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Neste capítulo, abordamos questões relacionadas à construção de identidades socioculturais, através de abordagens da diferença cultural, do entre-lugar, da transdiferença e do hibridismo. A construção de identidades está associada a processos culturais localizados e envolve a identidade pessoal e coletiva, além de identidades situacionais. Bucholtz e hall discutem a construção da identidade e da diferença, enquanto bhabha e hall abordam o papel da construção dos eu e do outro na interação intercultural. A concepção de dialogismo contribui para a discussão sobre identidade, enfatizando a fluididade e a reconfiguração de identidades em contextos históricos, culturais e situacionais.
O que você vai aprender
Tipologia: Exercícios
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Ao iniciar minha caminhada como pesquisadora e professora em uma ins- tituição bilíngue, contexto da pesquisa, notei como os profissionais se posiciona- vam em relação a este ambiente intercultural, construindo identidades institucio- nais, profissionais e pessoais. Considerei importante tratar, em termos teóricos, de identidades de ordem sociocultural, no âmbito da segunda pergunta de pesquisa:
Cultura, comunicação e identidade
Gudykunst e Yun Kim (1994) discorrem sobre a influência que a cultura tem sobre a comunicação, principalmente entre grupos interculturais e como a compreensão sobre o encontro entre estes grupos pode minimizar mal-entendidos e aprimorar o entendimento entre pessoas de culturas distintas. Segundo os autores (1994, p.16), a noção de cultura é concebida como um sistema de competência compartilhada, de forma abrangente, e que varia entre os indivíduos em suas especificidades, não sendo, necessariamente, tudo o que um indivíduo conhece, pensa e sente sobre seu mundo. A cultura engloba o que seus companheiros conhecem, acreditam e comunicam a partir do uso do código, da noção do “jogo que está sendo jogado” ( game being played ), mas nem todo o indivíduo compartilha precisamente a mesma matriz cultural nem o mesmo código.
A definição de cultura proposta por Keesing (1974, p.75), linguista e antro- pólogo americano, considera que a cultura pode ser metaforizada como uma teoria do “jogo em processo” em cada sociedade. Esta abordagem reforça a tese de que o significado é construído e negociado em situações de interação, e que os processos culturais estão intimamente relacionados indicando como devemos nos comunicar com os outros e interpretar seu comportamento. A construção de identidades está diretamente associada aos processos culturais socialmente localizados. Há assim, para os autores, uma combinação entre conhecimentos prévios a partir de normas e regras, que coordenam e influenciam os comportamentos na comunicação, e a interação em situações de contato diário entre nativos, com interpretações individuais distintas e localizadas (Gudykunst e Yun Kim 1994, p.17). Do ponto de vista dos autores, a cultura envolve assim tanto o “jogo em processo” como conhecimentos prévios que interferem na comunicação. Ao remeter ao conceito de cultura para o nativo vesus o não nativo, Gudykunst e Yun Kim (1994, p.25) apontam para a questão da comunicação entre “desconhecidos” ( strangers ), muito pertinente para a discussão sobre meus papéis perante o grupo de professores brasileiros e ingleses. Sou brasileira, e também docente da instituição internacional foco da pesquisa, além de assumir o papel de entrevistadora durante o encontro. A fim de contrapor a visão da realidade do nativo e do não nativo, Parrillo (1980, p.3), mencionado em Gudykunst e Yun Kim (1994, p.25), comenta sobre essas diferenciações:
Porque este é um mundo compartilhado, podemos dizer que também é intersubjetivo. Para os nativos, toda a situação social engloba não apenas papéis e identidades, mas também compartilhamento da realidade da estrutura intersubjetiva da consciência. O que é aceito pelo nativo como algo corriqueiro é problemático para o não-membro do grupo. Em um mundo familiar, as pessoas passam o dia respondendo automati- camente sem questionar ou refletir. Para os não-membros do grupo, no entanto, toda situação é uma novidade e, portanto, experimentada como uma crise.^6 A citação acima aponta para as questões relacionadas à forma como a cultura e a realidade são observadas a partir da ótica de um membro nativo versus a de um não nativo. Gudykunst e Yun Kim (1994) comentam sobre a ansiedade e
(^6) Because this is a shared world, it is an intersubjective one. For the native, then, every social situation is coming together not only of roles and identities, but also of shared realities the intersubjective structure of consciousness. What is taken for granted by the native is problematic for the stranger. In a familiar world, people live through the day responding to daily routine without questioning or reflection. To strangers, however, every situation is new and is therefore experienced as a crisis.
