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Este estudo explora a iconografia funerária atícia dos vasos dos séculos vi e v a.c., com ênfase na música e nos míticos, revelando aspectos de crenças e rituais funerários. A representação de instrumentos musicais em vasos funerários de atenas, entre 510 e 410 a.c., oferece diversas concepções da morte, além de dimensões místicas. A análise da iconografia funerária em contexto histórico permite perceber os intensos conflitos entre a polis e a democracia ateniense, e a instituição familiar.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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artigo são apresentadas sob forma de desenhos, elaborados pelo autor (figuras 1-4, 6-9, 18-19) e por Lidiane Carderaro (figuras 5, 10-17, 20), a quem agradeço. Os desenhos focam a informação iconográfica narrativa, reproduzida de forma simplificada, por meio dos contornos de figuras e objetos, não se atendo a aspectos ornamentais da decoração ou à forma do vaso. ** Universidade Federal de Pelotas. E-mail: fabiovergara@uol. com.br Instituto de Ciências Humanas - Departamento de História. Bolsista Produtividade CNPq em Arqueologia. Bolsista Humboldt Foundation - “Pesquisador Experiente”. RESUMO: Este artigo tem por objetivo estudar a iconogra- fia funerária registrada sobre a cerâmica ática, e, em especial, a produção do que chamamos fase intermediária (510 – 450a.C.), que tem despertado menos atenção dos estudiosos, mais voltados à compreensão do período anterior, dos alabas- tros e lutróforos de figuras negras do século VI, precipuamen- te com cenas de “velório”, ou do período posterior, dos lécitos brancos prolícromos com cena de visita ao túmulo. Aponto que, através de abordagens mitológicas, de Musas, Sereias e Eros, esta fase, que durou de duas a três gerações de pintores, apresenta uma unidade cultural, no sentido da emergência de visões alternativas da morte, ao retirar a atenção dos rituais da pólis e da família. É neste contexto que se destaca a ico- nografia destes personagens mitológicos, cuja ligação com a música determina a sua ligação com a morte. A ambivalência das Sereias corresponde a uma ambiguidade das concepções de morte que lhes eram relacionadas, oscilando entre uma vi- são ctônica, temível, no mundo inferior, e uma visão celestial, de bem-aventurança, num mundo superior. A “pitagorização” da iconografia das Sereias, como musicistas tocando lýra ou aulós , corresponde a uma expectativa mais positiva do além- -túmulo, sob a proteção das divindades musicais. PALAVRAS-CHAVE: Grécia antiga; Morte; Iconografia fu- nerária; Mitologia; Cerâmica. Mythological approaches on the funerary iconography of attic pottery (510 – 450 B.c.): rethinking periodization ABSTRACT: The paper aims to study the funerary iconogra- phy registered on Attic pottery, particularly the production that we call intermediary phase (510 – 450 B.C.), which has
aroused less attention from scholars, who are more interested in the comprehension of the previous period, with the sixth- -century black-figured alabastra and loutrophoroi depicting mainly mourning scenes, or of the subsequent period, with the polychromous white-ground lekythoi portraying visits to the tomb. I point that this phase, which lasted about two or three generations of vase-painters, presents a cultural unity, through mythological approaches with Muses, Sirens and Eros, concerning alternative views of death, by withdrawing attention of the polis and family rituals. In this context, the iconography of these mythological persons, whose connection to music determines its links to death, stands out. The ambi- valence of the Sirens corresponds to an ambiguity of death conceptions related to them, oscillating between a chthonic and frightening vision, bound to the underworld, and a celes- tial vision, of blessedness in a superior world. The “Pithago- rization” of the Sirens iconography, as musicians performing lyra or aulos , matches a more positive expectation of the after- life, under the protection of musical divine entities. KEYWORDS: ancient Greece; death; funerary iconography; mythology; pottery introdução: a iconografia funerária dos vasos áticos eM perspectiva O estudo da iconografia funerária dos vasos áticos, dos séculos VI e V a.C., no que se refere à música, nos permite compreender aspectos tanto das crenças, quanto dos rituais. Nas cenas de próthesis (velório) e ekphorá (cortejo fúnebre) so- bre os vasos áticos de figuras negras, motivos predominantes na iconografia funerária do século VI, o aulós é representado com o intuito de descrever, denotativamente, a prática musi- cal que acompanhava o rito. Trata-se de uma abordagem qua- se realista do ritual. Já nos lécitos de fundo branco, da segunda metade do século V, identificamos uma referência às crenças. Na maior parte desses vasos, a representação do instrumento musical não é alusiva a uma cena real da vida diária – não ao menos de uma perspectiva racionalista moderna. Nesses léci- tos, o personagem que toca um instrumento musical, por via de regra a lýra , não é um ser humano vivo, mas a epifania do
