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2. Gramsci: Uma Breve Introdução, Notas de estudo de Construção

“Antonio Gramsci, sem dúvida, foi o teórico marxista que mais insistiu sobre o conceito de hegemonia: e o fez reclamando-se particularmente de Lênin. (.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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2.
Gramsci: Uma Breve Introdução
“O maior marxista ocidental do século XX”
Eric J. Hobsbawn
2.1.
Introdução
Se por um lado Marx legou preciosas e relevantes teorizações acerca do
capitalismo, de suas relações centrais e de suas tensões constitutivas, Gramsci, por
sua vez, foi o teórico marxista que “(...) contribuiu à tradição materialista
histórica um vocabulário conceitual com o qual habilita processos de política
transformadora” (Rupert, 2003b:185). Não obstante, o que teria Gramsci a dizer
acerca dos fenômenos mundiais?
Gramsci se dedicou à política internacional em algumas partes dos seus
cadernos, onde ele trata de assuntos variados. Não obstante, dois comentários
podem ser feitos acerca dessas “Notas de Política Internacional”: em primeiro
lugar, é possível perceber que o cerne dessas notas é a Primeira Guerra Mundial;
em segundo lugar, estes escritos são poucos e, não obstante sua importância,
parecem haver ocupado uma posição secundária na obra do autor. Na verdade,
nota-se que Gramsci se dedicou ao estudo e entendimento das formações
capitalistas em sua dimensão nacional
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. Contudo, o que interessa aos
neogramscianos não são especificamente os escritos de Gramsci sobre política
internacional, e sim seus conceitos básicos que, segundo tais teóricos, podem ser
perfeitamente empregados a fim de explicar as recentes transformações do
capitalismo. Assim, esses teóricos se propõem a ajustar semanticamente tais
conceitos – mantendo seu significado essencial – para que estes possam ser
aplicáveis ao âmbito das relações internacionais, contribuindo assim para o
entendimento dos problemas da ordem mundial (Cruz, 2000 e Cox, 1994).
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De maneira ainda mais específica, Gramsci se dedicou ao entendimento da dimensão nacional
italiana, ou seja, se dedicou à análise dos problemas históricos da unidade nacional italiana (isso
fica mais claro no que tange aos Cadernos do Cárcere). Para maiores detalhes, ver Gruppi,
1978:65, Cruz, 2000:41-42, Gill, 1994:3-4 e Sassoon, 1980.
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Gramsci: Uma Breve Introdução

“O maior marxista ocidental do século XX” Eric J. Hobsbawn

2.1. Introdução

Se por um lado Marx legou preciosas e relevantes teorizações acerca do capitalismo, de suas relações centrais e de suas tensões constitutivas, Gramsci, por sua vez, foi o teórico marxista que “(...) contribuiu à tradição materialista histórica um vocabulário conceitual com o qual habilita processos de política transformadora” (Rupert, 2003b:185). Não obstante, o que teria Gramsci a dizer acerca dos fenômenos mundiais? Gramsci se dedicou à política internacional em algumas partes dos seus cadernos, onde ele trata de assuntos variados. Não obstante, dois comentários podem ser feitos acerca dessas “Notas de Política Internacional”: em primeiro lugar, é possível perceber que o cerne dessas notas é a Primeira Guerra Mundial; em segundo lugar, estes escritos são poucos e, não obstante sua importância, parecem haver ocupado uma posição secundária na obra do autor. Na verdade, nota-se que Gramsci se dedicou ao estudo e entendimento das formações capitalistas em sua dimensão nacional^3. Contudo, o que interessa aos neogramscianos não são especificamente os escritos de Gramsci sobre política internacional, e sim seus conceitos básicos que, segundo tais teóricos, podem ser perfeitamente empregados a fim de explicar as recentes transformações do capitalismo. Assim, esses teóricos se propõem a ajustar semanticamente tais conceitos – mantendo seu significado essencial – para que estes possam ser aplicáveis ao âmbito das relações internacionais, contribuindo assim para o entendimento dos problemas da ordem mundial (Cruz, 2000 e Cox, 1994).

