^16) Jo XV, 1,2. (^17) Jo XV 5.

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Figs. 6 - Catacumbas Domitilia, Roma. (retirado de www.catacombe.domitilia.it).

Verificamos, assim, a presença de um reportório simbólico limitado, repetitivo, que dominou a linguagem plástica cristã até ao século IV. A representação visual da figura de Cristo neste período assumiu essencialmente duas formas: Cristo Filósofo e Cristo Bom Pastor. Uma iconografia que não se relaciona tanto com a componente cristológica, da sua personalidade, mas sim com a sua missão, ele era acima de tudo o Salvador^18. O Cristo Filósofo é figurado como mestre, ladeado pelos seguidores da sua filosofia, normalmente os Apóstolos, ensinando segundo o modelo dos filósofos antigos. Um verdadeiro pedagogo que através da palavra veiculava a autêntica sapiência, a doutrina de Deus. Mas o modelo mais vulgarizado para a representação de Cristo neste período, foi o de Jesus Bom Pastor, mercê da sua profundidade simbólica. Na Antiguidade, tal como nas sociedades primitivas, uma das principais fontes de riqueza era a pastorícia, fonte de alimento e de matéria-prima para a confecção de agasalhos. A relevância desta actividade e a afinidade de funções suscitou a conexão entre o dirigente do povo e a figura do pastor. Tal como o pastor guia as suas ovelhas em busca das melhores pastagens para assegurar o seu alimento e as defende dos ataques dos predadores, também o chefe de

(^18) PLAZAOLA (1999: 15).

18 MARIA DE FÁTIMA EUSÉBIO

Procurarei aquela que se tinha perdido, reconduzirei a que se tinha tresmalhado; cuidarei a que está ferida e tratarei da que está doente. Vigiarei sobre a que está gorda e forte. A todas apascentarei com justiça .”^24

Também no Novo Testamento a imagem de Jesus Pastor assume particular evidência. No seu percurso vivencial Jesus assume o papel de Pastor que reúne, guia e alimenta as suas ovelhas, os fiéis, através da sua palavra. Trata-se de uma protecção ligada a um conhecimento^25_._ Para o compreendermos temos que tomar como referentes “ as qualidades e acção do pastor em favor do seu rebanho, para percebermos a beleza e a profundidade da imagem simbólica de Jesus ”^26 como condutor do seu rebanho. Inúmeras parábolas evangélicas referenciam esta imagem simbólica.

Eu sou o Bom Pastor: Conheço as que são Minhas e elas conhecem- Me, assim como o Pai Me conhece e Eu conheço o Pai; e Eu dou a vida pelas Minhas ovelhas ”.^27

Para explanar plasticamente estas mensagens bíblicas, os artistas do cristianismo primitivo vão-se socorrer de um tipo artístico que se perpetuou na arte greco-romana, um modelo bem conhecido, logo de fácil apreensão: Hermes^28 Crióforo, o Moscóforo^29 (fig. 10) ou Mercúrio Crióforo. Uma adaptação quanto à forma, mas que foi utilizada com um novo conteúdo simbólico.

(^24) Ez. 34, 16. (^25) CHEVALIER (1982: 507). (^26) BÍBLICA (1996: 5). (^27) Jo, 10, 14-15. (^28) Hermes era filho de Zeus e Maia. A sua figura assumiu vários títulos: era o deus da Sabedoria e da prosperidade, o mensageiro dos deuses, o protector dos rebanhos o guia dos viajantes e das almas dos defuntos. (^29) Estátua votiva que representa um homem que sustenta um vitelo sobre os ombros, destinado a ser sacrificado como forma de agradecimento.

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Fig. 7 - Hermes Crióforo, Bronze, c. 520 a.c. Museu de Boston. (Retirado de www.mfa.org./handbook/portrait.asp).

Fig. 8 - Hermes Crióforo, Bronze, c. 520 a.c. Museu de Berlim. ( Retirado de www.mfa.org./handbook/portrait.asp).