A representação dos instrumentos musicais na iconogra- fia funerária dos lécitos de fundo branco, de figuras negras ou policromados, produzidos em Atenas por um século, entre 510 e 410 a.C., revela ademais uma diversidade de concepções da morte, abrangendo, além da heroização do morto, dimen- sões místicas que abrem caminhos alternativos à concepção mais comum da morte, àquela vinculada ao reinado de Hades. Entre estes, destacam-se a morte tranquila sob os auspícios das Musas, em que a imagem de uma morte feliz se associa à música que assegura lugar na imortalidade, ou a ambiguidade gerada pelo canto das Sereias, que desperta sentimentos ao mesmo tempo de serenidade e temor, ou ainda o desfrute do banquete eterno entre os bem-aventurados (CERQUEIRA, 2013, p. 143-172). A iconologia destes vasos aponta que, na perspectiva rea- lista, de representação denotativa das práticas rituais, o aulós é o instrumento do culto funerário, ao passo que, na perspec- tiva idealista e mística, a lýra é o instrumento que caracteriza a vida dadivosa das almas eleitas no além-túmulo. A lýra ao mesmo tempo carrega consigo um magma de significações imaginárias tecido por crenças que vão das Musas às Sereias, do orfismo à astronomia. Por exemplo, numa série específi- ca de vasos, produzidos sobretudo pelo Pintor de Aquiles, a phórminx adquire importância na imagética funerária, como símbolo da proteção das Musas após a morte (CERQUEIRA, 2011, p. 193). (Figura 2). Figura 2. Havana, Museu Nacional de Bellas Artes,
A história do culto funerário em Atenas nos ajuda a compreender as modificações do tratamento iconográfico da morte, constituindo material privilegiado para o estudo das relações entre o mundo privado e o mundo público, entre a família e a pólis. A iconografia repercute as medidas legais de controle público sobre o culto funerário. A interface, entre a análise das séries de iconografia funerária dos séculos VI e V e a compreensão do contexto histórico, nos permite perceber o quanto o tratamento social da morte foi uma frente de in- tensos conflitos entre, de um lado, a pólis e a nascente demo- cracia ateniense, e, de outro, a instituição familiar, portadora de valores tradicionais, muitos deles ancorados na ordem da genḗ. De modo geral, a atitude diante da morte traduz a pre- valência, entre os sentimentos familiares, de valores de prove- niência aristocrática, mesmo no seio da Atenas democrática, pois, entre as práticas e crenças, destaca-se a proeminência do sentido de heroização do morto. E estes valores entram em choque com a ideologia do novo regime políade, que avança a partir das reformas de Clístenes (Cícero, Leis 2.23.54-60), mas que já se anunciava desde as reformas solonianas. Por esta razão, as restrições ao culto funerário andavam em Ate- nas de mãos dadas com a democracia (CERQUEIRA, 2012, p. 141). Assim, na segunda metade do séc. VI, averiguamos uma substituição temática: as cenas de ekphorá cederam progressi- vamente lugar às representações de próthesis , tema fartamente retratado na cerâmica de figuras negras da virada do século VI para o V, principalmente sobre lutróforos, alabastros e léci- tos (SHAPIRO, 1991). Essa mudança reflete, num primeiro momento, o efeito das leis atribuídas pela tradição a Sólon, que restringiriam a demonstração pública exacerbada do luxo e do sofrimento feminino (Plutarco, Vida de Sólon 21.4-5): os pintores evitaram representar o ritual público, o cortejo, e passaram a privilegiar o evento doméstico, a exposição do morto, na qual o controle público sobre os sentimentos fami- liares era ineficiente. Enquanto o corpo era velado, parentes e amigos lamentavam a perda do ser amado, aproveitando para fazerem sua última saudação. Muitas mulheres expressavam sua dor puxando os cabelos, batendo as mãos na cabeça e no peito (Figura 3). Era visto como necessário prantear o morto, motivo pelo qual era quase indispensável a presença das car-
simbolicamente o espaço da família e da mulher nos funerais, optando predominantemente pela alusão às homenagens ao morto, majoritariamente cumpridas por mulheres (Figura 4). Figura 4. Atenas, Museu Nacional, 1957. Lécito. Fundo branco. Pintor do Quadrado (The Quadrate Painter) (ARV^2 1239/56). ca. 420-10. Fonte: CVA Atenas 1 (Grécia 1) III J d, 11.7, 13.4-6. Cerqueira, cat.