Já o modelo inferencial de comunicação, segundo Schiffrin (1994), depen- dente do princípio da intersubjetividade, e baseia-se nas três intenções de comuni- cação propostas pela Pragmática de Grice, são elas: (i) o objetivo da comunicação é a realização da intersubjetividade, com reconhecimento das intenções de uma pessoa em relação à outra; (ii) há procedimentos pelos quais o recipiente reco- nhece as intenções do comunicador; (iii) os procedimentos na realização da inter- subjetividade são de conhecimento partilhado em relação ao código e aos princí- pios da comunicação, em que o falante deve mostrar intenções, mais do que pen- samentos e a comunicação ocorre quando as intenções são reconhecidas pelo ou- vinte (Schiffrin, 1994, p.394-395). Podemos exemplificar o modelo acima da seguinte maneira: (a) Uma elocu- ção X do falante (S) produz certa resposta (r) em certo ouvinte (A); (b) O ouvinte (A) tem que reconhecer a intenção (a) do falante (S); (c) O reconhecimento do ouvinte (A) da intenção (a) do falante (S) funciona como a mínima parte do pen- samento do ouvinte (A) para a resposta (r) do ouvinte (Schiffrin, 1994, p.393). Nota-se que, neste modelo, há uma ênfase no que o emissor pretende trans- mitir, passando a intenção deste, e não o pensamento, como foco central da comu- nicação, considerando a intersubjetividade e o código como um aspecto do princí- pio comunicativo.
Primeiramente, o objetivo da comunicação é alcançar a intersubjetividade, i.e. al- guém reconhecer as intenções de outro. Em segundo lugar, a intersubjetividade é alcançada através de um procedimento em que o reconhecimento de intenções por parte do destinatário reflete a manifestação das intenções do comunicador. Final- mente, os procedimentos para se alcançar a intersubjetividade são baseados em um conhecimento prévio: as pessoas compartilham o mesmo código linguístico assim como os mesmos princípios de comunicação.^8 (Schiffrin, 1994, p.395). O modelo interacional de comunicação reduz a importância da intersubjeti- vidade, se comparada ao modelo anterior, assumindo que o suporte para a comu- nicação é o comportamento dos participantes (comunicador e destinatário) inde- pendentemente das intenções de comunicação. Neste modelo de comunicação, a autora (Schiffrin, 1994, p.398) considera que um indivíduo se comunica não apenas ao transmitir um pensamento ou mani-
(^8) First, the goal of communication is the achievement of intersubjectivity, i.e. one person’s recognition of another’s intentions. Second, intersubjectivity is achieved through a procedure in which recipient recognition of intentions mirrors the communicator’s disply of intentions. Third, procedures for achieving intersubjectivity are based in prior knowledge: people share the same linguistic code, as well as the same principles of communication.
festar intenção, mas também por revelar informação que pode não ter sido delibe- radamente dada para ser percebida pelo outro. Um exemplo são reações físicas, como enrubescer-se, suor, ou pistas paralinguísticas, passando a ter como foco a interpretação da informação pelo ouvinte. Um dos papéis comunicativos de um indivíduo é projetar a informação a partir de dois princípios distintos baseados em Goffman (1959 apud Schiffrin, 1994, p.398): informação intencionalmente dada ( information given ), e informa- ção dada não intencionalmente (information given-off). Goffman ( op. cit ) comenta que, independentemente da intencionalidade do comunicador em transmitir uma mensagem, as informações podem ser repassadas ao destinatário reduzindo a res- ponsabilidade do comunicador ao longo do processo comunicativo e, consequen- temente, aumentando a co-responsabilidade dos envolvidos no processo de comu- nicação em coconstruir a mensagem. O modelo inferencial e interacional de comunicação estão representados na presente pesquisa a partir de duas perspectivas. Enquanto o modelo inferencial de comunicação relaciona-se a inferências ou mal entendidos entre participantes de culturas distintas, o modelo interacional remete à interação e coconstrução dos participantes ao longo da entrevista de pesquisa. A partir do pressuposto de que “a comunicação intercultural é um processo simbólico e interacional envolvendo a atribuição de significado entre pessoas de culturas diferentes^9 ”, (Gudykunst e Yun Kim, 1994, p.19), podemos associar o conceito de entre-lugares culturais e o compartilhamento ou não de realidades aos modelos de comunicação de Schiffrin (1994). A falta de compartilhamento de experiências e de um código pode sugerir a coconstrução de um entre-lugar, de uma nova forma de comunicação que venha nascer dos conflitos que emergem nas situações de comunicação. Com a situação desta pesquisa delineada por interações interculturais, vere- mos o envolvimento da pesquisadora já na forma como as entrevistas foram intro- duzidas (Cap. 6, p.95). Nota-se a posição discursiva e social da pesquisadora, que é sustentada por questões de pertença sociocultural brasileira (Cap. 7, p.134, Cap. 8, p.148), o que pode sugerir que, ao longo do contato intercultural, tenhamos alternado entre um modelo de comunicação inferencial ou, por vezes, interacional.
