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Nem por isso a (longa e) “Patética entrevista com Adelaide Carraro – a escritora mais controvertida do Brasil” deixa de ser um documento importante.
Tipologia: Notas de aula
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“ – O que você vai fazer?
23 livros publicados em 12 anos (11 apreendidos pela Censura), 5 processos, 18 prisões, dois milhões de exemplares vendidos. [...] uma mulher cuja vida parece um tango argentino: aos 4 anos, depois de ver seu pai assassinado, foi internada num asilo de órfãos, sendo espancada e passando fome e frio quase todos os dias. Saiu dali, tuberculosa, para um sanatório em Campos de Jordão. A tudo isso Adelaide sobreviveu, graças à sua energia vital e à sua incrível determinação. Só se entregou ao desespero – tomou veneno – depois que a Censura começou a persegui-la. Espero que os censores que estiverem lendo esta nota se sintam realizados. Assim o cartunista Jaguar apresenta a entrevista d’ O Pasquim (nº 427, ano IX) de 8 de setembro de 1977. Uma biografia, sem dúvida, digna de personagem, não apenas de um tango, mas também dos romances da própria Adelaide; tanto assim, que ela mesma protagoniza, por exemplo, Eu e o governador e Gente – O dia em que fui presa , além de elaborar com esmero seu perfil de autora- personagem – a bela órfã, a sedutora destemida – nas entrevistas e apresentações de seus livros. Ressalte-se no trecho acima a aparente contradição (dizemos aparente porque não se pode ignorar, também, a relação de causalidade) entre o significativo sucesso de vendas – em país, lembremos sempre, majoritariamente ágrafo até nossos dias – dos livros de Adelaide e sua perseguição pelo aparato estatal. Perseguição, por sua vez, que talvez seja a principal razão, senão a única, para a célebre publicação da intelectualidade combativa acolher a escritora em suas páginas.
(^36) “Sinto-me fortemente atraída pelo camp , e quase tão fortemente ofendida por ele.”
Esse acolhimento, no entanto, se dá sob condições que, se não chegam a surpreender, nem por isso deixam de propiciar momentos de embaraço. Desconhecedores da literatura de Adelaide, os entrevistadores Jaguar, Ziraldo e Iza Freaza concentram sua curiosidade nos dados biográficos da autora. Ignorância que vale um comentário sobre a auto-indulgência de intelectuais reconhecidos como tal quando concedem a autores menores, como Adelaide Carraro e Cassandra Rios, o beneplácito de um diálogo. Entrevistando Cassandra para o jornal gay Lampião da esquina , o escritor João Silvério Trevisan assume: “Não conheço muita coisa de sua obra, conheço pouquíssima coisa”, e no entanto se permite uma teorização tão ambiciosa quanto confusa: “[...] seus personagens são um pouco figuras ultra-sensíveis em luta com a sensibilidade deles, ou melhor, em luta com a sensibilidade do mundo exterior.” (LAMP, 9) Adelaide corta um dobrado maior com a equipe d’ O Pasquim. Iza Freaza interroga-lhe: “ A falência das elites , por exemplo, é sobre o quê?”, ao que a escritora responde com simplicidade: “É sobre as elites”. Poderia mesmo ter dito: é sobre a falência das elites. Mais surpreendentes, porém, são os questionamentos do cartunista Ziraldo, que chega a perguntar, sem pejo: “Você escreve bem?”, e ainda, inexcedível: “Você era bonita?”,^37 indelicadeza que o colega Jaguar se apressa em consertar, resgatando a elegância: “Se ela é bonita hoje...” Nem por isso a (longa e) “Patética entrevista com Adelaide Carraro – a escritora mais controvertida do Brasil” deixa de ser um documento importante para quem deseje debruçar-se sobre seu trabalho. Reconhecendo esse fato, a autora a inclui em seu autobiográfico Gente – o dia em que fui presa , “[...] porque ela muito diz a meu respeito, sobre as lutas que tive que enfrentar contra tudo e contra todos, vencendo preconceitos e outras barreiras” (GT, 163), aproveitando para, de um lado, investir contra o “moralismo carcomido e falso” e, de outro, alardear o intento salvacionista de seus livros, que procurariam mostrar, especialmente a “mocinhas e garotos, jovens etc.” os “perigos que rondam quando
(^37) Outra indagação do cartunista diz respeito à existência de transposições de obras de Adelaide Carraro para o cinema. A autora responde, exigente: “Tive vários pedidos, mas não encontrei nenhum diretor que eu achasse bom. Não vou dar meu livro para qualquer um filmar”. Consta, de todo modo, que Luis Castellini Filho teria adaptado e dirigido Elite devassa (o mesmo diretor teria adaptado Fogo – só para homens ). Segundo fãs de Adelaide, Fauzi Mansur, outro prolífico diretor de pornochanchadas, teria adaptado Escuridão.
