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Este documento aborda as complexidades na conceituação de normas jurídicas, discutindo as definições propostas por austin e kelsen, e a classificação de normas apresentada por von wright. Além disso, é explorado o traço de generalidade das normas e a relação entre o cumprimento da norma e sua justificativa.
Tipologia: Resumos
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No capítulo anterior, foi visto que o material jurídico produzido ou reconhecido como válido em uma comunidade política, segundo os critérios de identificação previamente definidos, pode ser representado de diferentes maneiras, conforme sejam adotados esses ou aqueles princípios de individualização. Naquela oportunidade, foi sugerida a utilização da expressão “disposição normativa” para designar as unidades básicas nas quais o direito é dividido. Nem sempre se poderá dizer que cada uma dessas unidades corresponde a uma norma. Isso por dois motivos: em primeiro lugar porque o vocábulo “norma” é dotado de tamanha vagueza e ambiguidade que sempre será possível encontrar algum significado que não coincida com o que se definiu como sendo uma norma. Ademais, já foi demonstrado que princípios de individualização diferentes produzem disposições jurídicas com estruturas lógicas diferentes. Por certo que algumas dessas estruturas identificadas podem ser chamadas de normas, conforme o princípio de individualização que se adote; é, contudo, igualmente certo que certas estruturas poderão ser identificadas como disposições jurídicas, sem que necessariamente tenham que ser qualificadas como normas. No que segue, serão apresentados alguns usos do termo “norma”. Feita a exposição, será proposta a adoção de determinado sentido, isso para evitar confusões desnecessárias.
Normas são seres esquivos, difíceis de serem definidos. Parte dessa dificuldade explica-se pelo fato de que o vocábulo pode ser usado para fazer
referência a objetos bem diferentes. Fala-se, por exemplo, que algo não deve ser feito, por assim ser a “norma da casa”; que determinada maneira de falar contraria as “normas gramaticais”; ou simplesmente que em certa comunidade é “norma” retirar o chapéu quando alguém mais velho se aproxima. O amplo espectro de significação do termo foi notado por Kelsen. Em sua “Teoria geral das normas”, ele diz:
“Fala-se de normas de Moral, de normas de Direito, como de prescrições para a conduta recíproca de seres humanos, e com isto se quer manifestar que aquilo que se qualifica como ‘Moral’ ou ‘Direito’ compõe-se de normas, é um agregado ou sistema de normas. Fala-se também de normas de Lógica, como de prescrições para o pensamento; (...) Supõe-se que há normas de pensamento, normas da Lógica, assim como normas da Moral e do Direito (...)” (Kelsen, 1986, pp. 1-2)
Mesmo se se restringir o campo de investigação – o que pode ser feito com o acréscimo de um qualificativo ao termo – e se perguntar, por exemplo, não qual é o significado de norma, mas de norma jurídica , ainda assim as respostas serão não somente variadas, mas possivelmente incompatíveis entre si. Essa discrepância se explica porque, de uma maneira geral, quem se preocupa em estudar as normas jurídicas precisa, antes, definir a expressão. E definir significa fazer escolhas, selecionar elementos que, identificados, autorizam aquele que define a dizer que tal objeto é um exemplo do termo ou expressão que se pretende definir. Ora, conforme sejam selecionados estes ou aqueles elementos, de ocorrência mais ou menos freqüente, ter-se-á uma definição que inclui em seu campo de abrangência um número maior ou menor de objetos. Austin, por exemplo, propõe uma definição bastante restritiva, ao dizer que normas jurídicas são (somente os) comandos, emitidos por alguém com poderes para tornar efetiva uma sanção prevista na hipótese do seu não cumprimento. Em suas palavras,
“Si tu formulas o declaras un deseo de que yo haga o me abstenga de hacer algún acto, y si me infligieres un daño en caso de que no me ajustara a tu deseo, la expresión o manifestación de tu deseo es un mandato. Un mandato se distingue de otras manifestaciones de deseo no por la forma en la cual se manifiesta el deseo, sino por el poder y la intención de quién emite el mandato de infligir un mal o un daño en el caso de que el deseo no sea satisfecho” (2002, p. 36). Kelsen, que não foge à tradição imperativista, define norma jurídica como sendo “o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém”