(^9) Intercultural communication is a transactional, symbolic process involving the attribution of meaning between people from different cultures.
culturas operam desvelam a relação existente entre a construção de identidades dos indivíduos e de grupo. No cerne das identidades construídas por atores sociais, há a identidade pessoal e identidade coletiva (De Fina, 2011 e Snow, 2001). A identidade pessoal (De Fina, 2011, p.268) articula e agrega todos os construtos identitários manifestados pelo indivíduo ao longo de sua vida, que caracte- rizam como um ser único ao mesmo tempo em que o diferencia do “outro” e englo- bam questões de valores morais, características físicas, atitudes. Além deste tipo de identidade, devemos considerar, para o escopo desta pes- quisa, as identidades situacionais que podem ser vistas como papéis relacionados ao contexto de interação em que professor/aluno, médico/paciente, entrevista- dor/entrevistado pode se encontrar ( op. cit .), dependendo da expectativa do encon- tro. Em um encontro com amigos, negociamos a identidade pessoal, e somos nós os responsáveis pelo que projetamos. Já em uma reunião de trabalho, falamos enquanto representantes de uma instituição, de uma comunidade, projetando iden- tidades coletivas assim como pessoais. Portanto identidades pessoais e coletivas são construções fluidas e fragmentadas que se apresentam nos múltiplos discursos em que nos engajamos e representam as múltiplas facetas identitárias dos sujeitos em uma interação (Moita Lopes, 2003, p. 19-22). Por outro lado, a identidade coletiva para Snow (2001, p.3) é constituída pelo compartilhamento e pela interação intrínseca a um “ we-ness ”, ancorada por experiências e atributos comuns entre aqueles que se incluem nesta coletividade relacionando-se ou contrastando com “outros”. Por exemplo, identidades coletivas abrangem grupos e agregações em uma variedade de contextos: pequenos grupos, grupos profissionais, grupos de vizinhos, membros de uma comunidade, incluindo categorias como gênero, religião, grupos étnicos, culturas e nações. Os autores aqui resenhados apontam para o caráter fluído e para a reconfiguração das identidades ao associar identidades coletivas, assim como as pessoais, a processos de ordem sócio histórica, cultural e situacional em que os indivíduos estão inseridos, demonstrando a relevância desta seção para a presente pesquisa. As identidades que construímos são negociadas durante o processo de co- municação, e possuem caráter fluido e transicional, o que pode contribuir para o surgimento de interconexões entre elas, caracterizadas por pistas linguísticas,
extralinguísticas e paralinguísticas que o indivíduo fornece em seu discurso (De Fina, 2011, p.269). Já Bucholtz e Hall (2006, p. 371) apresentam argumentos sobre a constru- ção da identidade e da diferença, apresentado na seção a seguir, apontando para uma das questões sobre o paradigma da diferença cultural para a construção de identidades em situações de contato mediado pelo discurso.
