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Giulio carlo argan discute a obra de sandro botticelli, estabelecendo uma separação entre imagem e forma. Botticelli incorpora arquiteturas e paisagens com figuras, mas elas não ordenam os movimentos das figuras, mantendo a unidade e coerência. Argan examina a reação de botticelli ao espaço da perspectiva linear, internalizada pelo gosto e inquestionável na arte do renascimento.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de aula
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Introdução: a imagem e a forma
A discussão que Giulio Carlo Argan propõe acerca da obra de Sandro Botticelli estabelece uma separação entre duas categorias: imagem e forma. Tais categorias surgem na obra do historiador de modo distinto. Forma como uma espécie de modo de visibilidade, como é o caso das formas perspectivas, sempre sujeitas a interferências de novas técnicas: perspectiva angular, linear, atmosférica. Forma é do mesmo modo uma possibilidade de, a partir da linguagem plástica (pintura, escultura, tinta, suporte), dar a ver um real. 55 Entretanto, a forma não é necessariamente uma técnica, e nem está apenas condicionada ao exercício de representação mimética de uma realidade, ou seja, uma pura pincelada traz sua forma pela realidade plástica que ela expressa. Há muita diferença entre o código da perspectiva linear e a manifestação de uma pincelada, o que nos mostra que forma é para Giulio Carlo Argan um fenômeno, uma aparência.
Diferente da forma, a imagem é uma informação que foi mediada pela imaginação de um sujeito ou por um imaginário social. A Vênus de Willendorf (Ilustração 31) é uma imagem porque expressa um símbolo de fertilidade de toda uma comunidade do paleolítico. O rosto de Marilyn (Ilustração 32) é do mesmo modo a representação de um fetiche criado pela indústria cultural cinematográfica do século XX. Logo, o conceito de imagem propõe uma intervenção subjetiva, mesmo que saibamos que os conceitos do que vem a ser o sujeito se modificam através do tempo.
Como há uma diferença marcante entre o que vem a ser a forma e a imagem, e que também cada imagem e cada forma possui aspectos internos muito particulares, optou-se por investigar como essas categorias surgem na análise de Giulio Carlo Argan. Para isso, criamos uma espécie de tópicos não esquemáticos
(^55) Deixo de fora a questão teológica da Forma Total de São Pedro Damião que se refere a Onipotência Divina. Embora haja possibilidade de relação, a questão provocaria um corte no raciocínio do texto.
para iluminar a análise do historiador, pois sua liberdade ensaística mostra a elasticidade de seu pensamento que pode nos fazer perder determinadas formulações que se encontram entretecidas na riqueza conceitual de seus textos.
A – Sujeito
A pintura de Botticelli é consciente e polemicamente antiperspectiva: não porque o artista ignore ou transgrida as regras perspectivas, mas porque, ao contrário, não as aceita como princípio fundamental para a construção da visão. Embora as arquiteturas e paisagens em que as figurações de Botticelli são tecidas sejam traçadas segundo as regras perspectivas, estas não contêm e ordenam as figuras e seus movimentos, garantindo assim a unidade, a coerência e a verossimilhança da ação; não constituem, em outras palavras, uma estrutura preliminar, mas visam ser uma imagem que possui o mesmo valor das figuras e nasce junto com elas, conservando porém seu próprio significado alegórico ou simbólico, claramente distinto (ARGAN, 2011, p. 212). Esta longa citação merece uma primeira consideração, não apenas acerca da explicação que Giulio Carlo Argan dá sobre a polêmica de Botticelli com o espaço perspectivo, mas sobre o perfil que o próprio historiador constrói insistentemente para os artistas analisados: eles são sempre conscientes de seus projetos artísticos, e não há inconsciência em suas escolhas. Se, por um lado, este modo de construir uma biografia intelectual e artística dos pintores, escultores e arquitetos do Renascimento permite que o historiador vislumbre uma racionalidade dentro da práxis destes artistas, por outro, este perfil psicológico (se é que se trata disso) parece ser o de um sujeito supraconsciente. Na percepção de Argan, o que existe de aleatório está ligado à materialidade do mundo com suas desigualdades sociais, suas técnicas de trabalho e ideologias. Logo, esta subjetividade consciente se dialetiza por meio desta razão universal, fragmentada em cada artista, dentro de um mundo material repleto de contratempos.