um texto ‘limpo’, bem acabado: “Todo escritor tem que ter alguém que corrija, né? Já tenho o trabalho de escrever; se for me preocupar em pôr os chapeuzinhos, os graves e as reticências...” (GT, 180). Revisões à parte, persistem nas edições de Carraro deslizes ou desatenções à norma culta; ora erros de sintaxe, ora ausência de pontuação (“Juro Carmem”), porém mais comumente incorreções ortográficas como “estremamente”, “expremeu”, “amenisar”, “humedecia”, “quasi” (vocábulo que, diga-se de passagem, constava do português abrasileirado de Mário de Andrade), “dansavam” e “Pôcha”. Não ignorando que erros possam ser simplesmente erros, é sugestivo pensar que essas impurezas que pontuam o texto adelaideano surjam (lembremos das pedrinhas no poema Catar feijão, de João Cabral de Melo Neto) como lembranças ao leitor desavisado de que se trata de uma narrativa sem retoques, revelando um mundo também ele não retocado: ou seja, assim como os poucos acordes, a distorção e a recusa à melodia do punk rock refletem um cenário de no future , em que pulsa uma juventude prenhe de revolta e energia sexual, o texto sujo de Carraro seria, em sua imperfeição, a perfeita tradução de um mundo também repleto de fedor e sujeira. E de desejo latente. Cassandra Rios, maternalmente afetuosa em suas lembranças da colega dez anos mais velha, e que estreara na literatura quinze anos depois dela, afirma que “[...] a seu pedido, insistência do meu editor e de outros editores, que a editaram posteriormente, fiz comentários de capa, contra-capa e revisões de algumas de suas obras”, e que Adelaide, de saúde frágil (perdera um pulmão para a tuberculose) embora alta e corpulenta, produzia com um forte sentimento de urgência:
Adelaide só não estudava português e não se esmerava além do argumento porque, dizia-me, o seu tempo era muito precioso e curto, o que importava era a história que ela escrevia com sua letrinha e que às vezes um amigo caridoso passava à máquina para ela. [Dizia] que era assim que ela era, natural e autêntica, reconhecia que precisava respeitar seus leitores e fazer revisões dos seus livros, mas não gostava de fazer isso e o tempo voava! Que aquela era a sua arte, natural e espontânea, como deduzi do que ponderava. (MEZ, 97)
E conclui: “Arrojada, audaciosa, escrevia, como disse, compulsoriamente. Passou como um meteorito”. ( Idem , p. 98).
Cassandra não evita a ironia, ao grifar o advérbio que Adelaide terá pronunciado em lugar de compulsivamente. No entanto, o próprio depoimento dela, Cassandra, indica haver algo de compulsório, de fato, no modo como Adelaide produzia: uma obrigação de produzir muito, rapidamente, premida pelo tempo. O sentido de urgência condicionado pela saúde abalada. Em Cassandra, por sua vez, o emprego do tempo também se dá de modo obsessivo: ela procura desviar-se de toda atividade (a carreira política, o comércio de livros) que lhe tome o tempo da escrita, e escreve quase sem pausa (“Às vezes emendo 2, 3 dias escrevendo sem parar”), pagando inclusive o preço, literalmente, por não cuidar atentamente de aspectos burocráticos da profissão, como o recolhimento de direitos autorais. No seu caso, porém, a obsessão traduzida em atividade ‘compulsiva’ poderia ser creditada (a julgar por suas declarações) menos a uma consciência da brevidade da vida que ao compromisso com uma missão, a obediência ao dever de quem nasceu escritora. Quanto ao tempo cronológico de vida, a comparação entre ambas dá ‘empate técnico’: 67 anos para Adelaide, 69 para sua colega rival. O meteorito Adelaide gabava-se – aliás, com justiça – do sucesso de sua fórmula:
Sou chamada de “Adelaide Carraro, a escritora dos milhões de livros vendidos”. Pro Brasil, onde as pessoas não gostam de ler, essa é uma boa. Descobri um método de fazer o brasileiro ler. (GT, 181)
Esse método haverá de ser a fórmula da denúncia gozosa (dissemos antes: fito denunciatório + convite ao gozo), expressa de modo o mais direto, franco, possível, isto é, em aberta recusa à elaboração, ou mesmo à sofisticação geralmente encontrada naquilo que se convencionou chamar de literatura, ou ainda de alta literatura. Cai como uma luva na obra de Adelaide, portanto, a caracterização como contra-fogo , que Jean Tortel atribui àquilo que acredita poder ser pertinentemente chamado de “paraliteratura”:
Ela se apresenta como um contrafogo, uma compensação ao extremismo literário, a inimiga da preciosidade e do hermetismo. Para ela, o labirinto verbal torna-se uma via de comunicação aprisionada, na simplicidade, na inocência do dizer.^41
(^41) Apud CALDAS, op.cit ., pp. 81-82.