Embora trabalhos sobre identidade envolvam, frequentemente, diferenças obscuras entre aqueles com uma identidade em comum, esta também serve para produzir ou acentuar diferenças entre membros in-group e aqueles de fora. A percepção de identidade compartilhada geralmente requer um sentido de alteridade, de um Outro que pode ser posicionado contra aqueles socialmente constituídos como do mesmo grupo.^11
3. O paradigma da diferença cultural
A fim de contextualizar o paradigma da diferença cultural, é importante voltar o olhar para as identidades interculturais em situação de contato interacio- nal ressaltando o papel da construção das identidades do eu e do Outro, conforme citado por Bucholtz e Hall (2006), e mediadas pelo/no discurso entre os partici- pantes de forma dialógica (Bakhtin, 1986). Os estudos de Bakhtin (2003, p.33) tendem a dividir o dialogismo em duas formas: o diálogo entre interlocutores, baseado na interação fundadora da linguagem, e a relação entre discursos, chamada polifonia , ou seja, as vozes exte- riores que marcam nosso discurso. Baseado no conceito de polifonia que se esta- belecem as construções identitárias na relação eu-outro, entendido como um des- locamento do conceito de sujeito. Bakhtin (1986, p.147) aprofunda o princípio da dialogia e apresenta a noção de alteridade, que implica o encontro de natureza social entre as vozes em um espaço e um tempo socio-históricos. Bakhtin ( op.cit ) pressupõe o Outro como existente (expressivo e falante) e reconhecido pelo “eu” como Outro que não eu. É
(^11) Although identity work frequently involves obscuring differences among those with a common identity, it may also serve to manufacture or underscore differences between in-group members and those outside the group. The perception of shared identity often requires as its foil a sense of alterity, of an Other who can be positioned against those socially constituted as the same (Bucholtz e Hall, 2006, p. 371).
delimitadoras que, inevitavelmente, servirão de base para a construção da nossa identidade. São essas características que fornecem “dados” para distinguir, por exemplo, os integrantes das classes que compõem a pirâmide social. Desse modo, verificamos o quanto os estereótipos estão vinculados às relações de ordem macro de dominação e ao poder convencionados pela estrutura social a que pertencemos (Hall, 2000, p.66). A visão de estereótipos para Bhabha (1998, p.105) vem reforçar o não reco- nhecimento do outro em si, enfatizando as diferenças entre o eu e o outro, entre o local e o estrangeiro, entre o não pertencimento através da afirmação/negação de uma característica. Segundo Bhabha ( op.cit .), os estereótipos atuam como uma estratégia linguístico-discursiva de manutenção da ambivalência, endossando a fixidez e o engessamento das diferenças culturais.
Apesar de mudanças, permanece em seu ensaio uma confiança limitadora e tradi- cional no estereótipo como capaz de oferecer, em um momento qualquer, um porto seguro de identificação (Bhabha, 1998, p.110). Partindo de uma visão baseada no discurso do colonialismo, Bhabha ( op.cit.) defende o pressuposto de que o estereótipo é uma forma de aprisionar uma realidade sociocultural dos “espectadores” independentemente de sua diacro- nia, descartando a fluidez com que as identidades culturais se (re) constroem, de- pendentes da realidade social, cultural e econômica que a nação vive no momento presente. A partir de um olhar baseado na relação entre o sujeito, o discurso e o outro, pelo viés dos estudos da semiótica, Landowski (1997, p.6) suscita a discussão sobre a construção da identidade em relação à alteridade, às diferenças e a “captura de um sujeito camaleônico”. As questões sobre alteridade ressaltam o debate sobre o que é ser estrangeiro, o Outro, como um nicho para o debate sobre a necessidade de uma discussão acerca da construção da identidade em situações de contato intercultural. O estrangeiro é aquele que vem de outro país, de outra nação, que cultua outros hábitos, que representa outra cultura. Na verdade, o estrangeiro pode estar em nossas casas, em nossos ambientes de trabalho, em nós mesmos. Há uma falsa inteligibilidade sobre o que vem a ser o eu e o Outro, o local e o forasteiro, o conhecido e o desconhecido. Assim, o Outro tem, relativamente ao eu, uma visão obscura ao mesmo tempo em que reveladora, isto é, uma experiência de mim que Eu não tenho, mas