políticos no seio da democracia ateniense, como nos sugere a tragédia sofocliana Antígona (441 a.C.), contemporânea à produção de lécitos brancos. periodizações e classificações da iconografia funerária dos vasos áticos Redefinindo a periodização A iconografia funerária sobre a cerâmica ática divide-se, conforme estudos consolidados, em dois grandes momentos. A primeira fase desenvolve-se entre a segunda metade do sé- culo VI e os primeiros anos do século V. A segunda firma-se entre o final da primeira metade e o final da segunda metade do século V. A primeira tem como suporte os vasos de figu- ras negras, com predomínio dos lutróforos, bem como, num segundo plano, de alabastros e lécitos_._ A segunda vincula-se a uma forma e técnica específicas, os lécitos de fundo branco policromados, produzidos de forma expressa para fins funerá- rios (CERQUEIRA, 2011, p. 191-92). Na primeira fase se representavam precipuamente cenas de velório e cortejo fúnebre, com preponderância das primei- ras, principalmente no final do período. Os vasos do Pintor de Safo ilustram este forte interesse pelas cenas de prantear o morto no ritual doméstico. Na segunda fase, entre outras temáticas funerárias, prevalecem as cenas de visita ao túmulo, por parte de familiares, representando-se o espírito do morto junto à estela funerária, muitas vezes associado a uma lýra. É tentador se pensar que a segunda fase inicia no vin- tênio de 470 a 450, pela ocorrência dos primeiros lécitos de fundo branco, de temáticas algo místicas e variadas, em que se destaca, no final deste período, a produção do Pintor de Aqui- les. Neste período, a combinação entre a forma do lécito e a técnica do fundo branco (conhecida desde o último quartel do século VI) (Figura 5) apresenta-se, ao poucos, como uma alternativa para suporte de iconografia funerária. Podemos pensar que seja uma época de experimentação na iconografia vascular funerária: experimentação quanto à forma do vaso e quanto às técnicas de pintura, seja do fundo, com esmal- te branco, seja das figuras, com policromia; experimentação também quanto aos enfoques narrativos de simbolização da morte, entre enfoques ritualísticos e enfoques mitológicos.