(^3) De maneira ainda mais específica, Gramsci se dedicou ao entendimento da dimensão nacional italiana, ou seja, se dedicou à análise dos problemas históricos da unidade nacional italiana (isso fica mais claro no que tange aos Cadernos do Cárcere ). Para maiores detalhes, ver Gruppi, 1978:65, Cruz, 2000:41-42, Gill, 1994:3-4 e Sassoon, 1980.

Como afirma Gill, “para dar um entendimento mais completo da hegemonia é necessário elaborar outros conceitos gramscianos” (Gill, 1990:42). Destarte, antes de analisar os autores neogramscianos per se e suas interpretações acerca dos processos de construção e contestação da hegemonia no âmbito global, cumpre oportuno apresentar, de maneira sucinta, o conceito de hegemonia e alguns dos conceitos gramscianos que se encontram intimamente relacionados a este.

2.2. A problemática da hegemonia

De início, faz-se necessário notar a posição de destaque que o conceito de hegemonia goza dentro da obra de Gramsci 4. Na verdade, como afirma Gruppi,

“Antonio Gramsci, sem dúvida, foi o teórico marxista que mais insistiu sobre o conceito de hegemonia: e o fez reclamando-se particularmente de Lênin. (...) Em todas as análises realizadas por Gramsci, encontro a presença de uma linha principal que as guia, presente em todos os Cadernos (grifo do autor). Essa constante me parece ser o problema da hegemonia (...)” (Gruppi, 1978:1 e 66). A palavra hegemonia era deveras utilizada no início do século XX na Rússia com o intuito de indicar a influência das classes trabalhadoras sobre as demais classes. Contudo, como colocado mais à frente, Gramsci ampliou o conceito ao utilizá-lo para explicar os modos de dominação pela burguesia e para estabelecer uma base teórica para a contra-estratégia proletária adequada para as novas formas políticas do capitalismo hodierno. Neste sentido, não obstante Gramsci ser um autor de linha marxista, deve-se sublinhar desde já a singularidade de sua obra 5 , uma vez que podemos caracterizá-lo como um autor que se coloca em uma posição de renovação e conservação em relação à Marx e à Lênin. Isso é fundamental, já que

"(...) a teoria social de Marx não é constituída por dogmas e sim por propostas que precisam ser compreendidas a partir de diferentes momentos do movimento histórico. Isso porque o marxismo é pensamento e ação; ou seja, a história é um processo dialético de conservação/renovação. Repetir mecanicamente Marx, Engels ou Lênin como uma cartilha é ser, antes de tudo, antimarxista. A reflexão

(^4) “Não há termo mais estreitamente associado à figura de Antonio Gramsci do que ‘hegemonia’” (Buttigieg, 2003:39). Ver também Sassoon, 1980:12. 5 Deve-se ter em mente que a delimitação de Gramsci como pensador do ‘Ocidente’ tem sentido apenas com a condição de não convertê-lo em um eurocomunista avant la lettre e de admitir que suas reflexões são aplicáveis a situações que não são tipicamente ocidentais (Aricó, 1998).

verdade que Gramsci desenvolveu esta área relativamente negligenciada pela teoria marxista, não se pode esquecer que tal desenvolvimento se encontra tanto explícita quanto implicitamente em uma problemática que relaciona a superestrutura a uma base econômica ou a uma dimensão da realidade expressa nos termos das condições de produção (Sassoon, 1980). Isso fica mais claro na medida em que as atenções são voltadas para as bases materiais da hegemonia – ou seja, o conceito de hegemonia ética e política também abrange a esfera econômica:

"O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que sejam levados em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida, que se forme um certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa; mas também é indubitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essencial, dado que, se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica; não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica" (Gramsci, 2002b:48). A hegemonia deve ser econômica também já que as condições objetivas fornecem uma base para o estabelecimento daquela, que só poderá ser mantida por uma classe ou grupo que ocupe um lugar de destaque no sistema de produção. Destarte, a condição para a reprodução do consentimento é que o sistema hegemônico produza resultados que, em certa medida, satisfaçam os interesses materiais de curto prazo de vários grupos sociais. Em suma, percebe-se que a hegemonia ideológica só pode ser mantida se estiver calcada em uma base material (Przeworski, 1989). Isso expressa o fato de que não há, em Gramsci, uma supervalorização da subjetividade em detrimento da objetividade – o que o mantém coerente ao método ontológico-social marxiano. Se, por um lado, Gramsci não vê a economia como a mera produção de objetos materiais, se recusando a vê-la como algo isolado da totalidade social, por outro ele não nega a “determinação em última instância” da totalidade social pela economia. Como ele mesmo afirma,

