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Ana cristina figueiredo explora a prática da psicanálise em ambulatórios públicos, desmistificando a ideia de que ela é inferior ou confusa em comparação com a psicanálise privada. Ela entrevista profissionais da rede pública e discute as dificuldades e possibilidades de trabalhar em ambientes públicos, como recepção, triagem, equipe multiprofissional e clientes. O livro aborda as questões do dinheiro, divã e tempo no contexto da psicanálise e propõe as condições mínimas para que seja identificada como psicanálise.
O que você vai aprender
Tipologia: Notas de estudo
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RESENHA DE LIVROS
Rev. Latinoam. Psicopat. Fund ., III, 4, 165-
Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica psicanalítica no ambulatório público Ana Cristina Figueiredo Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2 a^ ed., 2000
Numa pequena cidade, um peão campeiro chega a ca- valo no serviço de saúde e diz à psicóloga: “Eu tenho uma coisa que remédio não cura... meu passado está voltando”. Num grupo de recepção e triagem de um ambulatório psi- quiátrico, uma mulher grita, em crescente desespero, ao falar de sua compulsão à limpeza: “eu preciso de alguém que me diga assim: chega, pára”. O profissional responde ao pé da letra: “então pára!”, e esta intervenção abre a chance de um encaminhamento para análise. Em um ambulatório público de saúde mental, uma terapeuta de família é chamada a fazer um atendimento familiar de um paciente psicótico, recém- saído de uma internação. Começa a atender o paciente junto com seu pai, sua mãe e seu irmão. Paranóico, o paciente acreditava que “os homossexuais” iam “tomar o sítio” da fa- mília. Depois de um tempo, o atendimento passa a ser separado: os pais numa sessão e os irmãos em outra. Como efeito do tratamento, o paranóico passa a duvidar da perse- guição e o neurótico diz que está aprendendo com o irmão a pensar na vida. Sem pretensão de “fazer análise”, a terapeu-
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ta fez função de um terceiro que permitiu uma elaboração, fez função de analista. Isto se deixa ver quando o paranóico, não obstante morar com os pais, pede que eles venham a uma sessão para que ele possa saber como eles estão. O irmão neu- rótico corrobora a suposição de saber ao concordar com o pedido. Estes e outros fragmentos foram colhidos por Ana Cristina Figueiredo em sua pesquisa de campo sobre a clínica psicanalítica no ambulatório público, e estão re- latados e discutidos no livro Vastas confusões e atendimentos imperfeitos , agora lançado em segunda edição_._ A primeira edição, de 1997, rapidamente tornou-se re- ferência no campo da assistência em saúde mental no Rio de Janeiro. Ana Cristina trabalha, há muitos anos, como professora e supervisora clínica no Instituto de Psiquiatria da UFRJ , onde é coordenadora do Curso de Especialização em Clínica Psicanalítica em Instituição. Seu livro, mais do que uma pesquisa de doutoramen- to, é tanto resultado quanto continuação desse lugar e desse trabalho: lugar de dedicação à causa psicanalítica, de um evidente compromisso com a coisa pública e de um amor pela universidade declarado já na dedicatória da tese. Este percurso capacita e autoriza Ana Cristina a ter uma relação singular com a ortodoxia psica- nalítica, por um lado, e com a estreita resistência à psicanálise, por outro, produzindo uma obra singular. Provocativo, o título pode dar a entender que a psicanálise praticada nos am- bulatórios públicos é “imperfeita” e “confusa” no sentido de inferior, pior, aquém da “verdadeira psicanálise” que se faz no consultório privado. Nada mais distante da verdade: toda a força do trabalho da autora está na demonstração de que não há duas psicanálises, a “pura” (do consultório) e a “impura” (dos ambulatórios). O que há são condições mínimas para que se possa reconhecer como psicanalítico um certo trabalho clínico, seja no consultório, seja nos ambulatórios. Pela riqueza dos depoimentos colhidos em sua pesquisa e pela mestria com que os articula às proposições de Freud e Lacan, a autora propõe quais são essas “condições míni- mas” e demonstra que elas são possíveis no ambulatório, sendo alcançadas por meio do trabalho efetivo do psicanalista, e não das garantias imaginárias dadas pelo con- sultório ou pela identidade de “psicanalista”. O objetivo da autora é, como ela própria diz, prescritivo. De fato, tendo se lançado à pesquisa com o objetivo de “ampliar o leque de informações sobre as possibilidades e limites do exercício da psicanálise fora dos consultórios privados”, ela acaba por prescrever “um modo de conceber a especificidade da psicanálise e da função do psicanalista” que vale não apenas para o ambulatório, mas para toda e qualquer psicanálise. Afinal, não há duas psicanálises. O livro tem três capítulos. O primeiro – “O que é feito da psicanálise” – parte dos problemas colocados pela difusão da psicanálise e discute a própria definição de psicanálise como problemática, dada a heterogeneidade do campo. Após revisar os três modelos pregnantes do campo psicanalítico (o de Melanie Klein, a psicolo-
