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Objetos Biográficos e Objetos de Status: A Memória e o Espaço Vivido, Notas de estudo de Psicologia

Este texto discute a importância dos objetos biográficos e objetos de status na formação da memória e a relação entre eles. O autor utiliza o exemplo de fotografias familiares e o espaço vivido para ilustrar a distinção entre eles. Ao mesmo tempo, ele reflete sobre a importância da atenção intensa e leve na compreensão dessas ideias.

O que você vai aprender

  • Como os espaços vividos e fotografias familiares ilustram a distinção entre objetos biográficos e objetos de status?
  • Como os objetos biográficos e objetos de status influenciam a memória?
  • O que é a atenção intensa e leve e por que é importante na compreensão dessas ideias?
  • Como a memória opera com objetos e ações no espaço e no tempo?
  • Qual é a diferença entre objetos biográficos e objetos de status?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Neilson89
Neilson89 🇧🇷

4.4

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Tempos Vivos e Tempos Mortos 1
Ecléa Bosi 2
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  • Tempos Vivos e Tempos Mortos
    • Ecléa Bosi

Existe, dentro da história cronológica, outra história mais densa de substância memorativa no fluxo do tempo. Aparece com clareza nas biografias; tal como nas paisagens, há marcos no espaço onde os valores se adensam. O tempo biográfico tem andamento como na música desde o allegro da infância que aparece na lembrança luminoso e doce, até o adagio da velhice. A sociedade industrial multiplica horas mortas que apenas suportamos: são os tempos vazios das filas, dos bancos, da burocracia, preenchimento de formulários... Como alguns percursos obrigatórios na cidade, que nos trazem acúmulo de signos de mera informação no melhor dos casos; tais percursos sem significação biográfica, são cada vez mais invasivos.

Objetos Biográficos e Objetos de Status

Na Pequena História da Fotografia e em Paris, Capital do Século XIX, Benjamin descreve o interior dos lares burgueses, a intimidade atapetada e macia, os detalhes da decoração que procuram marcar a singularidade de seus proprietários. Criamos sempre ao nosso redor espaços expressivos sendo o processo de valorização dos interiores crescente na medida em que a cidade exibe uma face estranha e adversa para os seus moradores. São tentativas de criar um mundo acolhedor entre as paredes que o isolam do mundo alienado e hostil de fora. Nas biografias que colhi, as casas descritas tinham janelas para a frente; ver a rua era uma diversão apreciada não havendo a preocupação com o isolamento, como hoje, em que altos muros mantêm a privacidade e escondem a fachada. Fui tentada a rever uma oposição, que há muito venho fazendo ao comparar lembranças, a oposição entre objetos biográficos e objetos de status. Se a mobilidade e a contingência acompanham nossas relações, há algo que desejamos que permaneça imóvel, ao menos na velhice: o conjunto de objetos que nos rodeiam. Nesse conjunto amamos a disposição tácita, mas eloqüente. Mais que uma sensação estética ou de utilidade eles nos dão um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa identidade; e os que estiveram sempre conosco falam à nossa alma em sua língua natal. O arranjo da sala, cuja cadeiras preparam o círculo

das conversas amigas, como a cama prepara o descanso e a mesa de cabeceira os derradeiros instantes do dia, o ritual antes do sono. A ordem desse espaço nos une e nos separa da sociedade e é um elo familiar com o passado. Quanto mais voltados ao uso quotidiano mais expressivos são os objetos: os metais se arredondam, se ovalam, os cabos de madeira brilham pelo contato com as mãos, tudo perde as arestas e se abranda. São estes os objetos que Violette Morin^3 chama de objetos biográficos, pois envelhecem com o possuidor e se incorporam à sua vida: o relógio da família, o álbum de fotografias, a medalha do esportista, a máscara do etnólogo, o mapa-múndi do viajante... Cada um desses objetos representa uma experiência vivida, uma aventura afetiva do morador. Diferentes são os ambientes arrumados para patentear status, como um décor de teatro: há objetos que a moda valoriza, mas não se enraízam nos interiores ou têm garantia por um ano, não envelhecem com o dono, apenas se deterioram. Só o objeto biográfico é insubstituível: as coisas que envelhecem conosco nos dão a pacífica sensação de continuidade. Reconhece Machado de Assis:

Não, não, a minha memória não é boa. É comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras, nem nomes, e somente raras circunstâncias. A quem

As coisas que modelamos durante anos resistiram a nós com sua alteridade e tomaram algo do que fomos. Onde está nossa primeira casa? Só em sonhos podemos retornar ao chão onde demos nossos primeiros passos. Condenados pelo sistema econômico à extrema mobilidade, perdemos a crônica da família e da cidade mesma em nosso percurso errante. O desenraizamento é condição desagregadora da memória.