jurídica o conteúdo de sentido de um enunciado normativo. A ideia de um conceito como esse não é nova. Na verdade, Ross, que prefere falar em “diretivas” em vez de “normas”, já havia atentado para a diferença entre elas, as normas, e suas construções linguísticas:
“How can a directive be said to exist? A directive is the meaning content of certain linguistic constructions; it is consequently, an abstraction which lacks independent existence, and exists only by virtue of the linguistic constructions which express it” (Ross, 1968, p. 80) Ao que tudo indica, a diferenciação proposta por Ross apóia-se em, ou quiçá expressa outra distinção, ainda mais antiga, utilizada pelos autores que se dedicaram ao estudo da semiótica. Em sua “Introduction to Semantics”, Carnap faz saber que a semiótica, entendida como ciência da linguagem, divide-se em semântica, sintaxe e pragmática, e tem por objeto de estudo as unidades últimas de expressão, chamadas de signos (1946, p. 9). Um signo é composto por dois elementos: o indicador (ou expressão) e o indicado (ou designatum). Por seu turno, a semântica é o campo da semiótica que se preocupa com o estudo da relação entre um e outro, vale dizer, da relação entre o indicador e o indicado, independentemente de quem está usando a linguagem (quando então se está diante da pragmática) e de quais são as relações entre as expressões utilizadas (sintaxe). Como esclarece Warat,
“para Carnap, o signo é composto por dois elementos: indicador , situado no plano da expressão, de natureza sempre material (som, grafia, gesto), e o indicado , constituído pela situação significativa (fenômeno, fato, situação do mundo), que conseguimos comunicar mediante o indicador. O signo seria uma realidade bifásica e seu estatuto lógico seria o de uma relação” (1995, p. 39) Ora, se observarmos a distinção feita por Ross entre diretivas e suas construções linguísticas, não teremos dificuldade em perceber que ela (a distinção) reproduz no campo do discurso normativo a separação feita na semiótica entre expressões e seus significados. Nesse prisma, a norma se mostra como o conteúdo de sentido (indicado ou significado) de uma expressão linguística, a qual, por pertencer ao discurso normativo, pode ser chamada de enunciado normativo. Feitas essas primeiras considerações sobre as dificuldades que envolvem a conceituação das normas jurídicas, e adotada uma concepção fraca, segundo a qual uma norma é o conteúdo de sentido de um enunciado normativo, pode-se, agora, investigar os diferentes fenômenos
suficientemente frágil para que seja compatível com o maior número possível de decisões no campo dos problemas mencionados. Essas exigências são satisfeitas por um modelo semântico, compatível com as mais variadas teorias sobre a validade. (...) O ponto de partida desse modelo consiste na diferenciação entre norma e enunciado normativo” (2008, pp. 52-53).
reconhecidos pela comunidade linguística de um modo geral como exemplos do termo norma. Esse é o tema do próximo item. Por se tratar de classificação amplamente aceita pelos teóricos do direito, e especialmente porque dela se vale Raz em seu “The concept of a legal system”, obra de significativa importância para o presente trabalho, será usada a tipologia que G. H. von Wright sugere em seu “Norma y acción”.
Não obstante o que se falou no final no item anterior, ainda há outros motivos para a escolha de von Wright. Sua escolha parece justificar-se pelo fato de que sua preocupação não foi vincular um conceito específico de norma a uma teoria sua, pressuposta; tal como fizeram, por exemplo, Austin, Kelsen e Luhman. Antes, o que ele pretendeu foi tão-só elencar os diferentes usos que se faz do termo 53. Em “Norma y acción”, von Wright lista três tipos principais e três tipos secundários de normas. Enquadram-se entre os principais as regras constitutivas (ou simplesmente regras, como ele prefere chamar), as regras técnicas e as prescrições ; entre os tipos secundários estão as normas ideais , os costumes e as normas morais. Vejamos no que consiste cada um desses tipos. Antes, porém, cabe mencionar que daqui para frente os termos “norma” e “regra” serão usados como sinônimos. Comecemos pelas prescrições.
