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Lacan e o Trauma: A Dependência do Sujeito ao Significante, Notas de estudo de Psicanálise

Neste documento, analisamos como o conceito de trauma, segundo lacan, é a dependência do sujeito ao significante. Tomamos como base os escritos e seminários de lacan, onde ele retoma a ideia de trauma como apresentada por freud, ajudando-o a reconsiderar a determinação do sujeito. O texto explora como a experiência repetida de um sonho infantil, o sonho dos lobos, permitiu a reconstrução da história do sujeito e a esclarecimento das leis do inconsciente. Além disso, discutimos as operações lógicas constituintes do sujeito, a alienação e a separação, e suas consequências em relação ao sujeito e ao significante.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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usuário desconhecido 🇧🇷

4.5

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A teoria lacaniana do trauma
O objetivo dessa parte do trabalho é retomar a noção de trauma tal como
ela é apresentada principalmente nos Escritos e seminários, para com isso
conseguir sustentar a idéia de Lacan, segundo a qual o verdadeiro trauma do
sujeito60 é a existência da linguagem, é a dependência do sujeito ao significante.
Quer dizer, o trauma por excelência, na obra de Lacan, é a entrada no meio
significante. Ele deve ser entendido como aquilo em torno do qual o sujeito se
constitui, não sendo, desse modo, um mero acidente que ocorre na vida do
falante.
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A clínica do significante e a questão do trauma
Entre 1952 e 1963, Lacan se dedica a estudar um conceito, uma ou duas
obras de Freud a cada ano. Tomando a forma de seminários sobre textos
freudianos, suas aulas voltam-se à idéia de trauma tal como era situado na
origem das neuroses por Freud, o que acabou ajudando Lacan a repensar a
determinação do sujeito.
No entanto, é principalmente no Seminário 11 de 1964, que, ao voltar ao
tema do trauma, Lacan afirma que acaso, acidente e contingência devem ser
dissociados das noções de imprevisibilidade e irracionalidade. Para justificar sua
posição, retoma uma das categorizações aristotélicas61, segundo a qual o
trauma não é acidental. A partir da leitura do texto freudiano Além do princípio do
prazer (Freud, 1920), Lacan (1964) vai diferenciar dois modos de repetição: tiquê
e autômaton. O primeiro refere-se à repetição enquanto encontro com o Real,
Real que está para além do autômaton, do retorno, isto é, da volta comandada
pelo princípio do prazer. Na origem da psicanálise, com a concepção de trauma,
inscreve-se a tiquê como princípio, isto é, o Real “apresentado na forma do que
60 O sujeito em foco é o sujeito do inconsciente, constituído pelo par significante, sendo o intervalo
deles; logo, não deve ser confundido com indivíduo, que tem seu fundamento real no corpo.
61 De acordo com Aristóteles, o essencial se opõe ao acidental. A causa essencial faz com que
uma coisa seja o que é, diferentemente das demais; já a acidental indica infinitas possibilidades
do que pode vir a ocorrer.
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Baixe Lacan e o Trauma: A Dependência do Sujeito ao Significante e outras Notas de estudo em PDF para Psicanálise, somente na Docsity!

A teoria lacaniana do trauma

O objetivo dessa parte do trabalho é retomar a noção de trauma tal como ela é apresentada principalmente nos Escritos e seminários, para com isso conseguir sustentar a idéia de Lacan, segundo a qual o verdadeiro trauma do sujeito^60 é a existência da linguagem, é a dependência do sujeito ao significante. Quer dizer, o trauma por excelência, na obra de Lacan, é a entrada no meio significante. Ele deve ser entendido como aquilo em torno do qual o sujeito se constitui, não sendo, desse modo, um mero acidente que ocorre na vida do falante.

A clínica do significante e a questão do trauma

Entre 1952 e 1963, Lacan se dedica a estudar um conceito, uma ou duas obras de Freud a cada ano. Tomando a forma de seminários sobre textos freudianos, suas aulas voltam-se à idéia de trauma tal como era situado na origem das neuroses por Freud, o que acabou ajudando Lacan a repensar a determinação do sujeito. No entanto, é principalmente no Seminário 11 de 1964, que, ao voltar ao tema do trauma, Lacan afirma que acaso, acidente e contingência devem ser dissociados das noções de imprevisibilidade e irracionalidade. Para justificar sua posição, retoma uma das categorizações aristotélicas^61 , segundo a qual o trauma não é acidental. A partir da leitura do texto freudiano Além do princípio do prazer (Freud, 1920) , Lacan (1964) vai diferenciar dois modos de repetição: tiquê e autômaton. O primeiro refere-se à repetição enquanto encontro com o Real, Real que está para além do autômaton , do retorno, isto é, da volta comandada pelo princípio do prazer. Na origem da psicanálise, com a concepção de trauma, inscreve-se a tiquê como princípio, isto é, o Real “apresentado na forma do que

(^60) O sujeito em foco é o sujeito do inconsciente, constituído pelo par significante, sendo o intervalo

61 deles; logo, não deve ser confundido com indivíduo, que tem seu fundamento real no corpo. De acordo com Aristóteles, o essencial se opõe ao acidental. A causa essencial faz com que uma coisa seja o que é, diferentemente das demais; já a acidental indica infinitas possibilidades do que pode vir a ocorrer.

nele há de inassimilável – na forma do trauma” (Lacan, 1990 [1964], p. 57). Trauma e Real se associam, no discurso lacaniano; o Real é o que volta sempre ao mesmo lugar, sendo distinto da idéia de realidade.