“A estrutura e as superestruturas formam um ‘bloco histórico’, isto é, o conjunto complexo e contraditório das superestruturas é o reflexo do conjunto das relações sociais de produção” (Gramsci, 2004:250).

ao lado das frentes meramente econômicas e políticas” (Gramsci, 2004:295). Nas palavras de Przeworski, “ De fato, já se disse que Gramsci é o teórico marxista das ‘superestruturas’, da ‘dominação cultural’, da ‘hegemonia ideológica’” (Przeworski, 1989: 163).

Em outras palavras, para Gramsci a ação do sujeito – a política em seu sentido mais amplo – não se dá no vazio, mas sim no interior de determinações econômico-objetivas que limitam, sem anular, a ação do sujeito. Tal postura adotada por Gramsci reflete uma postura já adotada por Marx anteriormente:

“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” (Marx, 1974:17). O fator econômico não produz um fechamento final no sentido estrito de garantir um resultado; a determinação do econômico sobre o político e o ideológico só pode ocorrer em termos do estabelecimento anterior de limites que definam o terreno das operações. Em suma, na mesma senda de Marx, Engels, Lênin e Lukács, Gramsci vê a determinação da política pela economia não como uma imposição mecânica de resultados unívocos e fatais mas como algo que condiciona “(...) o âmbito das alternativas que se colocam à ação do sujeito ” (Coutinho, 1981:75 – grifo do autor)^8_._ Conforme apontado previamente, a originalidade de Gramsci repousa, dentre outros aspectos, no fato de que Gramsci foi o primeiro a aplicar o conceito de hegemonia também à burguesia, ou seja, aos mecanismos de exercício da hegemonia das classes dominantes. Segundo Gramsci, as relações capitalistas de produção podem ser mantidas sob condições democráticas e, consequentemente, a exploração pode ser mantida com o consentimento dos explorados. É partindo dessas afirmações que Gramsci desenvolve o conceito de hegemonia, que emerge basicamente enquanto capacidade de entender os problemas reais do homem e de não limitar-se a uma expectativa passiva das conseqüências decorrentes das leis gerais que governam o capitalismo, sendo assim uma chave na leitura e na análise de processos históricos (Gruppi, 1978).

(^8) Nas palavras de Hall, “o que é ‘científico’ a respeito da teoria política marxista é que ela busca compreender os limites da ação política estabelecidos pelo terreno no qual ele opera. (...) Compreender a ‘determinação’ em termos do estabelecimento de limites e parâmetros, da definição de espaços de operação, das condições concretas de existência, do caráter ‘já dado’ das práticas sociais, em vez da previsibilidade absoluta de resultados específicos, é a única base de um ‘marxismo sem garantias finais’. Ela estabelece o horizonte aberto (grifo do autor) da teoria marxista – determinação sem fechamentos garantidos” (Hall, 2003:292).