São Paulo viveu como um braseiro neste tempo. A polícia agia com rigor, e às vezes com exagero praticando as mais violentas barbaridades”; “Vera, assim é o nome da menina que entrevistei, trabalhava como doméstica e antes de voltar para casa passava pela cidade para apanhar o dinheiro do irmãozinho Vitor, para ajudar nas despesas da casa”; “Recolhimento Provisório de Menores, é uma vergonha para a cidade de São Paulo. Quem visitar essa organização e que aliás é uma desorganização ficará horrorizados, pois é um depósito fétido de jovens marginalizados, dotados de todas as características, que fariam inveja às subterrâneas prisões medieváis.
E ainda, ao mencionar a fuga do grupo de menores do referido Recolhimento: “Não conto como fugiram. Prometi ao menino que me contou o que aqui está escrito”. A narrativa de Os padres também amam , por sua vez, é precedida por um recado, em que a autora – enunciando, por sinal, uma pérola de seu moralismo conspícuo – afirma, não inventar, mas dar a conhecer uma história ao seu leitorado: “Leitor amigo, ao escrever este livro quero somente levar ao conhecimento do público brasileiro a estarrecedora estória dos padres que se desviam do caminho certo: a igreja.” (PTA, 7) Aqui, vemos alguns dos elementos do que Susan Sontag caracterizou como estilo camp : a inocência refletida numa terrível seriedade: “camp rests on innocence”(“O camp baseia-se na inocência”), “the pure examples of camp [...] are dead serious” (“Os puros exemplos do camp são tremendamente sérios”); e a solenidade como expressão, entre outras, do gosto pelo exagero. Se Marx iria gostar dos livros de Adelaide Carraro, como já se afirmou, é também de se imaginar que estes deleitariam a téorica estadunidense – ou que, quando menos, esta encontraria na obra de Carraro vasto material de pesquisa. A escritora parece muitas vezes acreditar, ingenuamente, que a realidade possa ser integralmente transposta para o romance, algo vedado até mesmo a Balzac. Antonio Candido, a propósito, observa que: “[...] o princípio que rege o aproveitamento do real é o da modificação , seja por acréscimo, seja por deformação de pequenas sementes sugestivas”; e ainda:
[...] convém notar que por vezes é ilusória a declaração de um criador a respeito da sua própria criação. Ele pode pensar que copiou quando inventou; que exprimiu a si mesmo, quando se deformou; ou que se deformou, quando se confessou. (CANDIDO: 2007 [1968], 69)
Neste sentido, embora não se deva ignorar a hipótese de ela iludir-se a respeito do que faz, a grande ingenuidade talvez seja acreditar que Adelaide de fato acredita na transposição do real para o romance: a sua profissão de fé, insistente, nessa hipótese, pode nada mais ser que um truque de ilusionista, desejoso de criar ‘efeito de realidade’, chamando assim de cópia o que sabe ser, em boa medida, invenção. Por sinal, noutra passagem, a autora reconhece o grau de subjetividade que, realismo à parte, permeia suas narrativas:
Os meus livros retratam as chagas sociais de nossa Pátria, nestes últimos decênios. Não podem ser, é claro, a reprodução fiel dos acontecimentos. Eles, porém, se alicerçam na verdade histórica. Apreendo alguns fatos, fico a par de outros, através de contatos, bate-papos, no borburinho [ sic ] de festas, reuniões, coquetéis etc. Depois, abanco-me para escrever as minhas histórias, fundamentada nos fatos que me contam. Podem não ser verdadeiras, mas é inegável que apresentam um fundo de autenticidade, algo de verossimilhança. Minha mente leva-me por um verdadeiro labirinto, e vou gerando minhas obras, que na realidade [...] significam uma explosão íntima, um choque com o passado execrando que foi calcorreado por horas muito mais funestas que risonhas. (EMP, 11-12)