O trauma e o só depois

De acordo com Lacan, na obra freudiana o trauma se relaciona com a entrada no Simbólico. Para acompanhar esta questão, irei agora abordar Lacan em seus primeiros seminários, com o propósito de elucidar o que ele quis dizer com isso. Começarei a discorrer sobre a noção de trauma em Lacan a partir da leitura que esse autor fez da História de uma neurose infantil (Freud, 1918 [1914]), encontrada primeiro no seminário O homem dos lobos (Lacan, 1952a) e, um ano depois, no seminário Os escritos técnicos de Freud (Lacan, 1953-1954). No primeiro seminário, de 1952, Lacan considera que o Homem dos Lobos é um personagem desincluído da sociedade: muito precocemente, este homem foi separado de tudo o que podia constituir para ele um modelo, no plano social. Toda a continuação de sua história – a história de uma neurose infantil, como ficou conhecida a partir de Freud – deve estar situada nesse contexto. Na releitura do caso do Homem dos Lobos , Lacan (1952a) focaliza o trauma estrutural da cena primária. Enfatiza, nessa fase, a importância da idéia de só depois , e que significa que o acontecimento primeiro como tal não foi traumático, assim como não é recuperável posteriormente. Para ele, Freud não pôde jamais obter a reminiscência propriamente dita da realidade, no passado, da cena ao redor da qual girou toda a análise do sujeito. De certo modo, o tratamento do Homem dos Lobos foi influenciado pela investigação freudiana a propósito da existência ou não das tais cenas primitivas. Há algo para além da realidade do acontecimento: a historicidade do acontecimento, quer dizer, algo flexível e decisivo que foi uma impressão no sujeito e que o dominou, sendo necessária para explicar a continuação de seu comportamento. É isto o que dá a importância essencial da discussão de Freud ao redor do acontecimento traumático inicial, na opinião de Lacan. Não é necessário que a criança tenha visto a cena sexual em si, mas que direta ou indiretamente tenha concluído que essa cena verdadeiramente ocorreu, e neste caso a cena foi construída, muito indiretamente, graças ao sonho dos lobos. Freud é quem ensina o sujeito a ler seu sonho: os lobos não se mexem, apenas olham, e têm as mais graciosas

nachträglich por après-coup , ou, em português, por só depois: só depois a situação adquire contornos traumáticos; o valor traumático se dá quando um acontecimento atual se enlaça ao anterior, resignificando-o. No Seminário 1, intitulado Os escritos técnicos de Freud , Lacan (1953-

  1. mais uma vez analisa as intervenções freudianas do caso clínico do Homem dos Lobos para, a partir dele, esclarecer o que entende ser uma questão central nesse escrito freudiano: o trauma. Segundo ele, Freud:

(...) se apercebe de que o trauma é uma noção extremamente ambígua, porque parece, segundo toda evidência clínica, que sua face fantasmática é infinitamente mais importante do que sua face de evento. Desde então, o evento passa para o segundo plano na ordem das referências subjetivas. Em compensação, datar o trauma continua a ser para ele um problema que convém conservar (...). (Lacan, 1993 [1953-1954], p. 46) Como Freud, Lacan reforça, no Seminário 1, que o passado deve ser em certa medida restituído: o que foi originalmente recalcado deve ser reevocado durante o tratamento analítico, apesar de nesse processo surgirem problemas e ambiguidades que o recalcado levanta quanto à sua natureza, função e definição. Como mostrou Freud, para que o recalque seja possível, é preciso que haja um primeiro núcleo do recalcado, que, embora aparente não existir, permanece em alguma parte e chama para si todos os recalques posteriores. Na interpretação de Lacan, o recalque originário é exatamente o momento em que o simbólico se estabelece, deixando de fora muita coisa, inclusive uma relação mais imediata com o corpo.