Prescrições
Prescrições são ordens ou permissões dadas por alguém que se encontra em uma posição de autoridade a alguém que a ele se subordina (von Wright, 1970, p. 27). Enquanto tais, expressam a vontade da autoridade de que um ou mais indivíduos comportem-se de determinada maneira, não de outra. As
(^53) Da mesma forma, Ross também crê que von Wright, em “Norma y Acción”, não apresenta nenhuma definição de norma: “Norm is a term widely used in legal theory, sociology, linguistics, moral philosophy and logic, but there is no common agreement about its sense. It is in fact used most frequently without being defined at all. This is true, for example, of von Wright, although one of his books is chiefly concerned with norms” (1968, p. 78).
Por outro lado, uma norma hipotética só pode ser adequadamente cumprida se em sua formulação constar a própria condição de aplicação. Por exemplo, o conteúdo da norma “caso venha alguém, pare” é “pare”. Mas a ordem de parar, nesse exemplo, não deve ser cumprida por todos os que estiverem em movimento, mas tão-só por aqueles que, sobre estarem em movimento, percebem que alguém se aproxima. “Alguém se aproximar” é, portanto, condição de aplicação dessa norma. E conhecer tal condição não é possível com a simples identificação do conteúdo normativo, que, no caso, é simplesmente “pare”. Necessário se faz saber de antemão como a norma foi linguisticamente formulada.
[4] Autoridade é quem prescreve, é aquele que “ordena, permite o prohíbe a determinados sujetos hacer determinadas cosas en determinadas ocasiones” ( Idem , p. 91). Conforme se trate de um agente empírico ou supra-empírico, fala- se, respectivamente, em normas positivas ou teônomas. Aqui não se discutirá quem são ou como atuam os agentes supra-empíricos, como também não serão objeto de estudo as normas teônomas. A autoridade normativa é ainda utilizada como critério para separar as normas heterônomas das autônomas. Se a autoridade normativa não se identificar com o sujeito normativo, então a norma será heterônoma; do contrário, será autônoma.
Como é fácil de perceber, a grande maioria das normas que regulam a vida de uma comunidade são heterônomas, sejam elas normas morais, religiosas ou jurídicas. Isso porque, em uma comunidade que pretenda ser razoavelmente organizada, é conveniente que algum indivíduo ou órgão colegiado estabeleça regras de comportamento, diga como devem se comportar os demais membros do grupo. Em casos como tais, as normas são heterônomas porque a autoridade normativa (seja um só indivíduo ou um órgão colegiado inteiro) não se identifica com os sujeitos normativos (os demais membros da coletividade). Segundo von Wright, são exemplos de normas autônomas tanto aquelas desprovidas de autoridade normativa, quanto aquelas outras, produzidas pelo próprio sujeito normativo ( Idem , p. 93). Algumas normas morais se enquadram na primeira hipótese; na segunda podem ser colocadas aquelas normas que von Wright chama de auto-comandos ( Idem , p. 93).
[5] São sujeitos normativos aqueles a quem a prescrição se dirige ( Idem , p. 93). Quando dirigidas a um indivíduo específico ou a um grupo determinado de
indivíduos específicos, fala-se de prescrições particulares ; quando dirigidas a todos os indivíduos, sem restrições, ou a um grupo de indivíduos que corresponda a uma determinada descrição, então se fala que a prescrição é geral ( Idem , p. 94). Exemplos do primeiro caso são as prescrições “Pegue o livro, Maria” e “João e Maria, peguem seus livros”. Exemplos do segundo caso são prescrições como “Não matarás” e “Peguem os livros todos aqueles que forem fazer a prova”. As prescrições gerais podem ainda ser consideradas conjuntiva ou disjuntivamente gerais: são conjuntivamente gerais aquelas que se referem a todos os membros de uma classe, tais como a prescrição “Todos os alunos deverão fazer a prova”; são disjuntivamente gerais as que dizem respeito a algum ou a alguns indivíduos indeterminados de uma classe, tais como a prescrição “Alguém, nesta sala, deverá fazer uma lista de chamada”. O exame do traço de generalidade das normas será retomado mais abaixo, no item 4.3.