O esquema que Argan se utiliza para percorrer certa inteligibilidade da obra dos artistas nos faz refletir sobre a concepção de sujeito que ele adota. Esta certamente não está atrelada ao modelo de sujeito freudiano, cujo o inconsciente é presumido como mote principal de constituição da subjetividade, postulando-se um axioma de sujeito que se desconhece em sua totalidade. Argan parte em suas
transformou-se numa lógica universal e matemática do espaço da perspectiva geométrica.
A ruptura de Sandro Botticelli não se dá pela falta de domínio do desenho no que se refere à regra perspectiva – o que já foi dito sobre o domínio perspectivo dos planejamentos do pintor.^57 A quebra processa-se pela aparição de uma imagem (subjetiva e simbólica) que, no quadro, não se atrela à unidade da forma como captação de uma realidade objetiva. Esta imagem é, portanto, um “algo” que foi experimentado pelo sujeito. Isto se dá porque na polarização do binômio sujeito-objeto, a forma estaria, consequentemente, mais próxima da substância do objeto, enquanto a imagem se colocaria do lado do sujeito. Grosso modo, é como se a forma-perspectiva fosse obediente ao real, e a imagem mostrasse, deliberadamente, uma indeterminação da realidade devido a um processo de interpretação – um desvio subjetivo.
Argan sabe que a perspectiva linear, no contexto de Botticelli, atingiu, na razão cognoscível vigente, a neutralidade de dar a ver a realidade do mundo de modo natural, foi internalizada pelo gosto, sendo por isso inquestionável. Sabe também que a experiência visual não é reduzível a um esquema óptico. Se para Panofsky o período do Renascimento gira em torno de uma forma simbólica expressa pela perspectiva linear, para Argan essa forma é um alvo de polêmicas diversificadas. O trabalho do estudioso alemão não é descartado, entretanto, ele é apresentado com muitas nuances. As obras de arte do Renascimento tanto aprofundam como transgridem esta “forma simbólica”.
Sobre a experiência esquemática desta espacialidade descoberta pelo Renascimento, Merleau-Ponty diz o seguinte em seu notório texto A dúvida de Cèzanne : “a perspectiva vivida, a de nossa percepção, não é a perspectiva geométrica ou fotográfica [...]”. O pensador prossegue: “Dizer que um círculo visto obliquamente torna-se uma elipse é substituir a percepção efetiva pelo esquema do que deveríamos ver se fôssemos aparelhos fotográficos”. E conclui: “de fato, vemos uma forma que oscila em torno da elipse sem ser uma elipse” (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 117). Deste modo, Merleau-Ponty demarca uma
(^57) Ver Capítulo anterior o comentário de George Didi-Huberman.
diferença entre a perspectiva vivida e a geométrica. Uma oscila, duvida, enquanto a outra projeta uma certeza.
Como um historiador da arte moderna, Argan conhece a posição crítica da filosofia de Merleau-Ponty sobre o desenvolvimento da perspectiva geométrica. Assim, o exercício crítico e analítico de Argan é o de mostrar como estes sujeitos do Renascimento construíram formas por meio de escolhas críticas e não obedecendo a regras. As formas do Renascimento foram concebidas por dúvidas e incertezas. Logo, não deixa de existir um esforço do historiador de pensar esses artistas como dotados de uma percepção vivencial do espaço e não submetidos a um código. Neste ponto, a interpretação de Argan situa-se próxima à fenomenologia de Edmund Husserl, que se define a partir da seguinte relação:
O mundo é pré-cientificamente-dado, na experiência sensível cotidiana, de modo subjetivo relativo. Cada um de nós tem as suas aparições, e essas valem para cada um como aquilo que efetivamente é. Interiorizamos há muito, nas nossas relações recíprocas, esta discrepância entre as nossas validades do ser (HUSSERL, 2012, p. 17). Não há um modo único e estático para a compreensão do Renascimento. Ele se mostra “de modo subjetivo relativo”. Botticelli não se relacionará com as aparências sempre de um mesmo modo e tampouco igual a outro pintor de sua época. Na medida em que ele ajuíza sobre sua obra, o mundo ou sobre os símbolos literários que pretende representar, o pintor experimenta um novo fenômeno. Há consciência, mas essa consciência transcendental provará de modo relativo o mundo da vida.