As formas que toma o recalque são atraídas por esse primeiro núcleo, que Freud atribui então a uma certa experiência, a que chama a experiência original do trauma. Retomaremos mais tarde a questão do que quer dizer trauma , cuja noção deve ter sido relativizada, mas retenham que o núcleo primitivo é de um nível diferente dos avatares do recalque. É o fundo e o suporte deles. (Lacan, 1993 [1953-1954], p. 56) Naquilo que acontece com o Homem dos Lobos , o recalque é um momento importante e diferenciado dos demais: está ligado à experiência de ter assistido a uma relação sexual dos pais. Algo ali está excluído da história do sujeito, sendo necessário um analista para dar sentido à experiência original traumática: “(...) foi preciso, para dar cabo disso, o acosso de Freud. É somente então que a experiência repetida do sonho infantil [o sonho dos lobos] tomou

algum sentido, e permitiu não o revivido, mas a reconstrução direta da própria história do sujeito” (Lacan, 1993 [1953-1954], p. 57). Da maneira como Lacan analisa esse caso clínico, fica explícito que o Homem dos Lobos foi de grande importância para a psicanálise, na medida em que suscitou questões teóricas quanto à função do trauma estrutural e quanto à questão da temporalidade, do só depois – , embora esse só depois já estivesse em cena desde a primeira concepção de trauma na teoria freudiana, antes de

  1. A cena primária é reconstituída no curso da análise, a partir dos efeitos do trauma sobre o sujeito naquele momento do tratamento.

A cena adquire valor traumático para o sujeito entre a idade de 3 anos e 3 meses e 4 anos. Temos a data precisa porque o sujeito nasceu, coincidência decisiva aliás na sua história, no dia de Natal. É na espera dos eventos de Natal, sempre acompanhados para ele, como para todas as crianças, da entrega de presentes que devem vir de um ser que desce, que ele tem, pela primeira vez, o sonho de angústia que é o pivô dessa observação. (Lacan, 1993 [1953-1954], p. 220) Todavia, a cena da relação sexual dos pais nunca pôde ser diretamente evocada ou rememorada, podendo inclusive, de acordo com Freud, nem ter verdadeiramente acontecido. Freud levanta a possibilidade de que o Homem dos Lobos tenha assistido a um coito ocorrido entre cães e concluído que era aquilo que os pais faziam. Dessa forma, o que o sonho com os lobos assinala é a primeira manifestação traumática para o paciente. O trauma, por conseguinte, intervém só depois. Segundo a leitura de Lacan, é na aproximação dos elementos traumáticos, fundados numa imagem desintegrada sobre a qual o sujeito não tem controle, que se produzem os lapsos na síntese da história do falante. As irrupções do inconsciente e os sintomas são descontinuidades na vida psíquica, imputáveis ao retorno do recalcado. Correspondem ao que Freud chamou de descontinuidades na cadeia motivacional consciente do sujeito. Ele considera que quando a motivação consciente não justifica algo, deve-se buscar um motivo inconsciente. Dito de outra forma, o obsessivo não pode inserir sua obsessão de lavar as mãos em qualquer narrativa que dê de si mesmo.

Para exemplificar o que acontece quando algo falha nessa relação mãe- bebê, recordo o caso do jovem André Gide, cuja mãe

(...) tinha altíssimas e notabilíssimas qualidades e um não-sei- quê de totalmente elidido em sua sexualidade, em sua vida feminina, que, na presença dela, certamente deixava o menino, no momento de seus primeiros anos de vida, numa posição não situada. (Lacan, 1999 [1957-1958], p. 269) Segundo Lacan, Gide só gozava na identificação com situações catastróficas. Sua vida só toma sentido a partir de uma época específica da adolescência, quando se identifica a uma jovem prima.

Identificação (...). Trata-se do momento em que ele encontra a prima aos prantos no segundo andar da casa para onde se precipitara, não tanto atraído por ela, mas sim por seu faro, por seu amor à clandestinidade que grassava naquela casa. É depois de haver atravessado o primeiro andar, onde se encontra a mãe da prima – sua tia, a quem ele mais ou menos entrevê nos braços de um amante –, que ele encontra a prima aos prantos e, nisso, encontra um auge de embriaguez, entusiasmo, amor, desamparo e devoção. A partir daí, ele se dedica a proteger essa criança, como nos dirá mais tarde. (Lacan, 1999 [1957-1958], p. 269) Mas Gide nessa época não se identifica só com a prima como também com a mãe da citada prima, que anteriormente já havia tentado seduzi-lo. Com efeito, é no momento em que a tia o seduz, que Gide, pela primeira vez, se transforma no filho desejado, embora fuja horrorizado da cena:

(...) nada viera introduzir o elemento de aproximação e mediação que teria feito daquilo outra coisa que não um trauma. No entanto, ele se descobrira pela primeira vez na posição da criança desejada. Essa situação nova, que sob certo aspecto seria salvadora para ele, iria fixá-lo, no entanto, numa posição profundamente dividida, em razão da maneira atípica, tardia e, repito, sem mediação como se produziu esse encontro. (Lacan, 1999 [1957-1958], p. 270) Dessa maneira, Gide toma na cena de sedução um lugar diferente do até então ocupado. Onde havia vazio, passou a haver um lugar de criança desejada, porém nada mais que isso. Não podendo aceitar o desejo do qual foi objeto, Gide se recusa a permanecer nesse lugar, mas seu eu passa a se identificar para sempre, mesmo sem o saber, com o sujeito do desejo do qual ele se tornou dependente: “Gide apaixonou-se para sempre, até o fim da vida, por aquele menininho que ele fora por um instante nos braços da tia, dessa tia que lhe afagara o pescoço, os ombros e o peito. Sua vida inteira resumiu-se nisso” ( ibidem , p. 270). Como mais tarde Lacan desenvolveu extensivamente em seu

seminário sobre a angústia, o desejo do Outro é sempre traumático (Lacan, 1962-1963). Assim, o que Gide guardou do trauma ao longo da vida? Na verdade, a partir desse momento e até seus últimos dias, Gide se apaixonou pelo menino acariciado que ele não quis ser. Por isso, “já em sua viagem de núpcias (...), ele pensava nas suplicantes delícias (...) de acariciar os braços e os ombros dos rapazinhos que encontrava no trem” (Lacan, 1999 [1957-1958] , p. 270), mostrando assim o ponto privilegiado de toda a fixação de seu desejo.

A separação da mãe é traumática^63

Diferente do desejo do Outro como traumático (exemplificado através do caso Gide), há uma outra idéia de trauma, também ligada à tenra infância e à separação mãe-bebê. Ao contrário do que Rank (1924) havia defendido anos antes, na perspectiva lacaniana o trauma do nascimento não é sinônimo de separação da mãe nem pode ser explicado a partir da angústia do desmame. De acordo com Lacan (1962-1963), o momento mais decisivo na angústia do desmame não é propriamente o momento em que o seio falta às necessidades do bebê, mas sim é aquele em que a criança cede^64 o seio, como se ele tivesse sido parte dela mesma. Durante a amamentação, o seio faz parte da criança que está sendo amamentada, e encontra-se chapado na mãe. É neste sentido que, para Lacan, a criança não é desmamada pela mãe: ela se desmama.

É na possibilidade de agarrar ou soltar esse seio que se produz o momento de surpresa mais primitivo, às vezes apreensível na expressão do recém-nascido, na qual passa pela primeira vez o reflexo – relacionado com esse órgão que é muito mais que um objeto, que é o próprio sujeito – de algo que serve de suporte, de raiz para o que, num outro registro, foi chamado de desamparo. (Lacan, 2005 [1962-1963], p. 340) O bebê brinca de largar o seio e novamente pegá-lo. Nessa medida, o seio é, para a criança, um sinal de que existe um vínculo com a mãe – ou, como assinala Lacan, de que existe um vínculo com o Outro: “O seio não é o Outro, não é o vínculo a ser rompido com o Outro, mas é, no máximo, o primeiro sinal desse vínculo” ( ibidem, p. 355-356). O que o sujeito tem para oferecer ao Outro

(^63) Embora Lacan não enfatize tanto este assunto quanto o fez Freud, trataremos aqui um pouco do 64 que Lacan pôde elaborar sobre o assunto. Em Lacan (1962-1963), cessão do objeto é sinônimo do aparecimento de objetos cedíveis que podem ser equivalentes aos objetos naturais, como, por exemplo, a mamadeira.

objetivo; satisfaz algo, mas não o que deveria ter sido. O que importa, aliás, não é a repetição em si, mas o que é atingido.

A repetição está sempre ligada a um objeto perdido: ela é uma tentativa de reencontrá-lo e no entanto, ao fazer isso, perdê-lo. (...) este objeto perdido (...) é ilustrado, na teoria analítica, pela mãe como o objeto primário fundamental que, mediante a operação do Nome-do-Pai, é para sempre proibida e perdida. Lacan diz que a mãe é aquela Ding fundamental, a coisa sempre perdida e que a repetição tenta recuperar, perdendo sempre. (Miller, 1997, p. 27) Para dar conta disso, Lacan desenvolve o conceito de Real como algo que retorna sempre ao mesmo lugar para o sujeito – o retorno ou a insistência dos signos –, mas que o sujeito não encontra. O Real está, deste modo, ligado a um engano e a um encontro impossível; e a repetição é vista sob o prisma do fracasso, não do sucesso. De certo modo, a repetição – que é um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, numa leitura lacaniana – parece ter sido mal nomeada, pois consiste no retorno do que nunca é o mesmo. Implica, conforme Lacan (1964), no retorno de uma coisa que é diferente da segunda vez, e que só é tomada como repetição por causa do significante. Mas o que há por trás dela já é a pulsão que não encontra mas que nisso se satisfaz. Em um tratamento analítico (pelo menos nos que pretendem ser bem sucedidos), há uma tendência a tornar o analisando cada vez mais ciente de suas repetitivas escolhas de objetos, relações e situações... serializando-as. Contudo, para Lacan, a repetição envolve algo que está excluído da cadeia significante – algo de que o sujeito não irá lembrar, mesmo que se esforce para isso –, mas em torno do qual a cadeia de significantes gira. Isto quer dizer que a repetição envolve tanto o “impossível de pensar” quanto o “impossível de dizer”. 65 Há uma outra perspectiva para se compreender o conceito de inconsciente, articulado à pulsão, que não só o fracasso. O sujeito, de algum modo e em algum nível, sempre obtém satisfação: “mesmo que através de uma aparente infelicidade ou desprazer, o sujeito obtém satisfação. Mesmo que tentemos ir além do princípio do prazer, esse além marca algo que é um além do princípio do prazer de ordem interna” (Miller, 1997, p. 25). Desta maneira, se o objeto da pulsão pode ser isto ou aquilo – o objeto em si não importa, pode-se tê-lo ou não –, no entanto, o que é satisfeito no circuito pulsional permanece o

