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A partir dos anos 30, o debate sobre a função social da propriedade no Brasil gerou propostas para reforma agrária. A constituição de 1946 e o dever de cumprir a função social da terra marcaram o início de uma estrutura administrativa especializada na questão fundiária. Com a ascensão dos militares ao poder, a reforma agrária voltou a ser discutida. No entanto, diferentes interpretações da lei de terras resultaram em um processo contraditório. Após a definição do novo texto constitucional, a batalha política se concentrou na regulamentação dos dispositivos constitucionais. A crise do executivo e a mobilização de atores sociais levaram à aprovação de leis que modificaram o marco regulatório das desapropriações para reforma agrária, tornando-as mais incertas, lentas e caras.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de aula
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As Constituições contemporâneas refletem as atuais sociedades pluralistas, caracterizadas pela presença de uma infinidade de grupos sociais com interesses, ideologias e projetos díspares, sem que nenhum destes tenha força suficiente para tornar-se exclusivo ou dominante. Gustavo Zagrebelsky ressalta o fato de as Constituições contemporâneas não refletirem mais a doutrina clássica do Poder Constituinte, correspondente a uma vontade social única e impositiva de uma determinada forma de organização.^1 Desta forma, definido o conteúdo do texto constitucional e tendo a Constituição como base, os diferentes grupos travam uma luta para imprimir na sociedade as suas respectivas orientações, tendo por limite as possibilidades permitidas pela Constituição.^2 Nas sociedades atuais, marcadas pelo pluralismo das forças políticas e sociais que competem para afirmar suas pretensões nas estruturas do Estado, a lei deixou de ser uma garantia de estabilidade, apresentando-se como causa e instrumento de competição e enfrentamento social. A conseqüência de tal fato é o caráter cada vez mais compromissório do produto legislativo, na medida em que este é conseqüência de negociações e barganhas entre forças cada vez mais heterogêneas. Aliás, em razão disto, as leis tornam-se cada vez mais contraditórias e caóticas, tendo em vista que passaram a ser fruto de coalizões legislativas flutuantes e instáveis, ao invés de maiorias legislativas sólidas.^3 Estas observações cabem perfeitamente às atuais normas reguladoras da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, que se mostram como desdobramento de uma luta política travada há tempos na sociedade brasileira, cujo desfecho ainda se afigura distante.
(^1) Zagrebelsky, Gustavo. Historia y Constitución, 2005,pág. 83. (^2) Gustavo Zagrebelsky afirma que “desde la constitución, como plataforma de partida que representa la garantía de legitimidad para cada uno de los sectores sociales, puede comenzar la competición para imprimir al Estado uma orientación de uno u outro signo, en el âmbito de las posibilidades ofrecidas por el compromiso constitucional”. V. Zagrebelsky, Gustavo. El Derecho Dúctil: ley, derechos, justicia, 1995, pág. 13. 3 Ibid, , pág. 38
Já em meados do século XIX, como narra Márcia Maria Menendes Motta^4 , o processo de elaboração da Lei de Terras foi profundamente marcado pela disputa de interesses entre sesmeiros e posseiros sobre a regulamentação do direito destes últimos à posse terra. Como resultado deste processo, o texto da Lei de Terras de 1850 já se apresentou ambíguo, correspondendo às contradições e aos conflitos da sociedade brasileira da época.^5 A partir da década de 30, incrementou-se o debate sobre a função social da propriedade no Brasil e, com a Constituição de 1946 e a positivação do dever de cumprimento da função social da terra, surgiram as primeiras propostas legislativas referentes à reforma agrária, ao mesmo tempo em que começou a se formar uma estrutura administrativa especializada na questão fundiária. Note-se que tais propostas encontraram sempre a resistência mal dissimulada dos latifundiários. Com a ascensão de João Goulart à presidência da República, pretendeu-se dar um novo impulso à questão da reforma agrária através de iniciativas governamentais no sentido de modificar a Constituição de 1946. O conteúdo de tais propostas governamentais, aliada à crescente mobilização dos trabalhadores rurais, foi um dos fatores cruciais para a elevação da temperatura política e a radicalização que tiveram como desfecho o golpe militar de 1964. Com a ascensão dos militares ao poder e o início do governo Castelo Branco, surpreendentemente para os proprietários rurais que apoiaram o golpe, a reforma agrária foi alçada novamente ao centro das atenções, sendo erigida à condição de prioridade pelo novo governo. Desta forma, a Emenda Constitucional nº 10 e o Estatuto da Terra surgem após um processo de negociação entre o novo governo e a sua base parlamentar conservadora, ficando excluídos do processo de elaboração os trabalhadores rurais.