que posso ter sobre ele. O Outro é condição necessária, mas não suficiente da mi- nha existência e da minha (in)completude (im)possível, pois necessito do olhar do Outro, mas regresso a mim mesmo e a minha incompletude, não vendo o que o Outro viu, mas o que foi possível para mim. Desse modo, está posta a impossibi- lidade de acabamento e de completude do eu e do Outro. Além disso, a experiên- cia do Outro, mesmo sendo do “eu”, é inacessível. Estas situações de contato intercultural propõem o debate sobre as questões do outro, da diferença, das situações de contato e de heterogeneidade que passam a contribuir para um novo conceito de identidade coconstruída em um espaço fronteiriço. A perspectiva sociocultural proposta por De Fina (2011) vem demonstrar que as realidades sócio-históricas estão em constante processo de construção e reconstrução, são realidades que dinamizam a relação entre o eu e o Outro. Segundo De Fina (2011, p.267), a realidade social não é algo estático, pré- existente, independente; a realidade social é um construto dependente do processo sociocultural em questão. Sendo assim, a identidade é um processo no qual o in- divíduo se constrói, desconstrói, reconstrói constantemente dependendo do mo- mento da interação com outros indivíduos e com o mundo. Assim como a cons- trução da realidade não é algo pré-moldado, independente, fixo ou estável, a construção das identidades assumidas por um indivíduo devem ser percebidas como algo flexível, instável e mutante. Os binarismos local/estrangeiro, eu/outro, semelhante/dessemelhante, são, assim como igualdade e diferença vistos como questões contrapostas e não dimen- sões que mutuamente se reclamam. Estes binarismos reforçam a visão de hege- monia entre as sociedades, atuando como manutenção para o mundo globalizado, baseado no sucesso econômico e no poder de algumas nações sobre as outras. Segundo Bucholtz e Hall (2006, p.25), a teoria da identidade social explora o fenômeno do binarismo “ in group ” (local) e “ out-group ” (estrangeiro) basean- do-os em uma visão de identidade constituída a partir da crítica ao processo das diferenças. Esta nova perspectiva teórica para identidades sociais é definida de forma relativa e flexível dependendo da atividade em que os indivíduos estão en- gajados. O conceito de “ in-group ” é aquele ao qual o indivíduo pertence e o “ out- group ” é visto como o diferente, o estranho, o forasteiro. A fim de manter uma
diferentes iniciativas e movimentos desenvolvem propostas de educação para a paz, para os direitos humanos, para a ecologia, para os valores etc. A discussão sobre internacionalismo enquanto movimento social propõe a convivência democrática entre diferentes grupos e culturas, em âmbito nacional e internacional, assim como a busca de construir referenciais epistemológicos perti- nentes. O trabalho intercultural pretende contribuir para superar tanto a atitude de medo, quanto a de indiferente tolerância frente ao “outro”, construindo uma dis- ponibilidade para a leitura positiva da pluralidade social e cultural. Trata-se, na realidade, de um ponto de vista baseado no respeito à diferença, que se concretiza no reconhecimento da paridade de direitos. Com o debate acerca do internacionalismo versus a globalização (Cambridge e Thompson 2001; Hayden e Thompson, 2012), espera-se que o “eu” e o “Outro” se- jam vistos como a soma de partes tecendo um novo paradigma de construção identitá- ria. Por ser um sujeito pós-moderno, nascido da diversidade de culturas do mundo globalizado, tendo sua identidade construída e reconstruída permanentemente ao longo de sua existência, espera-se construir uma noção de identidades híbridas.
As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais am- plo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das socie- dades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (Hall, 2000, p.7). A proposta de educação em um mundo em movimento, em que as pessoas se encontram em trânsito, supõe que as identidades não sejam mais consideradas a partir da igualdade ou da diferença de forma indissociável, mas que surja um en- tre-lugar que todos possam passar a ocupar, na transdiferença, no hibridismo identitário.
3. Nas fronteiras: o entre-lugar cultural, a transdiferença e o hibridismo
A hibridização não é algo que apenas existe por aí, não é algo a ser encontrado num objeto ou em alguma identidade mítica ‘híbrida’ – trata-se de um modo de conhecimento, um pro- cesso para entender ou perceber o movimento de trânsito ou de transição ambígua e tensa que necessariamente acompanha qualquer tipo de transformação social sem a promessa de clausura celebratória, sem a transcendência das condições complexas, conflitantes, que acompanham o ato de tradução cultural. Bhabha apud Souza, 2004, p.