O mesmo ocorre com o exemplo de uma obra normativa como é o tratado De pintura de Leon Battista Alberti. Neste caso, Giulio Carlo Argan opta por contextualizar o tratadista em sua época, dando-lhe características sutis. Apesar da normatividade apresentada, Argan reconhece a obra do teórico como propulsora de um circuito de arte – dando a ver a presença de uma potência crítica no mais rigoroso dos tratados (ARGAN, 2011, p. 86). Esta posição de Argan se aproxima da de Lionello Venturi, seu mestre. Este historiador, em seu livro História da Crítica de Arte , diz: “Alberti supera o naturalismo em nome da beleza” (VENTURI, 2013, p. 96). Venturi cita também a seguinte passagem atribuída a
Leonardo e, no entanto, todos consideram Botticelli um autor do século XV e Leonardo um pintor do século XVI” (ARGAN, 2011, p. 206). Este apontamento traz à tona o “atraso” de Botticelli diante dessa corrente da arte do Renascimento descrita por Giulio Carlo Argan. A diferença mais comentada por Argan é a que se opera entre a poética de Botticelli e a de Leonardo. Tal distinção se mostra saliente porque ambos teriam como ponto de contato a passagem pelo ateliê de Andrea del Verrochio. “Ainda que Botticelli, quando morreu, não estivesse decrépito, certamente estava ultrapassado como artista” (ARGAN, 2011, p. 206).
A sentença de “ultrapassado” lançada por Argan chama a atenção e deve ser compreendida no movimento de seu pensamento. Ela traz uma informação específica: a de que a pintura de Botticelli partia de uma ideia de belo proveniente do século anterior. E, do mesmo modo, nos alerta para o fato de que a construção plástica daquele período não se submetia mais aos cânones da pulchritudo gótica presentes nas obras de Sandro Botticelli. Assim, o historiador diz:
Ao propor que a arte seja orientada para a busca e a realização de um ideal especificamente estético, Botticelli retorna, de certa maneira, as posições do gótico tardio; mas seu ideal de pulchritudo já não depende das teses tomistas de beleza e da harmonia da criação, enquanto signos da perfeição do Criador, por isso poderíamos dizer que sua pintura, ainda que imbuída de uma profunda aspiração religiosa, é expressão de uma religiosidade indeterminada, leiga, em que a pulchritudo se transforma em venustas (ARGAN, 2011, p. 209). Há, portanto, nos quadros de Botticelli uma aproximação com aquela cultura de artesãos do gótico, com seu requinte decorativo, contudo, sem a fundamentação teórico-filosófica daquele contexto, ou seja, a poética de Botticelli vai em busca desta matriz gótica sem se submeter às teses tomistas que entendem a beleza como signos da perfeição divina – como se dava em Fra Angelico. Logo, o fato de que há um atraso na poética do pintor deve ser compreendido segundo esta dinâmica que Argan põe na balança, pois o fato de Botticelli estar ‘ultrapassado’ diz respeito apenas a uma camada da obra e não a ela como um todo. Por um lado, a obra está ultrapassada, por outro, ela atualiza o ideal de pulchritudo gótico por revisitá-lo a partir de “uma religiosidade indeterminada, leiga”.
A questão temporal fica ainda mais complexa quando o historiador nos põe diante da recepção da obra de Botticelli num arco histórico maior, próprio do seu sistema histórico. 59 No caso, Argan interpreta a poética do pintor do Renascimento num espelhamento com a arte moderna e mostra a sobrevivência da poética de Botticelli na modernidade.