Na apresentação do “livro de cartas de Adelaide Carraro” ( Escritora maldita? ), um inspirado revisor reforça a mítica da autora que traz à tona verdades incômodas, desmascarando farsas, hipocrisias:
Inúmeras foram as cartas que a escritora que a escritora Adelaide Carraro tem recebido dos leitores que reagiram às verdades nuas e cruas relatadas na sua quase vintena de livros, todos impregnados de um realismo que punciona impiedosamente as carnes infectas da humanidade,^43 Com a leitura destes escritos quiçá corem as virgens pudicas, talvez se ruborizem as falsas beatas, pode ser que se escandalizem os hipócritas que em público apregoam um moralismo cafona e no recôndito de sua vida pautam a vida por atitudes e atos que chegam a arrepiar até os sentimentos que ainda pudessem existir no coração do demo ou a emudecer as vozes dos anjos. (EM,7, grifos nossos)
(^43) O trecho traz à lembrança a passagem poética do preâmbulo a suas Obras completas em que Antonin Artaud fala do desejo de fazer a palavra, contundente como um prego, supurar na frase como uma equimose de cem buracos: “Je sais que quand j’ai voulu écrire, j’ai raté mes mots et c’est tout. / Que mes phrases sonnent le français ou le papou c’est exactement ce dont je me fous. / Mais si j’enfonce un mot violent comme un clou je veux qu’il suppure dans la phrase comme une ecchymose à cents trous .” ( Cf. KIFFER, Ana. “Cartas e corpos, de Antonin Artaud”. www.abralic.org.br/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/005/ANA_KIFFER.pdf, acesso em 10/06/2009.)
de Aluízio Azevedo, de Adolfo Caminha, de Júlio Ribeiro. Todos, autores movidos, como Adelaide, por uma sede de objetividade, por um interesse em retratar a sociedade brasileira sem idealizações, sem fantasias românticas, como teriam feito Flaubert e Zola (e, antes deles, Balzac) com a sociedade francesa e Eça de Queirós com a portuguesa. Ganhava luz a figura do escritor como testemunha de seu tempo, disposto a agredir o statu quo , se preciso, para levar ao leitor a verdade nua e crua , proporcionando-lhe, assim, um mergulho na realidade, e não um devaneio – menos ainda um refúgio. “O meu objetivo foi acima de tudo um objetivo científico”, afirmará Zola em prefácio ao seu Thérese Raquin ; enquanto Jorge Amado, num segundo momento do naturalismo brasileiro, declarará haver-se servido de “[...] um mínimo de literatura para um máximo de objetividade” na elaboração de Cacau. Isso quanto à política. No que diz respeito ao sexo – separado aqui da política apenas por didatismo – este aparecerá nos romances naturalistas despido das idealizações do Romantismo. No cortiço de Azevedo, na corveta de Caminha, na fazenda de Ribeiro veremos personagens guiados pelas ‘pressões do meio’, mas sobretudo pelos instintos, os baixos instintos, a fisiologia: “arrastadas a cada ato pela fatalidade da própria carne”, diria Zola, mestre desses autores. Com o álibi do interesse científico – há comumente um álibi na trilha do gozo –, surpreenderemos sinhás sedentas de sexo, escravos que copulam como bestas, marinheiros entregues à pederastia. Gilberto Freyre (autor daquele que é possivelmente o mais bem acabado romance naturalista brasileiro, o clássico Casa-Grande e Senzala ) cita O Ateneu , de Raul Pompéia e A carne , de Júlio Ribeiro – entre as obras que poderiam servir de “fontes de informação ou simplesmente de sugestões” para “o estudioso da vida íntima e da moral sexual no Brasil nos tempos da escravidão.”^47 Um cheiro de povo e um gosto de sexo, cada qual mais acentuado neste ou naquele exemplo, atravessará, portanto, toda uma tradição literária brasileira que chegará, na segunda metade do século XX, aos romances de Adelaide Carraro e de Cassandra Rios. Registra Nelson Werneck Sodré:
(^47) FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000 (39a (^) edição), p. 60.