(^65) Este é o recalcado originário, segundo Lacan.

mesmo. Quer dizer, “Mesmo que não se alcance o alvo, realiza-se o objetivo (...)” (Miller, 1997, p. 25). Logo, o sujeito sempre obtém alguma satisfação. De acordo com Miller, é preciso ainda distinguir a realidade, que é estruturada pela fantasia, daquilo que se refere ao que é satisfeito pelo princípio do prazer: “alguma coisa que não muda, que requer todo o nosso sonho e nossa vigília, mas que é, ainda assim, prazer.” ( ibidem , p. 25). Quanto ao desejo, que não deve ser entendido como sinônimo de prazer, a experiência analítica permite que se enuncie que tem função limitada, franqueada pelo limiar imposto pelo princípio do prazer: “o prazer é o que limita o porte do quinhão humano – o princípio do prazer é o princípio de homeostase” (Lacan, 1990 [1964], p. 35). Para completar, é importante lembrar que, já no ensaio Além do princípio do prazer , Freud (1920) tomou a repetição como além do princípio do prazer e também da realidade, ambos preocupados com a homeostase.

A compulsão à repetição: uma forma de recordar

As relações do trauma com a compulsão à repetição, tão bem ilustradas nos casos de neuroses traumáticas, são elucidadas por Lacan nas aulas VI e VII do Seminário 2. Nelas, Lacan (12/01 e 19/01/1955) discute os conceitos que são encontrados no texto freudiano Além do princípio do prazer , de 1920: princípios do prazer e de realidade, e compulsão à repetição. Para Lacan, a inspiração freudiana para conceber o princípio do prazer partiu da idéia médico-científica do sistema nervoso, segundo a qual esse sistema sempre visa a restabelecer seu ponto de equilíbrio. No entanto, essa teoria seria oposta à da intuição subjetiva, pois, para Freud, no princípio do prazer, o prazer, por definição, tende a cessar. Por outro lado, cabe ao princípio de realidade resguardar prazeres, aqueles cuja aspiração é justamente atingir o fim. O princípio de realidade não se opõe ao princípio do prazer, mas é apenas uma diferenciação sua, um dispositivo mais adequado a obter o prazer. Diz Lacan que foi introduzido porque, quando se busca o prazer, acontecem acidentes. Freud diria: para que isso não aconteça é preciso levar em conta a realidade. Neste sentido, os princípios do prazer e de realidade adquirem outro valor, na medida em que, longe de serem opostos, eles são complementares. É em oposição ao par princípio do prazer e de realidade que Freud localiza a compulsão à repetição. Lacan (1954-1955) ressalta que nela existem

De acordo com uma primeira versão teórica 68 , para Freud, a compulsão à repetição, não justificada do ponto de vista do princípio do prazer, tem por função dominar o acontecimento. Em outras palavras, o constante retorno de eventos com valor de trauma teria exatamente a função de tentar dominá-lo e integrá-lo na organização simbólica do sujeito, atendendo à finalidade de sempre submeter ao princípio do prazer. “Para Freud, a repetição é, então, consequência do trauma, uma tentativa inútil de anulá-lo e também uma forma de lidar com ele, levando o sujeito a um outro registro, diferente do princípio do prazer (...)” (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 235). Esse foi, na opinião de Lacan, um dos motivos pelos quais Freud recuou frente à idéia de que o psiquismo é regido apenas pelo princípio do prazer e logo propôs um Além do princípio do prazer. Em Da rede dos significantes , Lacan (1964) discute novamente a função da repetição e, para tanto, resgata dois textos freudianos: Recordar, repetir e elaborar (Freud, 1914a) e o quinto capítulo de Além do princípio do prazer (Freud, 1920). Mas por que estes trabalhos são, para Lacan, essenciais para sustentar tal discussão? Embora só tenha desenvolvido todas as suas implicações teóricas em 1920, foi em Recordar, repetir e elaborar que Freud (1914a) começou a conceituar compulsão à repetição como “um objeto autônomo de sua reflexão” (Roudinesco & Plon, 1998, p. 657).^69 Interessado por questões relacionadas à técnica, em Recordar, repetir e elaborar , Freud aproxima a compulsão à repetição da transferência, mesmo não constituindo a totalidade da transferência: a grosso modo , ela é uma maneira própria do analisando se lembrar. Como Freud diz, logo no início do tratamento analítico, após ser explicada a regra fundamental da psicanálise ao paciente, ou seja, a associação livre, o analista espera escutar tudo o que vem à mente do paciente. Entretanto, segundo Freud (1914a), o que se observa a partir disso é totalmente diferente: o paciente fica silencioso, declarando que nada tem a relatar. O que assim se evidencia é uma resistência contra recordar algo. Assim, o paciente começa seu tratamento por uma repetição deste tipo, quer dizer, por uma compulsão à repetição – ele repete ao invés de recordar, e repete sob o efeito de resistências.