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guntar: como é possível que uma intervenção desta natureza, pedagógica, tenha efeito de interpretação no sentido analítico (de um dizer que causa alguma coisa, mais do que revela a suposta causa), qualquer que seja a clientela? No entanto, predomi- nam os relatos de intervenções que, como aquelas citadas acima, fazem valer, em contextos os mais diversos, uma clínica do sujeito. Os casos e fragmentos são tomados como exemplares no duplo sentido de amostra e paradigma. Por meio deles, a autora discute o funcionamento dos serviços e a atuação dos profissionais naquilo que podem facilitar ou dificultar um trabalho psicanalítico: os mecanismos de recepção, triagem e encaminhamento; as diversas modalidades de atendimento no campo da assistência; as vicissitudes do trabalho em equipe multiprofissional; os sintomas, encontros e desencontros de psiquiatras, psicólogos e psicanalistas. A última parte do capítulo trata dos três aspectos que ocupam o centro das obje- ções à prática da psicanálise no ambulatório: dinheiro, divã e tempo. A impossibilidade de cobrar dinheiro no serviço público exige do analista estar atento a que tipo de pagamento é possível aí (ou, como diz a autora noutro trecho, “loca- lizar como o sujeito paga por estar lá”). A ausência do divã como barreira à pregnância do olhar na transferência não impede que outro manejo possa apagar a figura imaginarizada do analista e fazer de sua presença um operador da fala. E se a burocracia ou a peculiaridade da clientela impõem complicações à freqüência das sessões e à duração do tratamento, a autora traz alguns exemplos de manejo clíni- co da função singular do tempo no trabalho analítico. No terceiro capítulo – “Por uma psicanálise possível” –, Ana Cristina recorre à metapsicologia freudiana e à leitura de Lacan para propor “as condições mínimas para que se identifique como psicanálise determinado modo de trabalho clínico”. A primeira condição é a de que a psicanálise é uma clínica da fala , que diz respeito à realidade psíquica , não como realidade menor mas, ao contrário, como a “única realidade que diz respeito e interessa ao sujeito, a partir da qual ele se vê, pensa, fala, sofre, trabalha...”. Muito tempo passará, dizia Freud em 1917, “até que se possa aceitar nossa proposta de igualar fantasia e realidade” (citado pela auto- ra). Segunda condição: trata-se de produzir um modo de fala por meio da transferência. De uma fala que é desabafo, queixa ou pedido de ajuda endereçado a alguém que supostamente sabe sobre o sofrimento e a cura, deve-se levar o su- jeito a ser afetado pelo que diz, formulando uma questão. Esta passagem depende da ação do analista, com o que se chega à terceira condição: a interpretação, en- tendida na perspectiva de uma temporalidade específica, a do Nachträglichkeit , ou só-depois. A interpretação não visa descobrir ou revelar a causa, no sentido do por- quê, mas sim causar um efeito – o que só se sabe depois. Neste sentido, a ação do analista “só tem valor de interpretação, como efeito, num tempo posterior”. A ela- boração como trabalho analítico não é, portanto, nem a revelação de uma influência do passado sobre o presente, nem uma regressão ao passado da infância. A análise
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visa à construção de algo (que chamamos fantasia) que, uma vez construído, será tomado pelo sujeito como aquilo que desde sempre selou seu destino, terá sido o que determinou desde sempre este destino. Simplificando, o trabalho analítico visa possibilitar ao sujeito “mudar sua posição em relação à fantasia que sustenta seu sintoma”, passando de um “destino selado” para um “destino em aberto” – ainda que algo sempre reste, marcando este destino. Há, ainda, uma última e decisiva condição: o analista. O que faz um analista? (isto é, qual é sua ação?). O que faz de alguém um analista? (isto é, como alguém se torna analista?). O que quer um analista? (de seu trabalho, de uma análise, de seu paciente). Como se vê, a última das “condições mínimas” da psicanálise envol- ve tanto um percurso quanto uma posição