O cortiço é, realmente, um grande livro, um dos maiores da literatura brasileira, ‘o livro mais verdadeiro de Aluísio Azevedo. É um romance, este, em que muito se sente o fartum de gente plebéia, o budum e o visgo sensual da gente do povo [...]’, segundo Olívio Montenegro;^48
Werneck cita ainda Lúcia Miguel Pereira, para quem: [...] o sexo, que dantes fora banido das narrativas, entrou a ocupar uma posição exagerada, refletindo talvez uma mudança de ponto de vista em relação às mulheres. O determinismo biológico então em voga e as lições de Charcot sobre a histeria transformaram, efetivamente, em fêmeas os antigos anjos. (IDEM, 169)
Note-se, porém, que a tradição naturalista sofre alterações ao longo do tempo, vindo a caracterizar-se, nos anos 60-70 do século XX (quando o cientificismo do século anterior já não inspirava o mesmo respeito) pela estética jornalista, a objetividade buscada na forma da reportagem. Flora Süssekind o sintetiza: “Repete-se a estética naturalista, mas sob a forma de caso clínico, na virada de século [XIX para XX]; do ciclo, em 30; do flagrante, na década de 70.”^49 Voltando: outra característica importante da literatura de Carraro, que se coaduna com sua busca pelo realismo, pela crueza, a clareza da expressão e ainda seu amor ao exagero, é o recurso ao grotesco. Se os filmes, como queria François Truffaut, deveriam ser feitos para ser assistidos de boca aberta, é uma literatura para ser lida de boca aberta (sem prejuízo, pelo contrário, de outros sinais corporais de exposição à intensidade) aquela produzida aos borbotões pela escritora paulista. E esse efeito, em sua obra, depende fortemente da exposição do corpo grotesco. Em sua leitura de Bakhtin, Stallybrass & White ( op. cit. ) ressaltam que, para o teórico russo, a derrisão carnavalesca fundamenta-se no ‘realismo grotesco’, para o qual, por sua vez, era central o ‘excesso corpulento’. O corpo grotesco-carnavalesco surgiria, nas manifestações populares da Idade Média
(^48) SODRÉ, Nelson Werneck. O naturalismo no Brasil , Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 188. 49 SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? , Rio de Janeiro: Achiamé, 1984, p. 88.
saírem em caracol, como minhocas assanhadas, os cabelos empapados de suor e de sangue, tombando sobre os olhos cavos, redondos, sem órbitas.” E segue, em linhas que não deixam a dever ao George Bataille de, por exemplo, História do olho (e talvez não desagradassem a Augusto dos Anjos):
As mãos dele, tumefactas, apodrecidas, de cartilagens soltas, com as unhas violáceas a desprenderem-se dos dedos, erguiam-se à procura das minhas. Seus lábios roxos, afilados, comidos pelos vermes, foram se abrindo, à semelhança de uma gangrena, e pude ouvir o seu apelo rouco, cavernoso:
Quando Fernando me deitou na cama, lembro-me de que puxei qualquer coisa para cobrir minha nudez, e olhando senti que ele movia-se com o quarto, e que o teto pesado ia abaixando, parecendo que ia nos esmagar. Gritei e estendi os braços para Fernando, mas nada pude lhe dizer, pois um vômito amargo saltou de minha garganta e atingiu a rica vestimenta de meu noivo. [...] Sua língua queimava-me o corpo e eu sentia as lágrimas penduradas nos cantos dos olhos, e o suor grudou meu cabelo na testa. Minha respiração vinha acompanhada de vômitos, pois o estômago dava reviravolta fazendo-me vomitar, vomitar com tremores, sacudindo-me toda, deixando-me com o rosto transfigurado. Mesmo assim, Fernando não me largava e com o volume colando nossos corpos ele lutava em cima de mim, até que breves gritos de dor me fizeram sentir que Fernando vencera. Sentei meu corpo na cama e olhei para ele, deitado de costas, resfolegando forte, e soltando pragas. Puxou-me para si e beijando-me a boca suja de vômito, disse sorrindo:
Já o Embaixador do membro enrugado proporciona a ‘Cátia’/Maria Aparecida, prostituta de primeira viagem, uma experiência que não lhe para no estômago:
[...] O Embaixador jogou o corpo para a frente e com as mãos forçou o pênis na boca de Maria, e enquanto ela se debatia para se livrar daquele peso de banhas ele gritava gozando de prazer. Depois caiu para o lado esticando pés e mãos, bufava fazendo o enorme peito subir e descer. Nem reparou que Maria corria para o banheiro e tossia vomitando esperma. (PPD, 98)