Uma idéia-mestra para análise seria a de uma separação de um espaço privado, pessoal e o espaço público, anônimo. Creio que ainda se possa ir além e aprofundar essa distinção em termos de psicologia social do espaço vivido. Tomemos um dos exemplos dados por Benjamin: as fotografias familiares que estão em cima de um móvel numa sala de visitas burguesa. A sua presença física tem que ser lida fenomenologicamente. E aqui a visada intencional da pessoa que colocou aquele retrato sobre o móvel é que deve passar pelo crivo do intérprete.

  1. A foto do parente que já morreu pode ser contemplada pelo dono da casa como um preito sentido à sua memória. Estamos, portanto, em pleno reino de privacidade, tout court, que interessa e afeta a relação pessoal, íntima, do recordado e do recordador.
  1. A foto daquele mesmo parente poderia ter sido colocada com o espírito de quem faz uma exposição que interessa o olhar do outro – o olhar social. Por essa visada a foto sobre o móvel carece de uma aura afetiva própria e ganha outra aura, a do status, onde estão embutidos valores de distinção, superioridade, competição, na medida em que o morto foi uma pessoa importante, logo dotada de valor-de-troca. Um olhar inibe o outro: são abordagens qualitativamente excludentes. O objeto ou é biográfico, ou é signo de status, e, como tal, entraria para a esfera de uma “intimidade”, entre aspas, ostensiva e publicável, que já faz parte da História das Ideologias e das Mentalidades, de que Benjamin foi um admirável precursor. Se essa observação faz sentido, eu diria que o burguês, enquanto agente e produto do universo de valores de troca, não pode refugiar-se autenticamente na esfera da intimidade afetiva, pois até mesmo os seus objetos biográficos podem converter-se – e freqüentemente se convertem – em peças de um mecanismo de reprodução de status. A sociedade de massas estendeu e multiplicou esse fenômeno e, ao mesmo tempo, o dissipou e o desgastou criando o objeto descartável. A sociedade de consumo é apenas mais rápida na produção, circulação e descarte dos objetos de status. E certamente menos requintada e mais pueril do que a burguesia francesa ou alemã do começo do século. Mas não mais cruel.

Gepetto aconselhava o teimoso Pinóquio, cabeça de pau:

  • Não jogue nada fora. Isso um dia pode servir para alguma coisa!

(Este conselho os velhos vivem repetindo: eles não conseguiram assimilar ainda a experiência do descartável que lhes parece um desperdício cruel. Por isso o armário das vovós é cheio de caixas, retalhos e vidrinhos...)

Os meninos italianos ouviam de suas mães este conselho que Gepetto dava para o endiabrado Pinóquio.


Capturado pelos nazistas, Amadeu conheceu um extremo despojamento, foi privado de tudo. As roupas largas dançavam no seu corpo e os sapatos, tirados de uma pilha sem numeração, feriam seus pés. Vagava pelo campo como um espectro faminto, ia resistindo no “avesso do nada”. Mas sempre havia algo a ser descoberto: um papel rasgado que a ventania arrastava, um santinho amassado que alguém esqueceu, um prego sem cabeça, uma chave partida. Ele ia guardando cada um desses fiapos abandonados. Por exemplo, de um papel rasgado fez um envelope, descreveu no avesso a sua agonia, endereçou ao irmão em Trieste e escondeu-o num buraco no chão. Dois anos depois seu irmão

recebia a carta. Alguém a havia encontrado e enviado pelo correio. Quem teria sido? Nunca souberam. A chave partida que recolheu num ralo e conservou por tanto tempo, ele transformou num instrumento heróico. Quando conduzido para Auschwitz, usou-a como chave de fenda na janelinha do banheiro do trem e daí saltou para a liberdade e para a vida.