[6] A ocasião de uma prescrição é sua referência temporal. Quando se faz menção a uma ocasião em especial ou a um número finito de ocasiões, fala-se em prescrição particular em relação à ocasião. São exemplos as seguintes prescrições: “Levante-se agora” e “Levante-se nas seguintes ocasiões: quando se aproximar o Sr. José, e quando se aproximar a Srª Maria”. Quando se refere a um número ilimitado de ocasiões, diz-se que se trata de prescrição geral em relação à ocasião. As prescrições desse segundo tipo podem ainda ser divididas, ao menos em tese, em conjuntivamente gerais em relação à ocasião e disjuntivamente gerais em relação à ocasião. Exemplifica o primeiro caso a prescrição “levante-se sempre que alguém se aproximar”. No que concerne ao segundo tipo de prescrições gerais, cabe anotar que von Wright não aceita sua existência como possível ( Idem , p. 96).
Embora não faça menção expressa à distinção feita por von Wright entre normas gerais em relação à ocasião e normas gerais em relação ao sujeito normativo, o Ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, acaba por aceitar tal diferenciação. Isso fica patente em sua manifestação nos debates que antecederam o julgamento da ADI 2.925-8/ DF 54 , quando o Pleno do Supremo
(^54) Naquela ação se questionou a constitucionalidade do art. 4º, I, “a”, “b”, “c”, “d” e “e” da Lei 10.640/ 2003, que assim dispunha: Art. 4º Fica o Poder Executivo autorizado a abrir créditos suplementares, observados os limites e condições estabelecidos neste artigo e desde que demonstrada, em anexo específico do decreto de abertura, a compatibilidade das alterações promovidas na programação orçamentária com a meta de resultado primário estabelecida no Anexo de Metas Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias 2003, para suplementação de dotações consignadas:
não criam obrigações no sentido mais estrito do termo, tal como exposto logo acima. Em seu conjunto, as regras do xadrez não descrevem o que é jogar xadrez; antes, dizem como se deve agir se se quiser jogar xadrez. Ou, o que dá no mesmo, dizem quais movimentos serão avaliados como corretos (válidos) ou incorretos (inválidos) do ponto de vista de quem pratica o jogo.
Em suma: regras constitutivas são, certamente, exemplos de regras ou normas, posto que correntemente denominadas como tais pela comunidade lingüística. Diferenciam-se, porém, das chamadas regras descritivas porque ultrapassam a simples descrição de regularidades empíricas; da mesma forma que se distanciam das simples prescrições, já que não ordenam nada, antes estabelecem que determinado movimento ou ação seja reconhecido como válido ou inválido, conforme o caso, por aqueles que conhecem as regras que constituem e dão forma ao jogo.
Regras ou normas técnicas
O terceiro grupo é formado pelas regras técnicas. Uma regra que pertença a essa classe especifica os meios necessários para que determinado fim seja obtido (von Wright, 1970, p. 29). São exemplos de regras técnicas as instruções sobre como usar algo, tais como “se quiser abrir esta lata de leite condensado, deverá usar um abridor de lata” ou “se quiser fazer com que seu computador fique mais rápido, deverá formatá-lo”. De acordo com von Wright, a formulação- tipo de uma regra técnica é uma oração condicional (que ele irá chamar de “enunciado anankástico”), em cujo antecedente se faz menção a algo que se deseja, e cujo conseqüente estabelece o que é devido para tanto ( Idem , ibidem. ). Por certo que nem toda oração condicional é um caso de regra técnica. Afinal, também as prescrições podem assumir a forma de normas hipotéticas.