“Estou muito sujo, dona Cristina. [...] olha estou coberto de carrapichos”, adverte, humilde, o Zé (‘-Ninguém’) de Submundo da sociedade. A patroa, porém, não se intimida e desabotoa-lhe a calça em busca do objeto do desejo, para logo murmurar, esfregando no rosto o “cetro negro”: “Ah! É enorme, como é grande!”. “Olhos grandes e morteiros, a boca de lábios grossos, a pele mulata. Estatura mediana. Era um tipo meio repulsivo” – assim é apresentado o protagonista-vítima do romance (cujo capítulo VIII intitula-se “Zé o macho” ), descrito sempre, na variegada sucessão de cópulas que pontua o romance, de modo a pôr de revelo o grotesco de sua figura inocentemente selvagem: “Olhos fechados, boca meio aberta mostrando os dentes podres. [...] Zé engoliu um pouco da saliva grossa que começava a escorrer pelo canto dos lábios gordos”; “Zé agarrou o corpo da moça e fazendo-a ficar debaixo dele, foi cobrindo-a de beijos grudentos da baba pastosa que se formava abundante na sua boca devido aos inúmeros dentes estragados.” A baba, por sinal – ‘elástica e bovina’, como diria Nelson Rodrigues –, é uma das principais características desse personagem opaco, que menos fala que balbucia (e o balbucio nada mais é que a fala líquida, babosa), mero instrumento, quase, de uma sucessão mecânica de intensos atos sexuais. O outro é o seu membro avantajado, sempre propenso à ereção. Juntos, o dote incansável e a baba abundante identificam Zé e o boi que, numa fantasia erótica (reprodução bastante fiel de um trecho de A carne^50 ), fizera Cris despertar de vez
(^50) Escreve Julio Ribeiro, naquela que é a mais explícita descrição de um ato sexual em todo o romance: “O touro tinha-se aproximado de uma vaca muito gorda [...] Chegava-se, farejando ansioso, cheirava o focinho da vaca, cheirava-lhe o corpo todo; erguera-se a cabeça aspirando ruidosamente o ar, [...] soltara um berro estrangulado. [...] O touro lambeu a vulva da vaca com a língua áspera, babosa, e depois, bufando, com os olhos sanguíneos esbugalhados, pujante, [...] levantou as patas dianteiras, deixou-se cair sobre a vaca, cobriu-a, pendendo a cabeça à esquerda, achatando o perigalho de encontro ao seu espinhaço.” Cf. RIBEIRO, Julio. A carne , São Paulo: Savério Fittipaldi, s.d. [1888].
face! Sua alma sensível incendiava-se à simples vista de uma flor, um pássaro, uma árvore, uma pedra diferente! [...] O recanto em que nos encontrávamos transformou-se num pequeno paraíso terrestre. (GOV, 157)
A regra, porém, não se altera: os homens são monstros – e os romances de Adelaide, em boa medida, monstruosos. O que, no entanto, a vã sociologia parece não alcançar é a percepção de que a monstruosidade não apenas assusta e angustia, mas também, em igual proporção, fascina. Bataille já falava do momento insensato para o qual “tendemos com todas as forças e simultaneamente rejeitamos com todas as forças”. O gozo como vizinho à morte, esquecimento de si, pequena morte. Sobre o monstro, observa o português José Gil:
Ao encará-lo, o olhar fica paralisado, absorto num fascínio sem fim, inapto ao conhecimento, pois este nada revela, nenhuma informação codificável, nenhum alfabeto conhecido. E, no entanto, ao exibir a sua deformidade, a sua anormalidade – que normalmente se esconde – o monstro oferece ao olhar mais do que qualquer oura coisa jamais vista. O monstro chega mesmo a viver dessa aberração que exibe para todo o lado a fim de que a vejam. O seu corpo difere do corpo normal na medida em que revela o oculto, algo de disforme, de visceral, de ‘interior’, uma espécie de obscenidade orgânica. O monstro exibe-a, e desfralda-a sem se preocupar com o olhar do outro; ou para o fascinar, o que significa a mesma coisa. O que é um olhar fascinado? Aquele que subitamente se sente atraído pela coisa vista [...] e perde a liberdade. Afunda-se no que vê porque o que se dá assim a ver reenvia a outra coisa que não se deixa captar.^51
Lembremos do rapaz abduzido pela leitura de Os padres também amam , ou de Maria Aparecida, prostituta que vira Primeira Dama , a qual “tremia sem nada compreender” diante da primeira visão de um pênis – no caso, encolhido e flácido. Sempre o fascínio absorvente e paralisante. Experiência semelhante é descrita pela ex-prostituta Gabriela Leite em suas memórias, ao relatar o exibicionismo de um patrão num consultório odontológico:
Quando estava entrando, eu o vi sentado em sua cadeira atrás da escrivaninha, com suas roupas branquíssimas, as pernas abertas e uma das mãos segurando o pau duro fora da braguilha. Foi a primeira vez que vi um pau duro ao vivo e em cores, e levei um tremendo susto. Parei na porta. Ele ficou me olhando com olhos de desejo e perguntou: ‘Gostou? É bonito’? [...] Não sabia o que fazer. Fiquei parada com os olhos fixos na cena, sentindo nojo de tudo aquilo.”^52
(^51) GIL, José. Monstros , Lisboa: Relógio d’Água, 2006, p. 78. (^52) LEITE, Gabriela. Filha mãe avó e puta , Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 22.