A Luz de Estrelas Remotas

A memória opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente mas porque se relacionam através de índices comuns. São configurações mais intensas quando sobre elas incide o brilho de um significado coletivo. É tarefa do cientista social procurar esses vínculos de afinidades eletivas entre fenômenos distanciados no tempo. Como exemplo, cito uma frase do longo depoimento de Dona Jovina Pessoa, militante que acompanhou desde os primeiros vagidos anarquistas do Brasil, até a luta pela anistia dos presos políticos que ela travou já com 80 anos. Recordando sua formação nos bancos escolares ela diz:

É a história de um passado aberto, inconcluso, capaz de promessas. Não se deve julgá-lo como um tempo ultrapassado, mas como um universo contraditório do qual se podem arrancar o sim e o não, a tese e antítese, o que teve seguimento triunfal e o que foi truncado. Para tanto exige-se o que Benjamin, no seu ensaio sobre Kafka, chamava de atenção intensa e leve. Queria aproximar este conceito com o de Simone Weil, filósofa da atenção. Lendo a Ilíada como o poema da força, descobriu que Homero contempla com igual serenidade o destino dos gregos e dos troianos, ambos os povos submetidos às leis implacáveis da guerra e da morte. Esse rememorar meditativo é também o de Benjamin quando, ao rever os profetas do Antigo Testamento, encontra neles direção para ações presentes. Ou seja, fazendo da memória um apoio sólido da vontade, matriz de projetos. Isto só é possível quando o historiador provoca um rasgo no discurso bem costurado e engomado do historicismo e “se detém bruscamente numa constelação saturada de tensões”^5. Não o faz para registrar pormenores da mentalidade da época; é uma escolha que tem a ver com o sujeito definido pela ipseidade e não pela semelhança com outros, pela mesmidade. Um sujeito que tomou a palavra ou agiu, “causa de si mesmo” e decidiu eticamente criando um tempo privilegiado, um tempo forte dentro do correr plano dos dias. Se, para Benjamin, a rememoração é uma retomada salvadora

do passado, nos depoimentos biográficos é evidente o processo de re-conhecimento e de elucidação. Escutemos D. Risoleta, anciã negra e antiga cozinheira, que inicia o seu relato: – “Já está acabando este ano santo e agradeço por estar recordando e burilando meu espírito”. O recordar para ela é um tempo sabático e cada fato bruto é lapidado pelo espírito até que desprenda luz. Por estar cega e muito idosa, medita em sua experiência e tem autoridade de conselheira como prova o resto da narrativa. Quando o velho narrador e a criança se encontram, os conselhos são absorvidos pela história: a moral da história faz parte da narrativa como um só corpo, gozando as mesmas vantagens estéticas (as rimas, o humor...). Não tem o peso da moral abstrata, mas a graça da fantasia embora seja uma norma ideal de conduta transmitida^6. Hoje precisamos decifrar o que esquecemos ou não foi dito, como centelha embaixo das cinzas porque estamos entre dois momentos de uma narrativa. Não podemos dizer como o velho “– Mas a vida passou!”, nem como a criança “– Mas a vida ainda não chegou!”. Na chamada idade produtiva (os velhos são os “improdutivos” nas estatísticas), bem, nessa idade os conselhos foram perdidos, ai de nós! Adorno nas Minima Moralia já observa que não se dão mais conselhos, cada um fique com sua opinião. Temos que procurar sozinhos o conselho esquecido,

Notas

  1. Este texto é um excerto do capítulo 1 – “A substância social da memória” – “Sob o signo de Benjamin” [Walter Benjamin], do livro O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social (São Paulo: Ateliê Editorial, 2003), e foi autorizado por sua autora, Ecléa Bosi, à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, para compor este livreto, entregue a educadores da rede estadual participantes do “Programa Caminhos da Arte – A escola vai ao teatro”, durante a exibição da peça Primeira Pessoa, de Edla van Steen, com Eva Wilma e Vânia Pajares, sob direção de William Pereira, no Palácio dos Bandeirantes, em agosto de 2005.
  2. Ecléa Bosi é professora de Psicologia Social na Universidade de São Paulo e escreveu, entre outras, as obras Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias (Vozes), Simone Weil: a condição operária e outros estudos sobre a opressão (Paz e Terra), Rosalía de Castro: poesias (tradução, Brasiliense), Memória e sociedade: lembranças de velhos (Companhia das Letras), Velhos amigos (Companhia das Letras).
    1. “L’Objet”, Communications 13, 1969.
    2. No Orlando Furioso de Ariosto, as coisas perdidas na terra sobem para a lua onde permanecem, quem sabe à nossa espera.
    3. W. Benjamin, “Teses sobre a Filosofia da História” em Obras escolhidas, vol. I, São Paulo, Brasiliense, 1996. Tese 17.
    4. As condições para transmissão plena da experiência já não existem no mundo industrial, segundo Benjamin.