O que diferencia, então, uma prescrição expressa de forma hipotética de uma regra técnica? Ao que parece, o que aparta os dois tipos de norma é o fato de que uma regra técnica indica o que deve ser feito para satisfazer certo desejo (de abrir a lata de leite condensado ou de fazer com que o computador fique mais veloz, por exemplo); ao passo que uma norma hipotética prescreve uma ação ou abstenção, caso se dê determinado estado de coisas , caso surja alguma contingência ( Idem , p. 30). Assim, se, por um lado, as normas
hipotéticas regulam nossa conduta, caso estejamos diante de certa contingência; por outro, as regras técnicas despontam no universo normativo como instruções sobre como materializar nossos anseios. Como bem explica Sgarbi,
“Nesse sentido, as ‘regras’ técnicas não estão destinadas a conformar a vontade do destinatário, senão para indicar que uma determinada atividade está condicionada a um determinado comportamento. Portanto, as regras técnicas não estabelecem um ‘dever’ (ou como se costuma dizer: um ‘dever-ser’), mas um ‘ter que’” (2007a, p. 117)
Regras ou normas ideais
A expressão “regras ideais” foi cunhada por G. E. Moore e, conforme von Wright, faz referência àquelas normas que têm mais relação com um “ser” do que com um “fazer”, tais como a que diz que um homem tem que ser generoso, sincero, justo, equânime; e aquela outra que fala que um soldado deve ser bravo e disciplinado ( Idem , p. 33). Segundo von Wright,
“Las reglas ideales están en estrecha conexión con el concepto de bondad. Las propiedades que un artesano, un administrador o un juez tienen que poseer son características, no de cada artesano, administrador o juez, sino de un buen artesano, administrador o juez. La persona que tiene las propiedades de un bon lo-que-sea en un grado supremo le llamamos frecuentemente un lo-que-sea ideal. Lo mismo puede decirse de los relojes, coches y otras cosas que sirven para diversos propósitos humanos (1970, p. 33)” As regras ideais são normas que estabelecem, portanto, um padrão, com base no qual se pode avaliar os membros de certa classe e dizer deles que são bons membros, exemplos de indivíduos virtuosos. Como ressalta von Wright, deve-se tomar cuidado para que não se confunda tais normas, que estabelecem um padrão de virtude, com aquelas chamadas de princípios morais , as quais são normas de ação moral (1970, p. 33). Da mesma forma, não é o caso de se pensar que as normas ou regras ideais são exemplos de regras técnicas. Afinal, enquanto nas primeiras as qualidades de um indivíduo que determinam sua excelência como membro de certa classe não estão causalmente relacionadas com o ideal que se tem dos membros dessa classe, antes compõem o próprio conceito de “bom membro” da classe; as segundas estabelecem o que se deve fazer de modo a produzir uma conseqüência que tenha sido causada pela própria ação ( Idem , p. 34). Se as regras ideais dizem como eu devo ser para que possa ser visto como exemplar virtuoso de uma classe que contenha vários outros indivíduos, as regras técnicas dizem o que devo fazer para produzir determinada alteração no estado de coisas atual.
definem o que se deve entender por isso ou aquilo; no caso, o que se deve entender por promessa. Atente-se para o fato de que o “serem cumpridas” faz parte da própria estrutura conceitual das promessas. Nas palavras de von Wright, “por definición, uno puede decir, las promesas deben cumplirse” ( Idem , p. 31). Outras normas morais, por seu turno, assemelham-se aos costumes.
Em verdade, o termo “moral” evoluiu a partir do vocábulo latino “ mos ”, que significa justamente costume. Isso parece reforçar a tese de que a moralidade, entendida como conjunto de normas morais que norteiam certa comunidade, nada mais é do que o conjunto de costumes dessa mesma comunidade. Se assim for, então as normas morais são todas elas normas consuetudinárias. De fato, algumas normas consuetudinárias possuem inegável conteúdo moral, como as que se referem à vida sexual dos integrantes da comunidade, e examiná-las como tais pode ser extremamente proveitoso (von Wright, 1970, p. 31). Por outro lado, continua von Wright, parece um pouco forçado estudar, por exemplo, a obrigação de se cumprir as promessas a partir da pressão normativa exercida pelos costumes. Não se pode, ainda, deixar de notar que é perfeitamente possível que existam normas de caráter consuetudinário desprovidas de qualquer conteúdo moral, a exemplo das normas de mera coordenação, como a que estabelece o lado da rua pelo qual as pessoas devem seguir.