do analista. “O caminho que o analista deve seguir (...) é um para o qual não existe modelo na vida real”, diz Freud em Observações sobre o amor de transferência (citado pela autora). Com Lacan, Ana Cristina nomeia esta condição em termos do desejo do analista. O desejo do ana- lista, a autora cita Lacan, é “desejo de obter a diferença absoluta”. A contribuição decisiva de Lacan, aqui, está em formalizar que não há dois desejos, ou dois sujei- tos, na análise. O desejo do analista não é desejo de sujeito; o analista como “sujeito suposto saber” é um operador da análise como suposto, e na referência ao saber. A suposição, da parte do analisante, faz operar uma fala endereçada ao analista e esta fala é, de início, o pedido de um saber. Se o amor é a ilusão de que o amado detém o objeto que pode suprir a falta do sujeito, no amor de transferência o que o analista é suposto ter é um saber sobre a cura, ou sobre o inconsciente. A diferen- ça que caracteriza a posição do analista está em, aparecendo para o sujeito como o objeto de seu desejo, não se colar a esta condição em que o analisante o coloca. Ao contrário, trata-se de remeter ao objeto que falta e que causa o desejo. Este é o sentido da proposição lacaniana de que o analista deve fazer semblante do objeto causa de desejo, ou “objeto a”. Diz a autora: “... o analista se subtrai para causar desejo como efeito desta subtração. (...) Só assim o analista pode remeter o sujeito adiante no caminho de sua fala (...) remetendo a novas significações que, por sua vez, se desfazem, afetando o sujeito, provocando viradas, causando desejo”. Para concluir, Ana Cristina indica o caminho para os analistas dispostos a en- frentar com sucesso a aventura de praticar a psicanálise fora do consultório privado. O psicanalista que convém a essa aventura, diz ela, não é o que convence, nem o que vence, nem o convencido, nem o que usa a docilidade para esconder sua arro- gância. O psicanalista que convém é o que convive. O analista deve ter clareza de seus propósitos e de seu ofício, para sustentar uma oferta ou uma possibilidade de análise em meio a circunstâncias que podem ser mais ou menos favoráveis ao tra- balho psicanalítico. Deve ser capaz de, a partir dos diferentes dispositivos de tratamento (como hospitais gerais, hospitais psiquiátricos, hospitais-dia, centros de atenção psicossocial...), e neles mesmos, sustentar uma escuta analítica, cujo efei-
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ambulatório para a psicanálise. Impedida de esconder-se no indevassável do con- sultório, interpelada pelas condições adversas do ambulatório, a psicanálise é forçada a fundamentar com mais rigor sua prática, sua direção. Acrescentemos, nesta perspectiva, dois elementos à discussão: 1) o setting do consultório pode permitir ao analista economizar-se do trabalho de manejar aquilo que as “condições adversas” do ambulatório trazem à cena (por exemplo: o paga- mento burocrático de uma quantia de dinheiro pode economizar o analista do trabalho de localizar como o analisante paga por estar ali; a disponibilidade infinita de uma clientela “aculturada” pode se traduzir na aceitação de uma análise que não termina, não provoca efeitos etc.); 2) o caráter privado do consultório pode eximir os analistas de submeter seu trabalho à apreciação dos colegas (salvo que façam isto em suas instituições psicanalíticas, o que nem sempre acontece). O exercício extramuros da psicanálise convoca o analista a responder clínica e teoricamente àquilo que a privacidade ou a regularidade do consultório permitem elidir. Neste sentido, não estaria o ambulatório mais próximo do espírito do traba- lho analítico tal como preconizado por Freud e Lacan? Não se trata, obviamente, de inverter os termos da equação e afirmar, agora, que só se faz psicanálise no ambulatório. Trata-se, antes, de enfatizar o caráter público de uma psicanálise que se faz em meio à diversidade, aos desafios clínicos de toda ordem e à necessidade de prestar contas (clinicamente) de seu trabalho. Na Ata de Fundação da Escola Freudiana de Paris, Lacan estabelece que o trabalho ali realizado será submetido a um controle “interno e externo”. Anos de- pois, na Abertura da Seção Clínica daquela instituição, Lacan sustenta que ali se visa convidar o analista a que “declare suas razões”. Sem a ingenuidade de afirmar que o ambulatório garante a formação de analistas ou substitui a instituição psica- nalítica, devemos extrair todas as conseqüências da seguinte proposta de Ana Cristina: o ambulatório, diz ela, é o consultório tornado público. Ora, não seria o espaço público o lugar por excelência da psicanálise?