No romance A paranóica , de Cassandra Rios, Ariella também vive, no primeiro encontro, espanto maior que a atração: “Olhei. Era evidente. Evidente demais. Era a primeira vez que eu via a ereção do sexo em toda sua manifestação, estufando as calças de um homem, vergonhosamente.” (PARA, 55) Um aspecto do grotesco, do monstruoso se quisermos, na literatura de Adelaide, e que nela assume importância capital, é o modo como se dá a relação sexual, ou, antes disso, o modo como os personagens masculinos buscam o sexo (cabe salientar que, à diferença de Cassandra, Adelaide mantém-se fiel à heteronormatividade, sendo raras as descrições de amor lésbico em sua literatura). “O corpo feminino é um território em permanente disputa”, afirma Regina Dalcastagné ( op.cit ., 1), e essa proposição assume, em Adelaide, um sentido bastante literal. Naturalistas do século XIX, atentos às ‘pressões do meio’ e sobretudo ao ‘imperativo fisiológico’, a guiar as ações de seus personagens, dificilmente poderiam antecipar o modo como se dariam as relações sexuais, o mais das vezes, na obra da romancista. Vimos, no depoimento de Lúcia, que mesmo numa relação consensual o coito é uma vitória do macho às barreiras antepostas pela fêmea: “Fernando não me largava”, “[...] lutava em cima de mim”, “[...] breves gritos de dor me fizeram sentir que Fernando vencera.” Em passagem anterior, ele perseguira Lúcia, que o provocava, “[...] e nesse jogo de corre para lá e para cá, Fernando conseguiu desamarrar as alças, fazendo que do vestido abaixado até a cintura surgissem os lindos e grandes seios de Lúcia”. Ainda em Os padres também amam , a indiazinha Iara relata, divertida, um assédio:
Arranquei o maiô e como lá na floresta, com meus seios duros e eretos, corri para o mar, afastando os cabelos com que o vento teimava em encobrir os meus olhos; olhava para trás, rindo da fúria louca do Padre que vinha em minha direção. (PTA, 77)
Em O comitê , Roberto parece reivindicar, em seu monólogo, a condição de personagem de romance naturalista, ao rememorar sua transa com a esposa do deputado: “Obedecendo ao apelo, ao impulso da carne, deitei-me por cima dela” (CT, 193); entre lágrimas, a protagonista Adelaide descreve, em Eu e o governador , sua primeira ‘entrevista’ de emprego:
-Tire! Dispa-se! – gritou, umedecendo os lábios como um tarado.
domínio de classe, em Submundo da sociedade e A vingança do metalúrgico (caso raro em que as vítimas são homens; no caso empregados negros – respectivamente, Zé e Duda – vilipendiados por suas desalmadas patroas); a insatisfação de Célia com seu marido Carlos em O castrado (“Eu nunca gozei com homem nenhum. Não se esqueça que meu marido não sabe ou não quer fazer a gente se realizar”); a culpa do adultério em O comitê e A amante do deputado. Numa das – raras, até onde podemos afirmar – cenas de lesbianismo da obra adelaideana, a mulher traída assume o papel de violadora da amante de seu marido:
A mulher pulou e Verô sentiu suas mãos a agarrarem e jogarem no chão. Verô começou a chorar e a gritar pelo Isaque. A mulher arrancou o penhoar de Verônica e deitou-se por cima dela.