Talvez se avance mais ao explicar as normas morais em termos de prescrições. Nesse prisma, os “comandos” morais aparecem ora como mandamentos de Deus (concepção teológica da moralidade), ora como diretrizes para se alcançar certo fim (concepção teleológica), ora como prescrições autônomas, que existem por si só, independentemente de uma autoridade emanadora (concepção deontológica) (von Wright, 1970, pp. 31-32). De todo modo, parece razoável colocar as normas morais em um grupamento autônomo, isso em vista da dificuldade de reconduzir todas elas a somente um grupo.
Como se viu, o vocábulo “norma” pode ser usado para fazer referência a objetos de natureza bem diferente. Fala-se em normas para designar, por exemplo, comandos emitidos por alguém e direcionados a outra ou a outras pessoas; para significar obrigações morais ou costumes centenários; assim como também para individualizar as regras que definem e conformam dada atividade. A pluralidade de significados do termo em estudo é um fato incontornável. E como é da natureza dos fatos serem teimosos, parece conveniente especificar um pouco mais o sentido que se atribuirá ao vocábulo daqui para frente. Em ao menos um de seus sentidos, norma significa “regra”, “padrão” (HOUAISS, VILLAR e FRANCO, p. 2027) e indica tipos , não objetos ou indivíduos particulares. Fala-se das regras com essas características que são gerais. Não são somente as normas gerais que aparecem em nosso dia-a-dia. Como se viu no item anterior, o universo normativo é formado por normas gerais e particulares, seja em relação ao sujeito normativo, seja no que concerne à ocasião. São as regras gerais, porém, que merecem atenção, isso porque são elas (não as particulares) que atuam como o grande instrumento de controle social nas comunidades modernas. Confira-se o que diz Hart sobre o ponto:
“Em qualquer grande grupo, as regras gerais, os padrões e os princípios devem ser o principal instrumento de controle social, e não as diretivas particulares dadas separadamente a cada indivíduo. Se não fosse possível comunicar padrões gerais de conduta que multidões de indivíduos pudessem perceber, sem ulteriores diretivas, padrões esses exigindo deles certa conduta conforme as ocasiões, nada daquilo que agora reconhecemos como direito poderia existir. Daí resulta que o direito deva predominantemente, mas não de forma alguma exclusivamente, referir-se a categorias de pessoas, e a categorias de actos, coisas e circunstâncias, e o seu funcionamento com êxito sobre vastas áreas da vida social depende de uma capacidade largamente difundida de reconhecer actos, coisas e circunstâncias particulares como casos de classificações gerais que o direito faz” (1994, p. 137) No que segue, será examinado o traço de generalidade das normas. Conquanto o mundo se nos apresente, no mais das vezes, como uma totalidade não organizada de objetos e indivíduos particulares, tendemos a agrupá-los em classes ou tipos, identificados a partir do reconhecimento de certas características, que lhe são próprias. Um pequeno instrumento de madeira, cilíndrico e colorido sobre a mesa é um dos múltiplos objetos que compõem o conjunto formado por todos os lápis de cor existentes no mundo.
tratados como iguais por conta da propriedade selecionada (Schauer, 2004, p. 80).
Quando chamamos de livro o volume contendo as obras completas de Edgar Allan Poe, somos forçados a colocá-lo no mesmo conjunto de objetos que contém, por exemplo, a versão encadernada das Histórias da Turma da Mônica, do nacionalmente conhecido Maurício de Souza. Sem dúvida, tal generalização não toma como relevante o fato de que o primeiro é tido como o pai do romance noir , gênero literário essencialmente sombrio e violento, enquanto o segundo fez fama por produzir quadrinhos para o público infantil. Se alguém der dinheiro para que uma criança vá à livraria comprar um livro, não poderá dizer que ela não o fez, caso retorne com um exemplar da obra do autor de Os Crimes da Rua Morgue. Se o intento for retirar do seu campo de liberdade de escolha livros destinados ao público adulto, pode-se acrescentar ao termo o qualificativo “infantil”, de tal modo que as obras de Poe restem excluídas do conjunto indicado.