É claro então que a poética de Botticelli não é apenas um recuo artístico deliberado, mas também uma abertura indireta para a arte moderna: não, certamente, para a arte de visão que, a partir de Leonardo, através dos venezianos, dos flamengos e dos espanhóis, chegaria aos impressionistas; mas para a arte de expressão que, através dos alemães, chegará até o Expressionismo (ARGAN, 2011, p. 221). O historiador explicita o quanto a superação de Botticelli não deve ser entendida como algo definitivo, mas apenas ser vista no contexto específico daquela época do Renascimento italiano. Há, sim, um teleologismo na dinâmica histórica de Argan. Isto porque ele vê uma finalidade para a arte nesse contexto histórico. Esta finalidade da arte estaria atrelada ao entendimento de que ela é um campo de conhecimento específico, distinto até mesmo da ciência (como mostra Leonardo Da Vinci). Sendo assim, Botticelli estaria de fora deste desígnio da arte do século XVI. Porém, em seu método dialético, o historiador não entende esse “recuo” como absoluto. Ele é um recuo dinâmico e relativo, visto que a arte do pintor continuará alimentando poéticas futuras.
Neste trecho, Argan nos aponta a existência de duas linhagens que vão do Renascimento à arte moderna. Chama a atenção o fato de o historiador escrever que a obra de Sandro Botticelli não estaria ligada àquela arte da visão que “a partir de Leonardo, através dos venezianos, dos flamengos e dos espanhóis, chegaria aos impressionistas”. Assim, a abstração das linhas e das cores nos quadros de Botticelli segue a rota que vem dos alemães e deságua no expressionismo. Logo, a pintura de Botticelli seria uma pintura do gesto, impregnada da gestualidade artesã do gótico (que estaria em recuo diante dos problemas da arte do alto Renascimento), mas podendo, por outro lado, ser contemplada dentro da linhagem de uma pintura-ato que chega ao expressionismo.
(^59) Conceito a ser trabalhado no próximo capítulo.
representações simbólicas. Entretanto, diagnosticar o teleologismo sem a devida percepção de como ele se dá no cerne de uma historiografia recai num outro erro: o de compreender a categoria de análise como ponto de chegada do analista, ou seja, basta ao analista captar a prática de um teleologismo no historiador x para que o diagnóstico esteja encerrado.
Na historiografia de Giulio Carlo Argan, a busca por um télos se apresenta como um atravessamento de caminhos teleológicos (de um jogo de finalidades em relação) que propõem sentidos diversos de leitura para o fato histórico-estético iluminado pelo autor. Aqui, a obra de Botticelli é um bom exemplo deste andamento analítico do historiador. De fato, como pintura gestual e rítmica, a obra de Botticelli, apesar de conhecedora da perspectiva linear, estaria ainda ligada à planaridade do espaço pertencente ao gótico. Há nela também a marca autográfica das pinturas de Simone Martini, e o aspecto leigo do gótico internacional de Gentile Da Fabriano.^60
Ao se analisar a Anunciação de Simone Martini (1333), nota-se o quanto o desenho de linhas hachuradas oblíquas e pontiagudas, que representam as plantas do vaso ao fundo, compõe-se obedecendo ao ritmo de toda a tela. Tal cadência repete-se nas plantas que o anjo segura, também em seu arranjo de cabelo, nas pontas de suas asas e chega até as beiradas das vestes das demais figuras da obra. A beleza da pintura está revestida de um princípio decorativo no qual a marca autográfica do pintor se impõe – marca em que se vê a capacidade decorativa do artista em seu próprio gesto.
A obra de Gentile da Fabriano traz uma visão laica, uma vez que a experiência do gosto da corte se vê expressa na obra do pintor, concorrendo com os temas religiosos. Também não é difícil perceber semelhanças na plasticidade das folhagens de Simone Martini, na de Gentile da Fabriano e na de Sandro Botticelli. O modo como os quadros de ambos se compõem pela força rítmica e gestual das linhas pictóricas é bem semelhante, guardadas algumas diferenças.
(^60) Refiro-me fundamentalmente aos quadros O Nascimento da Vênus e Primavera de Sandro Botticelli. E sigo na interpretação do argumento de Giulio Carlo Argan.