(^4) Motta, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX, 1998, págs. 137-145. 5 Ressalte-se que esta interpretação sobre o significado da Lei de Terras difere daquela construída por José de Souza Martins, para quem a Lei de Terras significou unicamente o impedimento do acesso à terra por outros meios que não a compra como forma de permitir a criação de um mercado capitalista de terras e a transformação da terra em renda capitalizada. V. Martins, José de Souza. O cativeiro da terra, 1979, págs. 31-34.
O resultado final restou, além de contraditório e ambíguo, claramente desfavorável à efetivação da reforma agrária, significando um retrocesso se comparado ao texto constitucional anterior.^6 Contudo, após a definição do novo texto constitucional, não cessou a batalha política relativa à reforma agrária, passando esta a se concentrar sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais. Durante um período de quase cinco anos, os adversários da reforma agrária lograram impedir a regulamentação dos dispositivos constitucionais e, conseqüentemente, paralisar a atividade expropriatória do governo federal. A aprovação da lei agrária e da lei do rito ordinário se deu em momento político conturbado, concomitantemente ao processo de impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello, o que, de certa forma, favoreceu a tramitação do processo legislativo. A crise do núcleo do Executivo e a sua conseqüente perda de capacidade de mando, aliada à mobilização dos atores sociais favoráveis à reforma agrária – que, ao contrário do ocorrido na Assembléia Nacional Constituinte, não radicalizaram em suas propostas –, propiciaram a aprovação da lei nº 8.629/93 e da lei complementar nº 76/93. O processo de aprovação de tais leis representou uma acomodação política entre forças antagônicas, ocorrida em uma conjuntura nacional bastante específica. Por ser conseqüência de um processo de elaboração marcado por negociações e barganhas entre grupos políticos rivais, no qual nenhum deles detinha poder suficiente para afastar por completo as pretensões do outro, as leis sancionadas, de forma similar à Constituição por elas regulamentada, são destituídas de uma coerência interna, apresentam dispositivos elaborados com o propósito explícito de obstar as desapropriações e apresentam-se fortemente marcadas por ambigüidades e contradições. 7
(^6) José Gomes da Silva afirma categoricamente: “A Constituição de 1988 foi madrasta para a reforma agrária. Se ela foi cidadã – como a chamou o velho Ulisses – apadrinhou apenas os urbanos, esquecendo-se, pior, penalizando os sem-terra”. V. Silva, José Gomes da. Estatuto da Terra, 30 anos, in Revista da Associação Brasileira de reforma agrária – ABRA, volume 25, jan/abr de 1995, pág. 10. 7 Vale lembrar que o retrocesso poderia ter sido ainda maior se não fossem os vetos de dez dispositivos do projeto de lei agrária aprovado no Congresso Nacional pelo Presidente Itamar Franco que, se integrassem o texto da lei nº 8.629/93, tornariam impraticáveis as desapropriações para fins de reforma agrária.