O traço da generalidade das normas, tão bem explorado por Schauer, não estava no foco principal das atenções de von Wright. Para esse último autor, mostrou-se mais importante descrever o universo normativo, nas suas diversas manifestações linguísticas, ou seja, a partir dos usos igualmente aceitáveis que são feitos do termo por quem dele se vale em diferentes contextos discursivos. Isso não significa, porém, que von Wright não tenha se dado conta de que, para além do universo das prescrições, outras normas também são inegavelmente gerais. Por certo que sim. Se tomarmos, por exemplo, os costumes e, assim como fez von Wright, ressaltarmos sua condição de “prescrições anônimas” – já que desprovidas de autoridade normativa – seremos forçados a reconhecer neles o traço de generalidade, seja em relação ao sujeito normativo, seja em relação à ocasião. Do contrário, seria impossível transmitir seu conteúdo normativo aos demais membros da comunidade. O mesmo pode ser dito sobre as normas morais, claramente dirigidas aos seres humanos, na sua totalidade; e passíveis de serem aplicadas em diferentes oportunidades. Há ainda outros exemplos, mas não parece ser o caso de elencá-los. Por ora, basta ter em mente que a generalidade é traço característico das normas, de um modo geral, e não das prescrições, como uma leitura apressada pode sugerir.
As normas possuem uma estrutura lógica. Segundo uma visão bastante difundida, toda norma contém um predicado fático e um conseqüente 55. Canonicamente, “ se x, então y ”. Naturalmente, nem todas elas são, de fato, expressas de forma canônica, conquanto toda norma possa ser reformulada de forma hipotética (Schauer, 2004, p. 82). Um aviso colado na parede, com os escritos “é proibido fumar” pode ser reformulado como “ se alguém quiser fumar, então deverá sair do recinto” ou “ se alguém acender um cigarro dentro do recinto, então deverá ser expulso”. Por outro lado, toda norma formulada canonicamente pode ser reformulada como a proibição, obrigação ou permissão de se fazer isso ou aquilo. O predicado fático especifica o alcance da norma (Schauer, 2004, p. 81), as condições que, presentes, impõem a aplicação do conseqüente. Em se tratando de normas gerais, o predicado é expresso com o auxílio de tipos, nunca de objetos singulares. No predicado fático previsto no art. 155 do Código Penal, por exemplo, pode-se ler “subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel”. Veja-se que verbos ou expressões verbais como “afanar”, “retirar de alguém” ou “apropriar-se” são exemplos ou instâncias de “subtrair”, ou seja, são ações que podem ser corretamente descritas como exemplificativas do ato de subtrair. A expressão “coisa alheia móvel”, por seu turno, refere-se a todo objeto corpóreo que, não sendo um bem imóvel, pertença a qualquer pessoa diferente de quem a lê – de que são exemplos o automóvel do vizinho do leitor, todas as mini-saias existentes no mundo e o dinatron oscilador do Laboratório da Faculdade de Engenharia da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Verificar se um objeto pertence ao conjunto das “coisas alheias móveis”, e se alguém realmente praticou um ato que está contido no conjunto de atos que se deixam definir como instâncias da conduta de “subtrair”, é fundamental para decidir se é ou não o caso de aplicar, por exemplo, o conseqüente previsto no art. 155 do Código Penal, qual seja, pena de reclusão de um a quatro anos e multa. O conseqüente é, dessa forma, a ação que deve ser praticada se, e
(^55) Sobre o ponto, conferir Schauer, 2004, p. 81.
abaixo. Antes, porém, é o caso de investigar se, e como é possível acessar as razões ou justificativas que subjazem às normas.
Por vezes, descobrir o que justifica uma norma é tarefa tranqüila; em certos casos, porém, exige do intérprete grande esforço hermenêutico. A título de exemplo, vale lembrar que o legislador, ao instituir o Código Penal, nos ajudou a descobrir a razão de ser das normas incriminadoras, ao separá-las, segundo o “bem jurídico” tutelado. Por isso sabemos que a proibição do furto e do roubo são maneiras de se assegurar a proteção do patrimônio (daí se falar em crimes contra o patrimônio); da mesma forma que sabemos que a proibição do homicídio é uma estratégia política para incrementar a proteção do bem jurídico “vida” (naturalmente que se trata de exemplo de crime contra a vida).