de experimentação, mais aberto, que nos permite vislumbrar uma diversidade de concepções e valores da morte. Nessas primeiras décadas do século V, a abordagem fu- nerária era feita de forma extremamente metafórica, evitando- -se representações de cenas com referências rituais, a meu ver manifestando o desagrado das famílias consumidoras destes vasos, com relação ao processo de apropriação pelo Estado da simbologia do culto funerário. Vagas insinuações simbólicas, sugeridas por meio da figura de um Eros noturno ou de mu- lheres tocando bárbitos , alternavam-se com insinuações me- nos vagas, como Musas e Sereias, entidades que se vinculam ao mundo fúnebre por meio de seus dotes musicais, ou ainda alusões aos banquetes dos bem-aventurados no mundo dos mortos. Foi somente a partir de aproximadamente 460, esten- dendo-se até a última década do século V, que se consolidou a fase dos lécitos policromados de fundo branco com home- nagem à tumba. Ao longo deste período, três gerações de pintores de vasos áticos se especializaram em representar ce- nas funerárias com uma linguagem própria. Trata-se de uma iconografia completamente distinta daquela encontrada sobre os vasos de figuras negras. Estes vasos trazem cenas eivadas de sentimentos íntimos de luto, mostrando ao mesmo tempo uma visão popular e mística da morte, e elegendo situações da vida familiar para representar os ritos funerários. O ritual não está de todo ausente, mas difere dos modelos da primeira fase, dos vasos de figuras negras: sendo raras as cenas de pró- thesis , o tema predominante são as cenas de visita à tumba, com referência às homenagens prestadas ao morto, que deve- riam ocorrer em datas específicas, como as tríta , as énata ou as Genésias.^9 O tratamento iconográfico dessas cenas, entre 460 e 410, respeita uma perspectiva ao mesmo tempo mística e idealista: de um lado, traz à tona crenças sobre a morte; de outro, e de forma interligada a essas crenças, idealiza o morto, apresen- tando uma imagem juvenilizada, heroizando-o, por exemplo, através da música. Essa heroização do morto insere-se den- tro de uma demanda psicológica dos vivos de significarem a morte e o afastamento do ser querido, e ao mesmo tempo de se tranquilizarem diante do fatal destino de todos os vivos, o Hades (CERQUEIRA, 2011, p. 191-92).
Face o exposto acima, propomos redefinir a periodização da iconografia funerária sobre a cerâmica ática, entre o perío- do tardo-arcaico e o clássico, em três fases, estimando, para cada uma, a duração de seis décadas (entre duas e três gerações de pintores): 1ª Fase: Entre 550 e 490 a.C. – Técnica: Figuras negras – Ca- racterística geral: Predominam cenas de ekphorá (tema herda- do do subgeométrico, mais expressivo no início desta fase) e próthesis (tema que se torna predominante no final do século VI e início do século V) – Formas: lutróforos, lécitos e ala- bastros. 2ª Fase: Entre 510 e 450 a.C. – Técnicas: Final das figuras ne- gras, figuras vermelhas e início de fundo branco policromado. Destaque às figuras negras com fundo branco. – Característica geral: fase intermediária, de experimentação, quanto às formas, técnicas de pintura e temáticas, com abertura para enfoques alternativos sobre a morte, com preferência por abordagens mitológicas. Formas: variadas, porém com uso predominante do lécito, seja com figuras negras sobre fundo vermelho, com figuras vermelhas sobre verniz negro, ou, em particular, com figuras negras sobre fundo branco, e, ainda, o início das figuras policromadas sobre fundo branco. 3ª Fase: Entre 460 e 410 a.C. – Técnica: Fundo branco com pintura policromada. Característica geral: as visitas à tumba, com representação heroizada do morto, são as cenas típicas, porém, alguns temas mitológicos são recorrentes, sobretudo li- gados a Caronte, Thánatos e Hypnos. Forma: lécito funerário. Classificação temática da iconografia funerária dos léci- tos de fundo branco e sua relação com as fases de sua perio- dização. Conforme Alan Shapiro, o conjunto de lécitos brancos divide-se em quatro séries quanto à iconografia, seguindo, em todos os casos, a tendência dos pintores clássicos de represen- tarem cenas de uma intimidade calma, mesmo nas abordagens mitológicas (SHAPIRO, 1991, p. 649-52): 1) Cenas de próthesis : Série iconográfica numericamente reduzida, mas original pela forma de retrabalhar um tema tradicional das gerações de pintores de figuras negras. En-