Mas Botticelli atualiza essa concepção de beleza gótica por meio de um processo gestual em que o conhecimento da perspectiva linear irá formar um sustentáculo plástico à construção das figuras em sua poética. A perspectiva não se torna o ponto de exaltação da visão humana diante da natureza, mas sim um suporte abstrato e geométrico para uma pintura que busca representar a gestualidade tátil-visual do mundo visto por um pintor do Renascimento. Sendo assim, o conhecimento desta ciência tensiona o desejo de distância de uma visão humana estática e a representação rítmica das cores e linhas no quadro do pintor, como se o olhar parado da perspectiva linear quisesse representar corpos em movimentos acelerados. Por isso, a leveza das linhas suspende corpos macilentos que parecem flutuar num espaço fixo.
C – Filosofia
É inegável, todavia, que Botticelli foi o primeiro a atrelar a pesquisa artística a uma filosofia, quer dizer, o primeiro que, por meio da arte, buscou realizar uma estética; o primeiro que afirmou a unidade profunda de arte, pensamento e poesia; o primeiro, finalmente, que isolou um valor do belo, indicando nele o fim último da arte (ARGAN, 2011, p. 208-209). A relação de Sandro Botticelli com a filosofia deve ser examinada diretamente com a presença do círculo de filósofos influenciados pelo neoplatonismo e que era financiado pela corte dos Medici, tendo na figura de Marsílio Ficino o seu centro. Ficino buscou fundar uma academia nos moldes da de Platão na Grécia Antiga, propondo uma busca pelo ideal grego de beleza. Do mesmo modo, Sandro Botticelli pretendeu seguir este mote da beleza platônica, tornando-se uma espécie de Apeles do Renascimento.
A citação de Giulio Carlo Argan nos direciona para atentarmos para o fato de que Botticelli “buscou realizar uma estética”. E realizar uma estética não significa copiar modelos, e sim construir uma arte que formula um pensamento sobre o que vem a ser o belo. O belo não está ali como forma, mas dissolvido como uma imagem da beleza. Para Argan, a obra de Fra Angélico, apesar de sua força criativa, estava ligada ainda à concepção tomista de forma. Logo, havia o belo como a representação de totalidade de um ser maior (presumido) que se digladiava com a busca por totalidade racional da perspectiva. Aqui, em outra direção, se está em contato com uma obra que formula sua estética; esta se
alvura da prata, a ciência e a alma que são todas elas coisas simples. Com efeito, se elas nos proporcionam um prazer tão grande é porque realmente são belas (FICINO, 2004, p. 46-47). O texto do filósofo italiano não pretende responder à beleza como um conjunto de procedimentos a serem executados. Trata-se, sobretudo, de um qualitativo que não pode ser definido a partir de um conjunto de normas. Contudo, do mesmo modo que na tese tomista, a beleza se aproxima das formas simples, uma vez que elas expressam uma proximidade com a unidade da Ideia platônica.
São Tomás de Aquino e Marsílio Ficino seguem o conceito de belo como uma unidade não perecível própria à tese de Platão. Em São Tomás de Aquino, assim como na poética de Fra Angelico, o fato de esta unidade não poder ser sequer presumida como conteúdo imanente provocará, segundo Giulio Carlo Argan, a discussão epistemológica do pintor com o espaço perspectivo. Em Botticelli, a tensão com este espaço será construída de outro modo: pela busca por uma estética, ou seja, Botticelli se empenhará em construir, na imanência de sua pintura, a realização de uma estética através da graça da Providência, presente nos quadros, no ímpeto de seus gestos plásticos e, principalmente, por meio de uma abertura para o efeito estético que suas obras se empenharão em provocar nos espectadores através de uma beleza incorpórea, isto é, que não se dá nos corpos, mas se apresenta pelo movimento deles e de suas linhas.
Se seguirmos a ideia de que Botticelli entende o belo no contorno do neoplatonismo ficiniano, os corpos recebem o belo como participação no mundo sensível. Marsílio Ficino dirá que o belo é o raio do Bem (Deus) que tudo penetra (FICINO, 2004, p. 44). Assim, o Belo e o Bem não são mais indissociáveis conforme a tese platônica. O belo tornou-se, pois, um efeito do Bem, um desdobramento. Deste modo, ele é incorpóreo como um raio de luz, uma simples cor e um simples som. É, portanto, uma qualidade do Bem e não necessariamente uma unicidade fechada.