Em outros casos, contudo, restarão dúvidas consideráveis sobre o que realmente se pretendeu resguardar. Veja-se o disposto no art. 164, § 3º da Constituição Federal, nos termos do qual “as disponibilidades de caixa da União serão depositadas no banco central; as dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou entidades do Poder Público e das empresas por ele controladas, em instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos previstos em lei”. Parece razoável perquirir se o objetivo de tal norma foi reservar aos bancos oficiais, com exclusividade, o poder de administrar as disponibilidades de caixa do Distrito Federal, dos Estados e Municípios (o que certamente lhes agrada), se se pretendeu afastar dos bancos ditos “não oficiais” a possibilidade de administração dos recursos públicos (já que, do contrário, poderia haver margem para negociações pouco republicanas entre tais entidades privadas e os governos locais), ou mesmo se se pretendeu fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
Independentemente de ser mais ou menos fácil apontar a razão que justifica a existência desta ou daquela norma, o fato é que sempre podemos concebê-las (as normas) como instrumentos capazes ou potencialmente capazes de promover sua razão de ser. Aqui cabe fazer outra observação, não menos importante. Como se afirmou logo acima, ao criar uma norma geral, o legislador vincula a aplicação da conseqüência jurídica à ocorrência de atos ou fatos descritos, em regra, por meio de tipos. Verificar se um caso concreto encontra-se ou não descrito em uma norma consiste basicamente na atividade de investigar se as propriedades que definem o tipo encontram-se presentes no
caso concreto. Sendo a resposta positiva, impõe-se (ao menos em linha de princípio) a aplicação da conseqüência prevista; sendo negativa, não é o caso de aplicá-la (ao menos em linha de princípio).
O cumprimento da norma aumenta as chances de se promover sua própria justificação, sua razão de ser. Dar cumprimento à norma que proíbe o homicídio é o que se espera de todo e qualquer membro da comunidade jurídica. Isso porque a conduta de não matar é vista pelo legislador como causalmente ligada à proteção da vida. Naturalmente, não se trata de ligação causal no sentido estrito do termo, vale dizer, não se sustenta aqui que a conduta de não matar seja não só necessária, mas também suficiente para a proteção da vida. Por certo que não é esse o caso. Obviamente, existem práticas diferentes de “não matar”, capazes de promover igualmente ou quase que igualmente o bem vida. Cite-se como exemplos as condutas de alimentar uma criança desnutrida ou de proteger do frio um mendigo exposto ao rigor de uma noite de inverno na Serra Gaúcha. O que se tem em mente, com a proibição do homicídio, é que a conduta de não matar aumenta significativamente as chances de se proteger o bem “vida”.
Schauer dá o nome de “causalidade probabilística” à relação existente entre a ocorrência do predicado factual e a justificação da própria norma (Schauer, 2004, p. 86 e segs). No seu entender, a ocorrência do fato descrito no predicado factual incrementa as chances de ocorrência da justificação da norma, o que acaba por legitimar a exigência feita (seja ela uma proibição ou obrigação) ou a liberdade concedida. Confira-se o que ele diz sobre a norma que, visando incrementar o bem-estar dos clientes de um restaurante, proíbe a entrada de cachorros:
“La condición de perro de Angus no sólo no es una condición suficiente para la ocurrencia de los comportamientos molestos, sino que tampoco es una condición necesaria. Otros animales o niños pequeños podrían igualmente hacer ruido (aunque probablemente no ladrar), correr, saltar y comer restos de comida del suelo. La propiedad de ser perro no es, por lo tanto, en ningún nivel de justificación, una condición necesaria para la ocurrencia de los hechos que constituyen la justificación de la regla. (…) Si la regla es ‘no se admiten perros’ y no algo más complicado, entonces el predicado fáctico de la regla, la condición de perro simpliciter , no es una enunciación de las condiciones individualmente necesarias y conjuntamente suficientes para la producción de las consecuencias temidas. Más bien el predicado fáctico – perro en restaurante – representa un conjunto de hechos que se hallan en una relación de causalidad probabilística con la justificación. Si ‘perro en un restaurante’ es el predicado fáctico de la regla e ‘interrupción molesta en un