A principal conseqüência do atual marco normativo referente às desapropriações para fins de reforma agrária – formado pela Constituição de 1988, lei nº 8.629/93 e lei complementar nº 76/93 – foi a diminuição da capacidade expropriatória do Poder Executivo. No modelo anterior, composto pela Constituição de 1967 – em sua redação determinada pela Emenda Constitucional nº 01/69 –, pelo Estatuto da Terra e pelo Decreto-lei nº 554/69: 1) havia a possibilidade de se desapropriar uma área unicamente devido a sua extensão; 2) não havia a exigência de que a indenização fosse prévia; 3) a proibição de desapropriação da empresa rural – cuja definição era idêntica à atual de propriedade produtiva – não tinha status constitucional; 4) uma vez ajuizada a desapropriação, a transmissão de domínio ao Poder Público era irreversível; 5) os valores de indenizações pagos nas desapropriações eram limitados ao valor declarado pelo proprietário para fins de cobrança do ITR; 6) a transferência do domínio do imóvel rural se dava imediatamente após o ajuizamento da ação de desapropriação, o que tornava a imissão na posse definitiva e, conseqüentemente, não permitia a incidência de juros compensatórios. A partir da Constituição de 1988, apesar de ter sido conferido status constitucional à função social da propriedade e ter sido fixado os critérios para o seu cumprimento no art. 186 8 , o texto constitucional acabou com a possibilidade de desapropriação dos latifúndios unicamente em razão de sua extensão, tornou insuscetível de desapropriação a propriedade produtiva e fez retornar a exigência de que a indenização seja prévia. A lei nº 8.629/93 e a lei complementar nº 76/93 aprofundaram ainda mais o retrocesso iniciado pela Constituição de 1988, uma vez que: 1) aumentaram sobremaneira as possibilidades do Poder Judiciário impedir ou interromper as desapropriações e o conseqüente processo de assentamentos dos beneficiários da reforma agrária; 2) o valor da indenização passou a ser vinculado ao valor de mercado do imóvel rural; 3) a transferência do domínio passou a se dar somente após o pagamento integral da indenização, sendo o INCRA apenas imitido provisoriamente na posse do imóvel, fato que permite a condenação do INCRA ao
(^8) Deve ser ressaltado que os requisitos fixados são quase idênticos àqueles previstos no Estatuto da Terra.
influência da Constituição sobre as relações políticas, inclusive determinando a argumentação dos atores políticos.^9 A argumentação dos movimentos sociais, construída a partir de dispositivos constitucionais, mostra-se necessária não só na estratégia mais ampla de conquista de apoio político na sociedade, mas, da mesma forma, na construção de um discurso jurídico capaz de refutar a pecha de ilegalidade geralmente associada às ocupações. Como conseqüência disto, deve ser mencionada a existência de entendimentos doutrinários no sentido de que a ocupação de terra não afrontaria o ordenamento jurídico brasileiro.^10 A licitude das ocupações decorreria do fato de a função social da propriedade integrar a essência, o conteúdo do direito de propriedade 11 – não dizendo respeito apenas ao uso do bem – e ter sido erigida ao nível de dever fundamental pela Carta Magna, cujo descumprimento gera, entre outros efeitos, a possibilidade da desapropriação por interesse social e a perda da proteção possessória prevista na lei civil.^12 Desta forma, prosseguindo na argumentação, a ocupação de um imóvel rural não consistiria em ilícito civil e, tampouco, poderia ser tipificado como esbulho possessório nos termos do art. 161, parágrafo 1º, inciso II do Código Penal. Embora a maior parte do Judiciário não se mostre receptiva a esta argumentação^13 , o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a tese, pelo menos, em um caso, ao julgar o Habeas Corpus nº 5.574/SP. Neste julgamento, o STJ considerou que “movimento popular visando a implantar reforma agrária não caracteriza crime contra o patrimônio. Configura
(^9) Embora não seja o escopo do presente estudo esmiuçar as características, vale mencionar que Ricardo Guastini aponta como características de um ordenamento jurídico constitucionalizado: 1) rigidez constitucional; 2) garantia jurisdicional da Constituição; 3) força vinculante da Constituição; 4) sobreinterpretação da Constituição; 5) aplicação direta das normas constitucionais; 6) a interpretação das leis conforme a Constituição; 7) a influência das Constituições sobre as relações políticas. V. Guastini, Ricardo. La “Constitucionalización”del ordenamento jurídico: el caso italiano, 10 In: Neoconstitucionalismo(s), 2005, págs. 49-73. A própria utilização do termo “ocupação”, ao invés de “invasão” ou “esbulho”, reflete esta distinção calcada no texto constitucional, mediante a qual “ocupação” seria a entrada de famílias em imóveis não cumpridores da sua função social e, por conseguinte, não seria algo ilícito. 11 12 Grau, Eros Roberto. Parecer^ in^ A questão agrária e a justiça, 2000, pág. 198. Costa Neto, Fernando Tourinho. Legitimidade dos Movimentos Populares no Estado Democrático de Direito: as ocupações de terras, 13 in A questão agrária e a justiça, 2000, pág. 194. Quintans, Mariana Trotta Dalallana. A magistratura fluminense: seu olhar sobre as ocupações do MST.
direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República.” De acordo com Roberto Lyra Filho, a abordagem correta do Direito é aquela que o examina como elemento do processo sociológico, devendo-se considerá-lo da mesma forma, seja quando este apresenta-se como instrumento de controle ou quando serve como instrumento de mudanças sociais.^14 O Direito não é algo fixo e definitivo, sendo a sua realização um processo caracterizado por uma luta constante entre grupos e classes, sendo que, em alguns casos, este conflito pode ter por base as contradições internas de um determinado bloco de normas. 15 A isto, deve ser acrescentada a colocação de Thompson no sentido de ser possível considerar a lei como algo sobre o qual, muitas vezes, se estabelece um campo de conflito.^16 Desta forma, apesar das várias limitações e dos vários óbices às desapropriações para fins de reforma agrária existentes em seu marco normativo, aqueles que lutam pela reforma agrária vêm utilizando o discurso constitucional como forma de legitimar a sua atuação, a fim de permitir uma pressão mais efetiva pela realização da reforma agrária, a partir das ocupações de imóveis rurais. Esta pressão política levou, inclusive, o governo de Fernando Henrique Cardoso a tomar a iniciativa e conseguir inserir na lei nº 8.629/93 e na lei complementar nº 76/93 algumas modificações com o fito de reduzir os entraves às desapropriações decorrentes das normas que a regulam, de tornar mais ágil e de diminuir os custos das obtenções de terras através das desapropriações. Porém, ainda que as ocupações de terra constituam um eficaz instrumento de pressão sobre o governo para a realização da reforma agrária, tal eficácia vem se mostrando relativa, pois a política de criação de assentamentos posterior à 1993 vem mantendo tendências históricas verificadas nas políticas fundiárias do período anterior, como a ausência de planejamento, a concentração de projetos
(^14) Esta seria a abordagem da Sociologia do Direito. V. Lyra Filho, Roberto. O que é Direito, 1982, pág. 73. 15 16 Ibid., págs. 115-117. “A lei também pode ser vista como ideologia ou regras e sanções específicas que mantêm relação ativa e definida (muitas vezes um campo de conflito) com as normas sociais”. V. Thompson, Edward P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra, 1987, pág. 351.
Além dos programas do tipo “reforma agrária de mercado”, em busca de alternativas às desapropriações, os sucessivos governos vêm se utilizando da regularização fundiária, da compra e venda direta de imóveis por meio do Decreto nº 433/92, da recuperação de áreas devolutas indevidamente na posse de particulares e na simples destinação de terras públicas para a criação de assentamentos. Por fim, em razão de todas as dificuldades legal e constitucionalmente impostas à efetivação das desapropriações, esta tendência de se procurar e de se priorizar alternativas aos processos de desapropriação, cada vez mais, se consolida nas políticas fundiárias oficiais, razão pela qual as desapropriações vêm perdendo peso frente às demais formas de obtenção de terras para a realização de assentamentos.