O fato de existir uma estética no pintor não está baseado no resultado em si das formas de suas pinturas, mas deve ser verificado na abertura para o efeito estético que a poética do pintor suscita. Há nos quadros de Sandro Botticelli um prazer a ser esperado pelos espectadores. O mesmo prazer que anseia O
comentário... de Marsílio Ficino. Daí a aproximação que se observa entre a obra de Botticelli e a filosofia de Marsílio Ficino, conforme mostrou André Chastel, segundo informação de Giulio Carlo Argan (ARGAN, 2011, p. 206).
Uma questão deve ser trazida à baila acerca de uma diferença acentuada entre a filosofia de Ficino e a obra de Sandro Botticelli, o que o pensamento de Giulio Carlo Argan elabora sem estabelecer qualquer polêmica entre os dois representantes deste humanismo florentino do Renascimento: o fato de a filosofia de Marsílio Ficino privilegiar os sentidos da visão e da audição, por conta de uma proximidade destes com as funções cognitivas, e o aspecto gestual e rítmico da pintura de Botticelli observado por Giulio Carlo Argan – gestualidade da própria visão que se mostra cambiante. Marsílio Ficino aponta:
A beleza das almas é conhecida pela inteligência, a do corpo é percebida pelos olhos, e a das vozes, pelos ouvidos. Como a inteligência, a visão e a audição são os únicos meios que nos permitem fruir a beleza, e como o amor é o desejo de fruir a beleza, ele sempre se satisfaz por meio da inteligência, da visão e da audição (FICINO, 2004, p. 44). Lendo este fragmento não restam dúvidas do privilégio que Marsílio Ficino atribui aos sentidos da visão e da audição por sua proximidade com a inteligência. Logo, para ele, uma arte da visão está mais perto do empreendimento cognitivo de investigação do real. Não há nos textos do pensador normas pictóricas. Entretanto, há uma hierarquia que apresenta dois sentidos (visão e audição) mais próximos da inteligência humana.
Diferentemente, Argan não relaciona a obra de Botticelli a uma arte da visão, ou a qualquer hierarquia de sentidos corpóreos. Isto se deve certamente aos seguintes aspectos: 1. a concepção de arte da visão de Argan não está atrelada ao conhecimento científico, como é o caso do filósofo renascentista – como exemplo desta afirmação, o historiador nos diz que Leonardo da Vinci, praticante da arte da visão, separa bem o valor cognitivo da arte e o da ciência; 2. Argan não condiciona sua leitura da obra de Botticelli ao discurso filosófico ficiniano. Para o historiador, a obra de arte não está subordinada a matrizes ideológicas e filosóficas de uma época, mas sim cria suas próprias ideias, no caso, sua estética;
conhecimento do pintor acerca do hino homérico à Afrodite, e apresentando a descrição de Angelo Poliziano como uma possível fonte para a obra de Botticelli. Warburg diz: “tudo isso em conjunto indica que Poliziano era o mentor erudito de Botticelli” (WARBURG, 2013, p. 36). O historiador conjectura a forte influência do poeta contemporâneo apontando várias similitudes entre o texto de Poliziano e o quadro de Botticelli.
No caso de Warburg, o esmero filológico de indicar a tradução florentina do texto homérico e de analisar os versos de Poliziano anseia por mostrar, principalmente, a relação daquele humanismo com uma cultura pagã cujos deuses expressavam uma sensualidade e um erotismo que traziam uma informação diferente acerca do Renascimento e da Grécia Antiga.
George Didi-Huberman, em seu livro A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg, comenta sobre a operação histórica de Warburg como uma iconografia feita a marteladas, citando a proximidade do pensamento de Nietzsche no trabalho do historiador alemão (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 127). De fato, na medida em que o pensamento nietzschiano defende o retorno ao mitopoético,^61 livre de qualquer racionalidade e metafísica, ele contraria a percepção da história como um télos evolutivo para a humanidade. Para Didi-Huberman, a iconografia de Panofsky, assim como o pensamento de Cassirer estariam repletos de teleologismo e hegelianismo (palavras que, para o historiador francês, são sinônimas), que acaba por fugir do entendimento da história como o lugar de um pathos , de uma tragédia – qualidades que o filósofo francês nota em Warburg.