principais para a própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder e mesmo se o mantém fortemente nas mãos, torna-se dominante, mas deve continuar a ser também 'dirigente'" (Gramsci, 2002a:62-63). É importante frisar que, para Gramsci, coerção e consenso não são opostos; na verdade, a força é um elemento constitutivo do consenso na medida em que qualquer ruptura deste traz à tona os mecanismos de coerção – mecanismos estes que são intrínsecos a todas as esferas da vida social e permanecem latentes enquanto o consenso se mostrar suficiente para manter a reprodução das relações sociais. A coerção é o elemento latente, inerente ao consenso. “A coerção é, portanto, ubíqua; não se limita a qualquer instituição específica” (Przeworski, 1989:198-199). Deve-se notar que, quando Gramsci discorre a respeito da hegemonia como sendo “direção intelectual e moral”, ele afirma que essa direção deve ser exercida no campo das idéias e da cultura, manifestando assim a capacidade de conquistar o consenso e de formar uma base social, uma vez que não há direção política sem consenso. É importante notar que a hegemonia cria, também, a subalternidade de outros grupos sociais, subalternidade essa que não se refere apenas à submissão à força, contudo também às idéias. Não se pode, em hipótese alguma, perder de vista que a classe dominante repassa a sua ideologia e realiza o controle do consenso através de uma rede articulada de instituições culturais, instituições estas que seriam os “aparelhos privados de hegemonia” – por exemplo: a escola, a igreja, os jornais e os demais meios de comunicação em geral, cuja finalidade principal é inculcar nas classes dominadas a subordinação passiva, através de um complexo emaranhado de ideologias formadas historicamente. Quando isso ocorre, nota-se que a subalternidade social das classes também se torna política e cultural; ou seja, se por um lado o âmbito econômico é um aspecto fundamental de toda a problemática gramsciana, por outro é o reino da política – vinculado à questão da hegemonia – que é o “momento do mais alto desenvolvimento histórico de uma classe” (Sassoon, 1980:116). Destarte, pode-se dizer que hegemonia é isso: determinar os traços, as características, as peculiaridades específicas de uma determinada condição histórica, ou seja, de um determinado processo histórico. É tornar-se o protagonista, através de um processo progressivo, de reivindicações que são de

outros estratos sociais, unificando-os através de parâmetros ideológicos e mantendo-os unidos. A hegemonia portanto não é apenas política, mas é também um fato cultural, moral, enfim, de concepção de mundo. Assim, a luta pela hegemonia deve envolver, de maneira cabal, todos os níveis da sociedade: a base econômica; a superestrutura política; e a superestrutura ideológica. Em suma, hegemonia é a capacidade que uma classe ou grupo tem de unificar e de manter unido, através da ideologia – e da realidade material –, um bloco social que não é homogêneo, mas sim marcado por profundas contradições de classe. Cria-se então uma vontade coletiva que tem como finalidade a consecução de um projeto econômico-político-social que envolve a constituição/reprodução de uma determinada ordem social (Mello, 1996).

2.3. As concepções de Estado: “restrito” e “ampliado”

É interessante notar que Gramsci possui tanto um conceito “restrito” quanto “ampliado” de Estado. O primeiro – o conceito “restrito” de Estado – corresponde à “sociedade política”, que se refere ao aparato governamental formal do Estado, seja ele administrativo, legal ou coercitivo. Já o conceito “ampliado” vê o Estado como fundido às sociedades civil e política:

“(...) na noção geral de Estado (ampliada) entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção). (...) (Ou seja,) isto significa que por ‘Estado’ deve-se entender, além do aparelho de governo, também o aparelho ‘privado’ de hegemonia ou sociedade civil” (Gramsci, 2002b:244; 254-255). Pode-se dizer, assim, que para Gramsci a separação entre sociedade civil e sociedade política é de caráter puramente metodológico. Isso se dá porque

“(...) organizações na sociedade civil freqüentemente têm um aspecto público: os líderes de um sindicato, uma associação de patrões, igreja, partido político, a mídia, ou mesmo uma loja maçônica pode ser atraída para dentro do Estado, seja direta ou indiretamente. Alguns elementos da sociedade civil, tais como as universidades ou escolas, também podem ser fundadas por ou ser parte do Estado” (Gill, 1990:43). Neste sentido, vê-se que a sociedade civil se relaciona não somente com o Estado mas também com as forças de produção, uma vez que o caráter do Estado e de seu engajamento na sociedade civil varia de acordo com as relações

Estado, é claro, mas exatamente isto exigia um acurado reconhecimento do caráter nacional” (Gramsci, 2002b:262). Assim, fazendo uso de uma analogia militar das guerras de movimento e de posições, Gramsci busca mostrar as diferenças circunstanciais e, consequentemente, as diferenças estratégicas entre cada uma 12. A hegemonia realiza-se no âmbito da sociedade civil, e neste sentido uma guerra de movimento

  • ou seja, uma estratégia insurrecional – não lograria êxito nos Estados da Europa ocidental. A estratégia alternativa seria uma guerra de posições que, vagarosamente, constrói os fundamentos sociais de um novo Estado. Destarte, na Europa ocidental a luta deve ser ganha primeiro no âmbito da sociedade civil antes que um assalto ao Estado possa lograr êxito^13.