De acordo com a descrição de Pausânias^30 , em Tanagra, existiam dois templos consagrados a Hermes, um dos quais com o cognome de Crióforo. Este qualificativo terá tido origem num episódio veiculado pela tradição, segundo o qual Hermes protegeu Tanagra da peste dando uma volta em redor do muro da cidade com um cordeiro às costas, convertendo-se, assim, no deus dos pastores e dos rebanhos, pelo que o escultor Alamis executou a sua imagem com um cordeiro nos ombros^31. Tem assim origem um modelo plástico que se perpetuou na produção artística greco-romana (figs. 7, 8 e 9). Tendo em conta que Hermes Crióforo era representado como jovem^32 , bem como o seu estatuto de mensageiro dos deuses e de guia das almas dos defuntos, podemos aferir que os primitivos cristãos com facilidade estabeleceram as analogias com a personalidade de Cristo,

(^30) Viajante e geógrafo grego do séc. II, autor da Descrição da Grécia , composta em dez livros, onde descreve pormenorizadamente os mais importantes sítios e monumentos da Grécia. (^31) PAUSÂNIAS (9.22.1-2). (^32) No Cristianismo primitivo Cristo aparece representado como jovem imberbe.

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Fig. 11 – Cristo Bom Pastor, Catacumba Domitilia, Roma. (retirado de www.catacombe.domitilia.it).

Para os cristãos primitivos o Bom Pastor converte-se na figura religiosa soberana para sintetizar a ideia da salvação e figurar Jesus como o Messias Salvador. Ele é o condutor e protector das ovelhas, identificadas como sendo os fiéis ou as suas almas, a quem transmite os seus ensinamentos e alumia no caminho para a eternidade. Um conteúdo simbólico que era facilmente descodificado pelos cristãos, o que justifica a importância que este modelo iconográfico alcançou, aparecendo representado na maioria das catacumbas e sarcófagos^34. Existem igualmente alguns epitáfios com este tipo de figura, e aparecia também em medalhões e lucernas da época, objectos móveis que contribuíram para a sua divulgação. As poucas esculturas de vulto^35 que chegaram até nós representam na maioria o Bom Pastor. No Dicionário de Arqueologia Cristã e Liturgia são inventariadas 337 imagens do Bom Pastor^36. Uma presença tão vasta que nos permite inferir que a figura do Bom Pastor no período paleocristão ocupava a posição e importância que na actualidade é consagrada à imagem de Cristo Crucificado.

(^34) Os primeiros sarcófagos cristãos adoptaram a forma e decoração romanas, distinguindo-se apenas pela simbologia das representações. (^35) Na generalidade datam do século IV. (^36) LECLERCQ (1938: 2272 - 2390).

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Fig. 12 – Cristo Bom Pastor, Catacumba de Priscilla, séc. III, Roma.

Fig. 13 – Cristo Bom Pastor, Catacumba dos Santos Pedro e Marcelino, séc. III, Roma.

Fig. 14 – Cristo Bom Pastor, séc. III, Museu Lateranense, Roma. (Retirado de www.catacombe.roma.it).

Após o Édito de Milão, com a liberdade de culto, verificou-se um enriquecimento da iconografia cristã, através da ampliação dos ciclos