Assim, pelo olhar generoso de George Didi-Huberman, o trabalho filológico de Warburg nos revela uma densidade filosófica diversa da que percebemos ao ler a obra do historiador alemão, visto que pode parecer, aos
(^61) O mitopoético é aquela qualidade de pensamento que se apoia na Teogonia de Hesíodo ou nos textos homéricos, e que não necessita de um nexo lógico causal e nem da observação racional e detalhada da natureza para apresentar uma gênese. Giovanni Reale e Dario Antiseri explicam em seu conhecido volume História da Filosofia Antiga que há uma ruptura do pensamento do mitopoético com os pensadores pré-socráticos (REALE & ANTISERI, 2007, p. 8). Diferente de Nietzsche que, ao fazer uma crítica à metafísica socrática, aproxima os pensadores da fisis da produção poética de Homero e Hesíodo.
olhares desatentos, um compêndio filológico de citações literárias e sua relação com os quadros do artista florentino.
Noutra direção, a questão literária em Argan surge como um sistema crítico, e não como um radar de fontes literárias. A discussão em voga é o valor da obra e como ele aparece em sua análise. O historiador sabe da relação dos quadros de Botticelli com os referentes literários, e inicia seu ensaio enumerando essas fontes. Contudo, ele não se detém numa análise filológica rigorosa de base iconográfica. Elogia o feito de Ernst Gombrich de apontar em sua apreciação uma detalhada lista de nomes presentes no quadro de Sandro Botticelli, mas opta por seguir um outro caminho.
Argan diz o seguinte acerca da análise literária de Gombrich: “não vou me deter sobre este patente caráter literário, nem sobre as numerosas alusões e simbologias” (ARGAN, 2011, p. 237). Ao mostrar o seu interesse pela análise, Giulio Carlo Argan acrescenta: “o que importa é observar que a divergência entre os dois artistas a respeito da perspectiva devia já estar em ato quando Botticelli concebeu a Primavera ” (ARGAN, 2011, p. 237). Falta uma informação para esclarecer o sentido desta passagem. A diferença no uso da perspectiva se dá entre a obra Sandro Botticelli e a do pintor Domenico Ghirlandaio.^62 De certo modo, Argan está se recusando a estabelecer uma leitura literária referencial. Entretanto, faz uso de uma discussão poética ampla que se apoiará na distinção entre poesia e prosa. Acerca dessa discussão poética, Giulio Carlo Argan constrói seu argumento deste modo:
Decaem assim tanto o aspecto intelectual como o aspecto óptico do problema perspectivo; não podemos esquecer que, justamente naqueles anos, a perspectiva estava perdendo todo o caráter problemático, não apenas na pintura de Baldovinetti, mas também e sobretudo Ghirlandaio. Com efeito, é Ghirlandaio quem reduz a visão perspectiva à visão “normal”, transformando na base de uma pintura prosaica ou novelística, o que justifica plenamente, por reação, a opção de Botticelli por uma pintura-poesia, fundamentalmente antiperspectiva (ARGAN, 2011, p. 228-229).
(^62) Domenico Ghirlandaio (1449-1494) foi importante pintor florentino, um virtuose na arte da perspectiva linear.
diálogo com Theodor Adorno) 64 definiu como kitsch. Tal terminologia é explicada pelo intelectual americano como: “um produto da revolução industrial que, urbanizando as massas da Europa ocidental e da América, implantou a chamada alfabetização universal” (GREENBERG, 1997, p. 32). Grosso modo, essa alfabetização universal não deixa de ser paralela ao que Argan fareja como a domesticação da perspectiva linear na obra de Ghirlandaio.