(^68) Mais tarde, numa outra versão, Freud radicalizou a noção de trauma e, nessa perspectiva, a compulsão à repetição é a própria marca do trauma original e que Freud coloca no sintoma, 69 como sendo o mais próprio do sujeito e que nunca muda. As idéias de repetição e compulsão, na teoria freudiana, aparecem todavia em textos bem anteriores ao de 1914. Já na década de 1890, Freud frisou a importância da repetição na abordagem de casos de histeria (Freud, 1893a) e empregou o termo de compulsão numa carta a Fliess (07/02/1894), onde discutia suas dificuldades em ligar a neurose obsessiva à sexualidade (cf. Roudinesco & Plon, 1998, p. 656-657).

(...) o paciente submete-se à compulsão à repetição, que agora substitui o impulso de recordar, não apenas em sua atitude pessoal para com o médico, mas também em cada diferente atividade e relacionamento que pode ocupar sua vida na ocasião (...). (Freud, 1969 [1914a], p. 197) O que é que o paciente repete, na opinião de Freud (1914a)? Ele repete o que já havia avançado a partir das fontes do recalcado – “suas inibições, suas atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter” ( ibidem , p. 198) – assim como repete seus sintomas, no transcorrer da análise. Desta forma, através de reações repetitivas no decurso do tratamento e com a superação de resistências porventura existentes, despertam-se lembranças até então recalcadas. Do capítulo cinco do Além do princípio do prazer (Freud, 1920), Lacan está interessado em esclarecer “por que, de primeiro, a repetição terá aparecido ao nível do que chamamos neurose traumática?” (Lacan, 1990 [1964], p. 53). Pergunta-se também qual a função da compulsão à repetição, se nada parece justificá-la do ponto de vista do princípio do prazer. No que se refere à função da compulsão à repetição, Lacan considera que seu objetivo era dominar o acontecimento traumático. Segundo ele, no Além do princípio do prazer , Freud indica que o que se passa nos sonhos da neurose traumática, depende do nível do funcionamento mais primitivo do psiquismo, ou seja, do processo primário^70. Além disso, a descoberta de Freud é que a função de repetição evidencia a relação do pensamento com o Real (Lacan, 1990 [1964], p. 52). Para Freud (1920), um fracasso por parte dos estratos mais elevados do aparelho mental em sujeitar a excitação pulsional, que assim fica funcionando em processo primário, provoca um distúrbio análogo à neurose traumática. Somente após se efetuar essa sujeição é que se torna possível que o princípio do prazer (bem como sua modificação, o princípio de realidade) avançe sem obstáculos. “Até então, a outra tarefa do aparelho mental, a tarefa de dominar ou sujeitar as excitações, teria precedência, não, na verdade, em oposição ao princípio do prazer, mas independentemente dele e, até certo ponto, desprezando-o” (Freud, 1976 [1920], p. 52). Assim, as crianças repetem experiências desagradáveis para poderem dominar uma impressão de maneira ativa, ao invés de fazê-lo simplesmente experimentando-a de modo passivo. Esta repetição de algo idêntico é, em si, uma fonte de prazer. Em contrapartida, a compulsão à repetição dos

(^70) No inconsciente, o tipo de processo psíquico encontrado é o processo psíquico primário, enquanto na vida de vigília normal é o processo psíquico secundário (Freud, 1976 [1920], p. 51).