Figura 6. Lécito. Fundo branco. Pintor de Aquiles (ARV^2 995/124). Havana, Museu Nacional de Bellas Artes, 199. Pouco posterior a 450. Fonte: Olmos, 1993, p. 214-17, nº 100. Cerqueira, 2001, cat. 508. Descrição: Homenagem à tumba (?). Duas mulheres homenageiam o morto presenteando-o com objetos votivos: uma lýra e uma fita. A re- presentação da sepultura foi subtraída. 4) Visita dos familiares à tumba: Trata-se da série icono- gráfica mais característica dos lécitos funerários de fundo branco, expressão par excellence da cultura material fune- rária da segunda metade do século V. O desenvolvimento dessa série coincide com o chamado “século de Péricles” e a Guerra do Peloponeso, período de apogeu do dito império ateniense, seguido pela tragédia da peste e por momentos de profunda crise interna, que em certas circunstâncias his- tóricas abalaram inclusive a credibilidade das instituições democráticas. Esta séria revela a preocupação com o cuida- do com as tumbas, o que não era estimulado pela legislação do regime democrático ateniense. As visitam começavam depois do término dos funerais e continuavam indefini- damente, sendo responsabilidade sobretudo das mulheres da família. As cenas de visitas podem se referir aos rituais de oferenda e homenagem aos falecidos, que deviam ser
realizados durante ta tríta , ta énata e durante a celebração anual aos mortos. A representação desses ocorre porém de forma bastante idealizada, de modo que não apresentam uma cena que deva ser lida de forma literal, como descri- ção factual desses eventos, como comprova a representação das estelas funerárias nessas visitas à tumba: além de não existirem até aproximadamente 430-20 a.C., quando elas reaparecem, a arqueologia revela que sua forma era distinta daquela que aparece nos lécitos (SHAPIRO, 1991, p. 107- 115; CERQUEIRA, 2013, p. 145-158). Sobre a 2ª Fase da iconografia funerária nos vasos áticos Destarte, parece-nos adequado valorizar a segunda fase da iconografia funerária vascular ática. Cabe não só compreendê- -la como um período intermediário, entre os dois grandes mo- mentos da iconografia funerária ática. Na condição de uma fase de experimentação, até estabelecer-se o padrão consolidado da iconografia dos lécitos policromados de fundo branco, o que ocorreu na segunda metade do século V, esta fase média cerziu sua originalidade, sua linguagem própria de como representar os anseios relativos à morte, face às conjunturas históricas do tratamento político, legal e institucional conferido à morte e aos mortos por conta da ascendente democracia ateniense, fortale- cida pelas conquistas obtidas nas Guerras Pérsicas. O traço de originalidade deste momento situa-se no grande investimento em abordagens extraídas do fundo mitológico. Conforme a classificação de Shapiro, da iconografia dos lécitos brancos polícromos, exposta acima, as escolhas temáticas dos pintores de vaso desta fase intermediária, a segunda fase, dão início à série que ele denomina ‘abordagem mitológica da morte’, em que se destacaram, na segunda metade do século V, representações com Caronte, Thánatos e Hypnos. Julgamos en- tão relevante apontar que esta série mitológica se desenvolve, de forma contínua, ao longo da segunda e terceira fases da icono- grafia funerária em estudo. Consoante Shapiro, ‘é característico dos lécitos brancos, feitos para uso estritamente privado, como oferendas ao morto por parte dos parentes mais próximos, que eles portassem estes temas que nunca ocorriam em monumen- tos expostos publicamente’.^14 Esta característica me parece cen- tral para se compreender a antropologia – funerária e política