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É neste quadro de descoberta da cultura e arte greco-romanas, que se inserem as explorações e estudos científicos relativos aos locais de culto e de enterramento dos primitivos cristãos. Após o Concílio de Trento (1545-1563), o tema do Bom Pastor vai reaparecer, embora sem o alcance que teve no cristianismo primitivo. Esta recuperação iconográfica verifica-se num contexto em que se intensifica a importância atribuída ao conteúdo teológico e ao impacto emocional das imagens. Um período em que se reforça o valor atribuído à iconografia no processo de catequização dos fiéis e de consolidação da Fé, reafirmando-se que “ através da representação plástica e sensível, os fiéis podiam obter uma instrução mais correcta que aquela que lhes era oferecida pelos simples enunciados teóricos da fé ”^40. A iconografia do Bom Pastor foi veiculada por gravuras que circulavam com relativa facilidade, difundindo o tema que vai ser transposto para a escultura e pintura. Um exemplo é o quadro do Bom Pastor da autoria de Frei Carlos, que se encontra no Museu Nacional de Arte Antiga. Não existem estudos de conjunto sobre o impacto que esta iconografia teve na arte cristã ao longo da Época Moderna^41 , pelo que vamos apenas referenciar a sua presença em portas de sacrário dos séculos XVII e XVIII em Portugal. Num sacrário trono que se encontra no Museu de Aveiro, de talha dourada e policromada de estilo barroco nacional, a porta é ornada com a imagem em relevo de Cristo Bom Pastor. Contudo, Cristo aparece com barba e veste uma túnica, sobre a qual recai um amplo manto, ambos estofados e policromados, actualizando-se, assim, o modelo primitivo. Na porta do sacrário da igreja Matriz de Aguiar da Beira repete-se a mesma figuração de Cristo Pastor, com a ovelha sobre os ombros, envergando uma túnica até aos pés.

(^40) MARTINS (1988: 27). (^41) Tornou-se num motivo frequente nos altares espanhóis, franceses e alemães no séc. XVII. Cf. OSSWALD (1996: 79).

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Fig. 15 – Sacrário da capela da Via- Sacra, séc. XVIII, Viseu.

Fig. 16 – Porta do sacrário da capela da Via-Sacra, séc. XVIII, Viseu.

Na porta do sacrário^42 , de estilo barroco joanino, da capela da Via-Sacra, sita em Viseu, (figs. 15 e 16) presenciamos um enriquecimento do conteúdo teológico desta iconografia: “ ao centro, dominando toda a composição, é representada a imagem de Cristo Bom Pastor, vestido com uma túnica castanha, que lhe cobre a quase totalidade dos pés, e um manto vermelho esvoaçante, ambos estofados com motivos dourados. A cabeça é protegida por um chapéu de aba larga revirada, também castanho, e na cintura tem suspenso um bornal. Do lado direito do seu peito, parcialmente a descoberto, sai um jacto de sangue, cuja orientação é sublinhada pela inclinação do rosto de Cristo e pelo posicionamento da sua mão, o qual vai alimentar as ovelhas que o circundam, num total de seis, sendo que todas elas manifestam a acção de comer. Com a mão esquerda Cristo ergue o cajado, com a extremidade superior espalmada, em forma de colher. Na parte superior da porta, do lado direito, encontra-se lavrada uma estrutura arquitectónica muito simples, em forma de dois torreões, que pretende configurar um templo, enquanto no lado oposto se repete a figura de Cristo Pastor, em miniatura, em posição de caminhante, com a mesma túnica e chapéu, transportando uma ovelha aos ombros, que sustenta com as duas mãos, pelo que o bordão se encontra seguro pela faixa que lhe envolve a cintura. A

(^42) A porta apresenta a forma de octógono alongado, o que reforça o seu simbolismo, pois o 8 é o número simbólico da Ressurreição.

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Fig. 17 – Menino Jesus Bom Pastor, marfim, séc. XVII, MNAA. (Retirado de www.matriznet.ipmuseus.pt).

Fig. 18 – Menino Jesus Bom Pastor, marfim, séc. XVII. (Retirado de www.palaciocorreiovelho.com).

Verificamos assim que a emergência da nova religião − o cristianismo − não representou uma ruptura com a cultura e a arte greco-romanas. Contrariamente, verificou-se a apropriação de símbolos e imagens, que vão ser integradas em novos esquemas compositivos e dotadas de um significado distinto em correspondência com os princípios doutrinários que se pretendiam veicular. Neste quadro tem particular evidência a imagem do Crióforo greco-latino, cujo modelo formal se perpetuou na arte cristã sob a forma do Bom Pastor.

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