Para Aristóteles, a tiquê está compreendida no autômaton , que podemos traduzir pelo nosso acaso. A tiquê , diz ele, tem relação com as coisas produzidas, seja pela inteligência, seja pela natureza, com vistas a um fim determinado, mesmo que não esteja ao alcance do homem. O autômaton é aquilo que se produz à margem da natureza, tem a causa fora de si e está privado de finalidade natural. Por isso, autômaton designa algo que se move por si mesmo, donde, mais tarde, a idéia de autômato e a de automatismo. (Gueller, 2005, p. 11) Lacan (1964) traduz a tiquê aristotélica por encontro com o Real contingente, que está para além da insistência dos signos (isto é, está para além do autômaton ). O autômaton , ele traduz como rede de significantes, através da qual algo se repete, na medida em que está submetida ao princípio do prazer. Em outras palavras, o autômaton corresponde ao desdobramento automático no inconsciente da cadeia significante. O trauma é um encontro faltoso com a tiquê ; um encontro essencial, que demanda o novo mas que nem por isso é totalmente assimilável. O Real, por sua vez, se estabelece como “o que vige sempre por trás do autômaton , e do qual é evidente, em toda a pesquisa de Freud, que é do que ele cuida” (Lacan, 1990 [1964], p. 56). Assim, este Real que escapole, está para além do retorno e da insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio do prazer. Ao comentar sobre o assunto, Fink acrescenta que, para Lacan (no sem. 11 de 1964),

O real aqui é o nível de causalidade, o nível daquilo que interrompe o funcionamento tranquilo do autômaton , da seriação automática, sujeita à lei regular dos significantes do sujeito no inconsciente. Ao passo que os pensamentos do analisando estão destinados a perder sempre o alvo do real, conseguindo apenas circular ou gravitar em torno dele, a interpretação analítica pode atingir a causa, levando o analisando a um encontro com o real: tiquê. O encontro com o real não está situado no nível do pensamento, mas no nível onde a “fala oracular” produz não-senso, aquilo que não pode ser pensamento. (Fink, 1997, p. 241-242) Nesta citação vemos que o nível em que Lacan está colocando o Real é o do recalcado originário. Já no domínio do autômaton , Lacan inclui o retorno do recalcado, que, em sua qualidade de formação do inconsciente, é regido pelo princípio do prazer. A compulsão à repetição não está ligada ao retorno da necessidade, nem se assenta na natureza. Ela demanda algo novo; e é neste sentido que Lacan (1964) sustenta que o encontro com o Real se apresentou pela primeira vez a

Freud sob a forma de trauma, pelo que ele tem de inassimilável. O que não pode ser nomeado é o trauma, que passa a ser identificado, em Lacan, com a coisa da linguagem. No entanto, ele será “tamponado pela homeostase subjetivante que orienta todo o funcionamento definido pelo princípio do prazer” (Lacan, 1990 [1964], p. 57). Para exemplificar melhor o assunto, recorro ao sonho do pai velando seu filho, relatado por Freud no capítulo VII de A interpretação de sonhos (1900), para, logo em seguida, discutir os comentários que Lacan faz sobre ele, nas lições 3, 5 e 6 do Seminário 11.

(...) um pai estivera de vigília à cabeceira do leito de seu filho enfermo por dias e noites a fio. Após a morte do menino, ele foi para o quarto contíguo para descansar, mas deixou a porta aberta, de maneira a poder enxergar de seu quarto o aposento em que jazia o corpo do filho, com velas altas a seu redor. Um velho fora encarregado de velá-lo e se sentou ao lado do corpo, murmurando preces. Após algumas horas de sono, o pai sonhou que seu filho estava de pé junto a sua cama, que o tomou pelo braço e lhe sussurrou em tom de censura: ‘Pai, não vês que estou queimando?’ Ele acordou, notou um clarão intenso no quarto contíguo, correu até lá e constatou que o velho vigia caíra no sono, e que a mortalha e um dos braços do cadáver de seu amado filho tinham sido queimados por uma vela acesa que tombara sobre eles. (Freud, 1987 [1900], p. 468) Ao invés de querer entender porque o pai continuou dormindo, como fez Freud, Lacan se pergunta o que precisamente o despertou, posto que é “no sonho somente que se pode dar esse encontro verdadeiramente único. Só um rito, um ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro imemorável – pois que ninguém pode dizer o que seja a morte de um filho – senão o pai enquanto pai – isto é, nenhum ser consciente” (Lacan, 1990 [1964], p. 60). No sonho da “criança queimando” (Freud, 1900 apud Lacan, 1964), o lugar do Real, que vai do trauma (esse ponto de encontro) à fantasia (como construção simbólica), encontra-se representado nas coisas que testemunham que não se trata de um sonho – a saber, um acidente como o da vela que cai, queimando o quarto onde jaz o filho morto ou, então, a própria voz do filho morto clamando ao pai por socorro (Lacan, 1990 [1964], p. 59). Em Algumas notas adicionais sobre a interpretação dos sonhos como um todo , Freud diz que o sonho é “uma fantasia a trabalhar em prol da manutenção do sono” (Freud, 1976 [1925], p. 159). Logo, se o sonho desempenha bem sua função, quando acorda o sujeito nada sabe dele, nem de sua missão. Contudo, se, mesmo após vários anos, o sujeito lembrar dos sonhos, isso significa que