2.4. A questão da revolução-restauração ou da revolução passiva

Todavia, nem todas as sociedades ocidentais se caracterizam por ser hegemonias burguesas. Haveria, para Gramsci, dois tipos de sociedade: o primeiro se caracterizaria pelo fato de ter passado por uma revolução social que culminou no estabelecimento de novos modos de produção e de relações sociais – exemplos de sociedade desse tipo seriam a Inglaterra e a França. O segundo tipo seriam aquelas sociedades que importaram ou foram forçadas a adotar alguns aspectos de uma nova ordem criada externamente sem abandonar de maneira completa a velha ordem. Neste caso, a dialética revolução-restauração tende a bloquear uma vitória tanto das velhas quanto das novas forças sociais, o que demonstra que em tais sociedades a burguesia falhou em atingir a condição de hegemonia. Isso é o que Gramsci chamou de revolução passiva^14 , “(...) a introdução de mudanças que não envolveram qualquer estímulo das forças populares” (Cox, 1994:54).

(^12) “Isso deve ser dito sem que se perca de vista o critério geral de que as comparações entre a arte militar e a política devem ser sempre estabelecidas cum grano salis (grifo do autor), isto é, apenas como estímulos ao pensamento e como termos simplificativos ad absurdum (grifo do autor) (...). (Além disso,) só a política cria a possibilidade da manobra e do movimento” (Gramsci, 2002b:122 e 124). 13 “(...) torna-se claro que pode e deve haver uma atividade hegemônica mesmo antes da ida ao poder e que não se deve contar apenas com a força material que o poder confere para exercer uma direção eficaz (...)” 14 (Gramsci, 2002a:63). Tal conceito tem sua origem com Vincenzo Cuoco, que fez uso deste a fim de indicar que a revolução napolitana, suscitada pelo impacto de acontecimentos externos, como a Revolução Francesa e as guerras napoleônicas, se restringiu a um grupo relativamente pequeno de intelectuais e não foi capaz de manter relações com as necessidades concretas do povo. Por outro lado, os

Um dos exemplos de revolução passiva é o relacionamento existente entre a forma mais dinâmica de poder produtivo e economia política – ou seja, Americanismo e Fordismo – e as formas mais atrasadas de economia política na Europa. No tocante especialmente à Itália, a revolução passiva envolveu esforços que buscavam introduzir métodos avançados de produção capitalista na falta de uma hegemonia burguesa. Na verdade, isso ocorreu de maneira geral na Europa tanto antes quanto após a II Guerra Mundial. No que diz respeito ao período pós-II Guerra, o processo de revolução passiva se deu em um contexto de ocupação estadunidense e de Plano Marshall. Neste sentido, esforços foram feitos no sentido de introduzir a produção fordista sob condições reformistas impostas de fora visando tanto preservar o capitalismo europeu quanto subordiná-lo ao domínio estadunidense. Em suma, a forma norte-americana de Estado, sociedade civil e modo de acumulação de capital têm se tornado modelos para revolução passiva por todo o mundo neste período pós-II Guerra Mundial (Gill, 2003). Os dois maiores aspectos que acompanhariam o fenômeno da revolução passiva seriam o cesarismo e o transformismo. O primeiro diz respeito à intervenção de um “homem forte” com o objetivo de por fim ao embate entre forças sociais opostas e iguais:

“Pode-se afirmar que o cesarismo expressa uma situação em que as forças em luta se equilibram de modo catastrófico, isto é, equilibram-se de tal forma que a continuação da luta só pode terminar com a destruição recíproca. (...) Mas o cesarismo, embora expresse sempre a solução ‘arbitral’, confiada a uma grande personalidade^15 , de uma situação histórico-política caracterizada por um equilíbrio de forças de perspectiva catastrófica, não tem sempre o mesmo significado histórico” (Gramsci, 2002b:76). Haveria, assim, formas progressistas e reacionárias de cesarismo: progressistas quando um forte domínio promove um desenvolvimento mais ordenado de um novo Estado; reacionárias quando há um forte domínio que promove o estabelecimento do poder existente^16. Um segundo aspecto importante da revolução passiva seria o transformismo, que se refere a um método para implementar um programa

franceses haviam realizado um “revolução ativa” – sendo assim capazes de se defender de seus inimigos e até partir para a ofensiva com grande consenso popular (Coutinho, 2002a). 15 Cumpre oportuno ressaltar que, segundo Gramsci, “pode ocorrer uma solução cesarista mesmo sem um César, sem uma grande personalidade ‘heróica’ e representativa” 16 (Gramsci, 2002b:77). Um exemplo de cesarismo progressista seria Napoleão I, enquanto Napoleão III seria um exemplo de cesarismo reacionário (Cox, 1994).