Baseado na citação de Bhabha acima, podemos perceber um ponto em co- mum entre o “movimento de trânsito” da citação e os movimentos e trânsitos cita- dos na obra de Moita Lopes e Bastos (2010). Os autores se referem em seus estu- dos a uma construção de identidade baseada em uma visão sociopolítica do mundo pós-colonial em que os atores sociais questionam posições apoiadas em binarismos, homogeneizados e estanques. O que Bhabha caracteriza como sendo este hibridismo? De que forma ele dialoga com a transdiferença? O que caracte- riza o entre-lugar (tradução para o termo in-between ) e a construção de identida- des? De que forma estes conceitos se alinham à pesquisa em questão? Moita Lopes e Bastos (2010) dedicaram o livro Para além da identidade: fluxos movimentos e trânsitos à instabilidade em que se encontram nossas identi- dades no mundo pós-moderno. Os autores se utilizam da metáfora dos entre luga- res, do movimento, do fluxo e da inconstância das relações sociais para indicar como as identidades são fluidas, flexíveis e em constante processo. Bhabha escre- veu O local da Cultura (1998) e lá dialogou também com as questões das constru- ções culturais no mundo pós-colonial e as implicações que a nova noção de cul- tura vem interrogar à identidade. A visão de internacionalismo assumida por este trabalho (Cap.2) sugere que, a partir de um mundo em constante mutação, na transitividade entre culturas, na aceitação do espaço que caracteriza a diversidade dos modos de pertença, esteja- mos abrindo o campo para a criação de novas relações com o outro. Nesta nova teia relacional, igualdade e diferença não são dimensões que mutuamente se re- clamam. O debate acerca de temas como entre-lugares, transdiferença e o hibri- dismo se complementam funcionando como pressupostos teóricos, que, apesar de assumirem a existência da diferença como algo produtivo, apresentam-se contrá- rios aos sistemas binários excludentes. Em The third space: an interview with Homi , (Rutherford, 1990) discute a questão da criação do “terceiro espaço” e como este se articula com o conceito de culturas híbridas, que provém da questão das diferenças. Bhabha vê na diferença cultural e no conceito de tradução uma possibilidade de construção de uma reali- dade cultural que se produz no espaço da diferença, da alteridade, uma vez que nenhuma cultura se encontra em plenitude, mas sim em busca, a partir do contato com outras, de uma significação, enquanto constantemente ressignifica-se.
dez, de polaridades entre culturas aparentemente dissociadas. O que o debate sus- cita é que todas as formas de culturas, seja dos dominados ou dominantes, estão, invariavelmente, em contínuo processo de hibridação. Este processo não deter- mina dois polos diferentes, ou opostos de caracterização, mas reconhece nestes espaços oportunidades para que surja um “terceiro espaço”, não um reflexo, ou reprodução desta ou daquela cultura, mas um espaço de articulação, de negociação de novos paradigmas. Seria, pois a agência contra a prática hegemônica do colo- nizador, abrindo espaço para a rearticulação e negociação de uma ressignificação cultural para ambos os polos.
O potencial híbrido está em seu conhecimento inato de transculturação, suas habi- lidades de atravessar ambas as culturas e traduzir, negociar e mediar afinidades e diferenças em uma dinâmica de intercâmbio e inclusão^13 (Taylor, 1997).
Dialogando com as questões do hibridismo cultural, para Olinto (2010), transdiferença é um elemento teórico que surge como proposta para entender pro- cessos identitários híbridos. Com isso, a transdiferença permite que se observem questões sobre o múltiplo pertencimento cultural no qual a sociedade pós-mo- derna se entrelaça ao conceito de internacionalismo. É a oportunidade de um olhar que se volta para o espaço entre, entre as dife- renças e as semelhanças, incluindo os paradoxos anteriores como mutuamente pertencentes a um entremeio que, para o contexto deste trabalho, ajuda a significar as coconstruções de identidades dos participantes. Olinto (2010) propõe que não há transdiferença sem diferença. O conceito proposto por Olinto propõe um intercâmbio de culturas distintas como regra e não como exceção. A transdiferença se articula de modo suplementar, e não substitu- tivo com relação ao conceito de diferença.