Assim, o prolongamento do sono permite ao pai evitar se encontrar diante da morte da criança. Um encontro faltoso, um tropeço entre um pai e um filho, passou-se entre o sonho e o despertar, entre aquele que dorme ainda (a criança morta ou o velho?) e de quem não conheceremos jamais os sonhos, e o pai, que produziu um sonho essencialmente traumático para, através dele, prolongar a vida do filho que ele não conseguiu salvar. Por sua vez, é o encontro do barulho e do clarão das chamas com o significante queimando que evoca a Freud a febre da criança e propicia que se produza esse sonho que, posteriormente, adquire para esse pai impotente^71 um valor traumático. Na lição de 21/01/1970 do Seminário 17, Lacan afirma que Freud não emprega em seus textos a expressão necessidade de dormir mas desejo de dormir , o que é totalmente diferente:

O curioso é que ele [Freud] completa essa indicação com o seguinte – um sonho desperta justamente no momento em que poderia deixar escapar a verdade, de sorte que só acordamos para continuar sonhando – sonhando no real, ou, para ser mais exato, na realidade. (Lacan, 1994 [1969-1970], p. 54)

Assim, o sujeito acorda quando algo da ordem do Real interfere no sonho, como no sonho de angústia. O ato de despertar, portanto, permite àquele que acordou prosseguir fantasiando. Neste sentido, para Lacan (1964), Freud pôde confirmar no sonho da “criança queimando” sua teoria do sonho como realização de desejo, mesmo que o sonho traumático contradiga a tese do sonho como guardião do sono – o desejo manifesta-se aí pela perda imajada do objeto, através do gesto da criança que pega o pai pelo braço. Por sua vez, em um seminário anterior ao 17, Lacan (1964) já sugerira que, por meio do sonho da “criança queimando”, Freud havia apresentado sua elaboração final à respeito da compulsão à repetição, apesar dela só ter surgido como conceito mais tarde. Sobre o assunto da compulsão à repetição, lembro que, no Além do princípio do prazer , Freud (1920) revisa os conceitos de princípio do prazer e princípio de realidade, à luz das experiências com traumas de guerra, que lhe pareciam inassimiláveis. É neste contexto que Lacan introduz a questão dos sonhos. Geralmente associados ao princípio do prazer autômaton , com Lacan os sonhos encarnam o desejo do sonhador embora também portem, sob uma forma velada, a cena traumática, parte essencial da ordem do Real. Falando do sonho da “criança queimando”, Lacan diz: “O real, é para além do

(^71) A impotência paterna frente ao ocorrido é fator relevante para que o sonho adquira valor traumático.

sonho que temos que procurá-lo – no que o sonho revestiu, envelopou, nos escondeu, por trás da falta de representação, da qual só existe um lugar- tenente” (Lacan, 1990 [1964], p. 61). Logo, se antes desta frase Lacan pareceu sugerir que o Real se apresentava facilmente em sonhos, aqui ele esclarece que só é possível encontrar o seu representante no sonho, posto que a representação do Real é faltosa per se. O que se repete, no sonho, é sempre algo que se produz como por acaso.

Operadores da divisão do sujeito

Não há sujeito sem, em alguma parte, afânise do sujeito, e é nessa alienação, nessa divisão fundamental, que se institui a dialética do sujeito. (Lacan, 1990 [1964], p. 209)

Tratarei agora de duas operações lógicas constituintes do sujeito – a alienação e a separação – e que estão intimamente referidas ao trauma estruturante na obra lacaniana após 1964. No passado, Lacan já havia utilizado o termo alienação em outro contexto. No artigo sobre o estádio do espelho, publicado em 1949, Lacan trabalha o tema da alienação imaginária a propósito da constituição do eu [ Je ]: “alienação à imagem que lhe é devolvida pelo espelho e com a qual se identifica por meio do olhar do Outro” (Berendonk, 2005, p. 50). De acordo com Lacan (1949), o eu conserva uma dimensão imaginária, na medida em que se constrói a partir da imagem daqueles com os quais se identificou em seu percurso. Justamente o fato de se constituir a partir da identificação com uma “imagem – sempre mais ou menos fixa – e de identificação com o outro”, faz com que o “eu tenha qualquer coisa de coagulado, e, ao mesmo tempo, qualquer coisa de alienante” (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 29). Mas não é nessa acepção de alienação imaginária que iremos nos deter. Lacan volta ao termo alienação, mas num sentido diverso, ao introduzir em 1964 dois operadores, a alienação e a separação, que estão em jogo na constituição do sujeito e dizem respeito ao fato de que o sujeito é produzido dentro da linguagem que o aguarda, e é inscrito no lugar do Outro. Assim, o sujeito depende do significante, que está inicialmente no campo do Outro.