ênfase na unidade e na coerência das ordens político e social. Em outras palavras, “foi uma defesa intelectual contra a cooptação pelo transformismo (grifo do autor) (Cox, 1994:56). O bloco histórico é um conceito dialético na medida em que a interação de seus elementos cria uma unidade maior; seria a “(...) unidade entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura), unidade dos contrários e dos distintos” (Gramsci, 2002b:26). Nota-se assim, mais uma vez, que para Gramsci a sociedade se apresenta como uma totalidade que deve ser abordada em todos os seus níveis. A justaposição e os relacionamentos recíprocos das esferas de atividade política, ética e ideológica com a esfera econômica evita o reducionismo, ou seja, evita que tudo seja reduzido tanto à economia quanto às idéias. Na leitura gramsciana do materialismo histórico as idéias e as condições materiais se encontram sempre juntas, se influenciando mutuamente e não sendo reduzíveis uma a outra. Contudo, deve-se ter sempre em mente o fato de que Gramsci, em pleno acordo com o método ontológico-social de Marx, não coloca a subjetividade acima da objetividade; em outras palavras, não há, por parte deste autor sardo a negação da “determinação em última instância” (como já afirmara Engels) da totalidade social pela economia (Coutinho, 1981). As idéias devem ser entendidas na sua relação com as circunstâncias materiais, que incluem tanto as relações sociais quanto os meios de produção. Destarte, “superestruturas de organização política e ideológica moldam o desenvolvimento de aspectos da produção e são moldados por eles” (Cox, 1994:56). Cumpre oportuno ressaltar que um bloco histórico não pode existir sem uma classe social hegemônica. Ou seja, em uma situação na qual uma classe hegemônica é a classe dominante em um determinado país ou formação social, o Estado – entendido aqui em seu sentido “ampliado” – mantém a coesão e a unidade dentro do bloco mediante a difusão de uma cultura comum. Por outro lado, um novo bloco se forma quando uma classe subalterna estabelece sua hegemonia sobre os outros grupos subordinados. Este processo requer um intensivo diálogo entre os líderes e os seguidores dentro de uma classe que aspira a hegemonia, o que remete ao papel dos intelectuais no raciocínio de Gramsci. Para Gramsci, os intelectuais desempenham um papel fundamental na construção de um bloco histórico. Eles não fazem parte de um estrato social distinto que “paira” sobre as classes sociais, mas se encontram ligados às classes

sociais. Na verdade, eles desempenham a função de desenvolver e sustentar as imagens mentais, as tecnologias e as organizações que mantêm coesos os membros de uma classe e de um bloco histórico em uma identidade comum: “os intelectuais (...) são os ‘persuasores’ da classe dominante, são os ‘funcionários’ da hegemonia da classe dominante” (Gruppi, 1978:80). Em outras palavras:

“Os intelectuais são os ‘prepostos’ do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso ‘espontâneo’ dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce ‘historicamente’ do prestígio (e, portanto, da confiança) obtido pelo grupo dominante por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparelho de coerção estatal que assegura ‘legalmente’ a disciplina dos grupos que não ‘consentem’, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais desaparece o consenso espontâneo” (Gramsci, 2001b:21). Neste sentido, nota-se que os intelectuais não se encontram limitados apenas às questões técnicas da produção, mas também dão à classe dominante a consciência de si mesma e de sua própria função, tanto na esfera social quanto na esfera política; ou seja, dão homogeneidade à classe dominante e à sua direção. Qualquer grupo social, na medida em que se estabelece na esfera econômica, deve elaborar sua própria hegemonia política e cultural, devendo, assim, criar seus próprios quadros de intelectuais^20. Assim como os intelectuais burgueses desempenharam (e desempenham) o supracitado papel no estabelecimento e manutenção da hegemonia da classe burguesa, os intelectuais orgânicos da classe proletária também deveriam desempenhar um papel semelhante na criação de um novo bloco histórico no qual a classe proletária seja hegemônica. Ou seja, tais intelectuais têm a tarefa de organizar a “reforma intelectual e moral” adequando, assim, a cultura à ação prática. De acordo com Gramsci, “(...) todos os homens são ‘filósofos(...)’” (Gramsci, 2004:93) e tal filosofia espontânea se expressa 1) na linguagem; 2) no