intermediária (510 - 450 a.C.), por entender que compõem uma unidade cultural e temporal na iconografia ática, poden- do-se extrapolar para períodos anteriores ou posteriores a este recorte, por necessidade de análise. Série iconográfica de Musas, em contexto e significação funerária Quando o pintor de vaso deseja se reportar de forma im- plícita a crenças em que as Musas exercem um papel no além- -túmulo, uma alternativa iconográfica é substituir a lýra pela phórminx. Em nosso levantamento, localizamos dois exemplos em que o morto está sentado diante de sua estela, tocando a phórminx. Em ambos, ele está sentado sobre uma cadeira, um díphros ou klismós , com o pé descansando sobre um degrau da base da estela. O ato musical difere: no lécito de Hava- na (Figura 2 - detalhe), ele está tocando a phórminx , olhando para seu instrumento, de forma introspectiva e melancólica; no vaso de Paris^15 , ele está afinando seu instrumento. Detalhe figura 2
Para compreendermos estas cenas, devemos inseri-las num contexto mais amplo de vasos de fundo branco – não somente de lécitos, mas também de recipientes como pratos e pixídes – com representações de mulheres tocando phórminx , vasos produzidos por duas mãos, pelo Pintor de Aquiles (Fi- gura 8 e 9) e pelo Pintor de Hesíodo (Figura 7). O Pintor de Hesíodo era especializado em cenas mitológicas. No entanto, seguindo a tendência de representação do universo feminino, gostava também de fazer variações de uma mesma cena, ora com um tratamento mitológico (Musas), ora com um tra- tamento humano (mulheres no gineceu). Um de seus vasos mais conhecidos é a pýxis Boston 98.887, com a representação das Musas e de um poeta (Hesíodo ou Arquíloco).^16 Nesse vaso de Boston, a imagem de uma Musa tocando phórminx se destaca. No prato Paris CA 483, ele representa uma mulher, de pé, tocando phórminx , próxima a uma planta que sugere o espaço natural, sugerindo o contexto geográfico mítico do Hélikon. Na variação dessa mesma peça, o prato branco po- licromado Paris CA 482 (Figura 7), esse pintor optou pela contrapartida humana da cena divina: ao invés de uma Musa, ele representou uma mulher, no gineceu, sentada sobre um díphros , entre um espelho e um stéphanos suspensos na pare- de, afinando uma phórminx , tomando como base outra que, afinada, descansa sobre sua perna.^17 A phórminx é o traço de união que estabelece o paralelismo entre a Musa no Hélikon e a mulher no gineceu. Como vimos anteriormente, a associa- ção da mulher à phórminx acarreta uma assimilação simbólica dela ao campo das Musas. Essa relação, presente nos vasos de fundo branco do Pintor de Hesíodo no segundo quartel do séc. V, será retomada e enfatizada por um pintor do terceiro quartel do século, o Pintor de Aquiles, que tinha interesse especial pela representação da phórminx nos lécitos brancos.
Num outro contexto, a combinação entre um sentido funerário e a cena de gineceu já foi convenientemente explica- da por Shapiro como preparativo para visita ao túmulo (Figu- ra 6). Naquele caso, a referência às oferendas permitiam essa interpretação. No lécito de Oxford, no entanto, afora o espe- lho, tanto a figura do centro como as demais se ocupam com a música: uma toca phórminx , enquanto as outras duas trazem uma lýra. Apesar do contexto de gineceu, temos uma cena fu- nerária, sendo plausível identificar a mulher com a phórminx como a falecida homenageada e heroizada, ao ser assimilada a uma Musa (BUNDRICK, 2000, p. 54-6). A mulher tocando phórminx funciona, nesse caso, como uma heroização da mu- lher bem-nascida na morte, de forma equivalente à imagem do morto heroificado como um jovem tocando lýra. A representação do morto ou morta com a phórminx carrega ainda outra conotação, fundamental no conjunto de crenças sobre o além-túmulo: a phórminx indica que o morto ou morta estará sob a proteção das Musas. Num outro lécito do Pintor de Aquiles, conservado em Munique (Figura 9), ele faz a variante mitológica do vaso de Oxford (Figura 8). Temos, agora, uma cena eminentemente mitológica: uma mulher, sentada sobre uma base rochosa, voltada para a esquerda, com um pássaro aos seus pés, toca a phórminx , observada por outra figura feminina que podia ser confundida com uma visitante à tumba. A inscrição do patronímio no campo, com a mesma disposição simétrica das letras que encontramos nos outros vasos do mesmo pintor (Figura 6 e 8), indica a conotação funerária da cena. A princípio, a base rochosa serviria como atributo para identificação da musicista como uma Musa. O pintor, porém, quis deixar claro que a cena musical transcorre no espaço divino: sobre a rocha, abaixo da musicista, está ins- crito HELIKON, designando a geografia sagrada das Musas.