As práticas culturais e estéticas atuais encontram-se em processos de vertiginosa e acelerada transformação e hibridação, e, concomitantemente, os domínios discipli- nares enfrentam dificuldades no uso de paradigmas científicos comprometidos com molduras dicotômicas que fecham as fronteiras da diferença (Olinto, 2010, p.40). A fim de ilustrar o conceito de transdiferença, Olinto cita como culturas distintas, ou opressoras e oprimidas, se coconstroem. Os membros de comunida-
(^13) The hybrid’s potential is with their innate knowledge of ‘transculturation’ their ability to transverse both cultures and to translate, negotiate and mediate affinity and difference within a dynamic of exchange and inclusion (Taylor, 1997, p.66).
des indígenas que vivem no mundo dos brancos se sentem como estranhos em uma terra que era primeiramente deles, e que lhes foi tomada. Estes indígenas não se sentem nem defensores de suas terras nem pertencentes à cultura do homem branco. Eles ocupam uma posição de transdiferença visto que não rejeitam a cul- tura dominadora do branco ao mesmo tempo em que não se afastam de sua pró- pria. Dificilmente há como dissociar ou homogeneizar a organização que se passa em comunidades que sofrem as influências de políticas dominadoras, visto que elas se transfiguram e de certa forma tentam pertencer aos dois polos, ou seja: “não há transdiferença sem diferença” (Olinto, 2010, p.30).
(...) hoje inexistem visões uniformes de uma identidade nacional e, por conse- guinte, é preciso representar a multiplicidade coexistente das perspectivas da in- vestigação contemporânea, reprimindo o desejo de vê-las unificadas (Olinto, 2010, p.34).
Olinto (2010, p.27) baseia-se nos estudos de Breinig e Losch (2002) que caracterizam a teoria da transdiferença em ambientes de pluralismo cultural. Além de terem escrito sobre o multiculturalismo nos Estados Unidos, os autores defini- ram a transdiferença como "tudo o que resiste a construção de significado baseado em um modelo binário excludente e fechado"^14 (Breinig e Losch, 2002, p.23). Os autores ( op.cit .) propõem que o conceito de transdiferença seja conside- rado mais específico do que o de hibridismo (Bhabha, 1996). Os autores assina- lam que transdiferença não significa síntese nem tampouco desconstrução, mas refere-se a momentos temporais em que a construção de diferenças culturais entre limites étnicos se torna temporariamente instável.
Além disso, Breinig e Losch (2002 apud Kalscheuer, 2009, p.27) determi- nam três níveis de relações que podem resultar em situações de transdiferença: o intra-sistêmico, o inter-sistêmico e o nível individual. No nível intra-sistêmico, os autores focam na questão de como tudo que é transgressor ameaça a ordem e como possibilidades alternativas são descartadas. Neste caso, a transdiferença não pode ser controlada e é necessário um trabalho permanente para que seja garantida a manutenção da ordem. Já no nível inter-sistêmico, que se refere a permanente negociação de identidades em contextos interculturais, aspectos da relação de po-
(^14) “all that which resists the construction of meaning based on an exclusionary and conclusional binary model” (Breinig e Losch, 2002, p.23).
produz questionamento. Optei por citar a “diferença” marcada pelas aspas, a fim de demonstrar que diferentemente da visão estanque e polarizada sobre diferença e igualdade, esta “diferença” vem, pois, abrir espaço para o diálogo para a percep- ção de que os atores sociais pertencentes a este entremeio são diferentes de si, e do “Outro” originalmente, uma vez que exista a confluência entre as diversas identidades exercidas pelos atores sociais. Landowski (1997, p.8) fala do “sujeito camaleônico”, para tratar daquele que se encontra no terceiro-espaço, que, como um migrante, não sabe se é de lá ou se é daqui, visto que não é unicamente um ou outro, mas uma releitura de um lá, original, mas não puro, um sujeito híbrido, que vive um novo espaço de recons- trução e constante negociação com seus selves heterogêneos a fim de se encontrar como um self inconstante, instável, visto que plurívico. Baseado nos estudos sobre cultura, comunicação e linguagem, observamos o quanto a relação entre estes campos de estudo contribuem para a construção de identidades sociais, interacionais, individuais e coletivos, vis-à-vis os posiciona- mentos teóricos e os dados gerados para análise pontuados por esta pesquisa. A seguir, apresentaremos os procedimentos teóricos à luz das teorias sociointeracionais adotadas para o desenvolvimento deste trabalho, a teoria do posicionamento, seus desdobramentos e os mecanismos de construção identitária como indexais, accounts , metáforas, que sinalizam a coconstrução em situações de entrevista, no/pelo discurso.