(^20) “Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político (...). (Além disso,) todo grupo social ‘essencial’, contudo, emergindo na história a partir da estrutura econômica anterior e como expressão do desenvolvimento dessa estrutura, encontrou (...) categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade histórica que não foi interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas” (Gramsci, 2001b:15, 16). Estes seriam, respectivamente, os dois grupos de intelectuais identificados por Gramsci: os intelectuais orgânicos e os intelectuais tradicionais.

reflitam uma hegemonia, essas instituições e ideologias não aparentarão promover os interesses de um classe específica, mas serão universais em sua forma. Ou seja, satisfarão alguns dos interesses dos grupos subordinados sem minar a liderança e os interesses da classe hegemônica (Gramsci, 2002b:40-46). Isso diz respeito a uma questão crucial no pensamento de Gramsci, a saber: sua crítica ao determinismo que é inerente ao materialismo vulgar e sua ênfase no papel do sujeito no processo histórico. Isso se dá devido ao fato de que, para Gramsci, o bloco histórico não pode ocorrer de maneira espontânea nem simplesmente como resultado das necessidades econômicas, necessitando da liderança e da ação baseadas em uma consciência política altamente desenvolvida dentro da classe dominante.

2.6. Conclusão

Conforme visto acima, Gramsci é um pensador ímpar, principalmente para todos os que buscam formas alternativas para a transformação da realidade social. No tocante à tradição materialista histórica, nota-se que Gramsci revisa, renova e sofistica de maneira ampla vários dos conceitos desta a fim de torná-los mais pertinentes às relações sociais do século XX. Contudo, não se pode deixar de frisar o fato de que Gramsci não foi apenas um teórico. Na verdade, ele sempre foi ao mesmo tempo um intelectual político e um ativista socialista italiano; ou seja, seus escritos teóricos se desenvolvem a partir desse engajamento orgânico que Gramsci manteve com a realidade social de sua época não apenas com o intuito de entendê-la, mas também de transformá-la. Isso aponta para um outro ponto deveras relevante na obra de sua obra: a partir de rompimento total e completo com as versões economicistas, mecanicistas e deterministas do marxismo – expresso, por exemplo, em suas críticas ao “Ensaio popular de sociologia” de Bukharin^22 –, Gramsci adota um “historicismo absoluto” (Gramsci, 2004:155) com o intuito de articular teoria e prática. Neste sentido, ele não vê a compreensão da realidade social como um fim em si mesma; antes, busca seguir a máxima expressa por Marx e Engels na 11ª^ tese sobre Feuerbach: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes

(^22) Cf. o Caderno 11 de Gramsci – Gramsci, 2004:225.

maneiras; mas o que importa é transformá-lo (grifos do autor) (Marx & Engels, 1993:128). Tal contribuição não é nada desprezível na medida em que serve de exemplo tanto para teóricos quanto para ativistas, mostrando a ambos como essa relação orgânica entre teoria e prática é condição sine qua non na construção de qualquer projeto emancipatório. Conforme é sabido, assim como não há um consenso acerca da obra de Marx, também não há uma interpretação unívoca dos escritos de Gramsci – sendo que muitas dessas contestações decorrem da sistematização precária e do caráter fragmentário desses escritos. A despeito de tais observações, seria esta, de maneira sucinta, a parte do pensamento político de Gramsci relevante para a presente análise. Não obstante a pertinência e a contemporaneidade de tal obra, permanece a seguinte pergunta: seria o conceito de hegemonia – entendido aqui em seu sentido gramsciano – aplicável ao âmbito dos estudos internacionais?