O historiador italiano faz essa análise porque nota um elo dialético entre a autonomia do espaço plástico da perspectiva do Renascimento e a pulsão antiperspectiva da arte moderna, com sua resistência ao adestramento do olhar produzido pelo autômato perspectivo – a fotografia. 65 Na narrativa de Giulio Carlo Argan, Ghirlandaio passa a fazer parte da história desse conformismo da “visão normal”, enquanto Sandro Botticelli foge desta formatação e mostra um contraponto poético. Neste sentido, Botticelli, que numa primeira visada estava atrasado em relação a um paradigma da arte de seu tempo, toma a dianteira ao reagir a um problema da arte que tem sua origem, segundo Argan, já no próprio Renascimento.
Não há na citação de Argan o empenho filológico literário de outros estudiosos ilustres, como é o caso dos já citados Warburg e Gombrich. Tal empreendimento dá lugar a uma discussão mais ampla que ultrapassa fronteiras definidas como artes plásticas e literatura em prol do debate em torno de uma estética. O que Argan distingue como a poesia das pinturas de Sandro Botticelli liga-se diretamente ao que o filósofo alemão G. W. F. Hegel entende como poesia. Ele diz: “surge a poesia como arte particular que marca o início da dissolução da própria arte em transição para a sabedoria filosófica” (HEGEL, 1997, p. 369). Esta definição de Hegel sobre a poesia nos leva a entender a ligação que a filosofia e a poesia passam a ter na obra de Botticelli. A pintura de Botticelli é poesia na medida em que propõe ser uma mediação do olhar e não uma visão normal e conformada.
(^64) Adorno, em seu livro Filosofia da nova música , faz referência direta a Clement Greenberg quanto à divisão apontada pelo crítico norte-americano entre “falsidade grosseira e vanguarda” (ADORNO, 1974, p. 19). 65 Refiro-me a uma concepção mais geral da fotografia: seu uso realístico e naturalizado.
Argan segue estabelecendo esta diferença entre a poética de Domenico Ghirlandaio e a de Sandro Botticelli ao apresentar a polêmica entre o São Jerônimo (Ilustração) pintado pelo primeiro e o Santo Agostinho (Ilustração) feito pelo outro, ambos na Igreja de Ognissanti. Para Argan, observa-se aí a distinção entre o literato e o filósofo. Ele comenta:
Entre as duas figuras há também uma antítese ideológica: São Jerônimo é o erudito que fixou o texto das antigas Escrituras, Santo Agostinho é o pensador que redimiu e transpôs para o cristianismo a filosofia clássica, e particularmente a de Platão. São Jerônimo é o protótipo daqueles que sustentam a necessidade de se ater à letra das Escrituras. Ghirlandaio representa-o como um bom filólogo entre os instrumentos de trabalho (a vela, os óculos, as tesouras). Santo Agostinho é o protótipo daqueles que defendem a necessidade de interpretar as Escrituras segundo o espírito: Botticelli representa-o como um inspirado e põe ao lado dele os símbolos da cultura humanista, que queria demonstrar sua ligação profunda com o espírito do cristianismo (o astrolábio, o livro dos teoremas pitagóricos etc.) - (ARGAN, 2011, p. 241). No momento em que Giulio Carlo Argan faz sua interpretação iconográfica das obras dos dois pintores, ressaltando o caráter humanista das pinturas, contrapondo o santo filólogo ao santo filósofo, não apenas se vê uma disputa plástica e epistemológica dos dois pintores através da imagem dos santos cristãos, mas nota-se a própria posição do historiador italiano ao lado da tradição filosófica continental, interpretando Sandro Botticelli distante do paganismo apresentado por Aby Warburg que, segundo nos conta George Didi-Huberman, estaria altamente conectado com o pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Sendo assim, Botticelli não pode ser visto no anacronismo dionisíaco do paganismo, mas outro anacronismo o constrói na visada de Argan: o do pintor que rompe com a forma da perspectiva por estar conectado a uma razão, ou melhor, a um télos filosófico que o desconecta do Renascimento, ligando-o, em contrapartida, a questões da arte moderna.
Logo, o que Argan nomeia como a poesia de Sandro Botticelli é forma apenas como forma que busca sua dissolução formal em imagem, ou melhor, como perspectiva que se deixa desviar de sua ordem perspéctiva, pois o que pretende apresentar é o símbolo, e não apenas representar os objetos pela mediação de uma forma que se pretende universal e neutra.