Podemos dizer, em síntese, que Adelaide agride o amor romântico com a mesma insistência com que Cassandra o reivindica (há quase tanta realização amorosa em Adelaide quanto no cancioneiro de um Bezerra da Silva). E se por vezes o restaura por meio de um final feliz, como na anódina conclusão de De prostituta a Primeira Dama , deixa-nos a estranha sensação de que o calvário era um bocado mais excitante. Em cena de Eu e o governador , após haver cedido às investidas de Ulisses com vistas à obtenção do sonhado emprego público (“Possuiu-me sem que eu pudesse oferecer-lhe resistência”), Adelaide ingressa num redemoinho mental – que faz lembrar a canção Domingo no parque , de Gilberto Gil, como também a confusão mental vivida por Ana Terra na célebre cena da curra^53 – no qual o envelope (“Era o prêmio, com toda a certeza. O pagamento pela minha posse”) se funde com os trajes de noiva do casamento de sonho... desfeito:
(^53) “La plata... La plata... La plata... Ana estava estonteada. Alguém lhe perguntava alguma coisa. Dois olhos sujos e riscados de sangue se aproximaram dos dela. Mãos lhe apertavam os braços. Donde está? Donde está? La plata, La plata... Ela sacudia a cabeça freneticamente, e a cabeça lhe doía, latejava, doía... La plata... La plata... Braços enlaçaram-lhe a cintura, e Ana sentiu contra as costas, as nádegas, as coxa, o corpo duro dum homem.” Cf. VERISSIMO, Erico. Ana Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1971], p. 65.
Tudo se embaralhava. O envelope era todo branco... branco... branco como a blusa rendada... e a saia com larga cauda toda de tule... branco... tudo branco... também o tule seguro no alto da cabeça por uma grinalda de flores naturais. De que seriam as flores? De laranjeira? Minha irmã dizia-me sempre que deveriam ser botões de rosas brancas. Sim, era exatamente assim que eu me casaria. Nas mãos o terço de prata e o livrinho da minha primeira comunhão... também todo branquinho... (GOV, 23)
Do conjunto branco de tule ornado de rosas brancas ao envelope branco contendo a carta de recomendação, dá-se a passagem do sonho de donzela para a constatação de que o mundo é um moinho ; ou, dito de outro modo, o trânsito da fantasia do amor romântico para a oferta de favores sexuais em troca da subsistência. Trânsito da pureza da moça empunhando o livrinho da primeira comunhão ao desalento – não de todo imune à excitação – da mulher que recebe o primeiro pagamento pela sua “posse”. A autora possivelmente faria coro à diatribe do jornalista britânico Auberon Waugh (filho do igualmente ácido Evelyn Waugh), o qual, certa vez, comentando as atividades da organização Women Against Rape ( Mulheres contra o estupro ), questionou: “O que elas propõem colocar no lugar?”^54 Essa visão do amor e do sexo assume uma marca bastante nítida na máquina adelaideana, qual seja, as calcinhas rasgadas. A delicadeza e sofisticação da peça íntima, clássico objeto de fetiche,^55 é signo da diferença de classes em Submundo da sociedade (“Cris levantou-se, puxou a calça comprida junto com a calcinha de seda bordada com babadinhos de renda francesa”), e sobretudo, neste como noutros romances, representa o último obstáculo a ser transposto pelo macho tomado de desejo bestial, antes de encontrar a satisfação que ele – e, eventualmente, também ela – busca: “Uma das mãos de Zé infiltrou-se debaixo da saia da patroa e dilacerou-lhe a calcinha para logo em seguida procurarem no vão de suas pernas, o contato da carne aquosa e macia.” Ocorre de blusas (“de tão nervoso arrancou-lhe a blusa de um safanão, fazendo os botões pularem longe” – PTA, 108), sutiãs, camisolas e vestidos também serem vitimados (em cena de Mulher livre , Olavo rasga o vestido de Verô, após o que “os seios dela, que não usava soutien , tremularam lindos,
(^54) The New Yorker , 2/07/2007, p. 70. (^55) “Porque adere às partes às regiões do corpo feminino que são as mais secretas, mais cálidas e, para o homem, as mais dramáticas” segundo Jacques Laurent. Cf. NÉRET, Gilles. 1000 dessous – Histoire de la lingerie. Paris: Taschen, 2003, p. 21 (tradução nossa).