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pois que a ruiva tomou guarda-chuvadas de uma vovó na portaria da revista. ... Um baralho cigano — murmurei e soltei um gemido agastado. Por mais.
Tipologia: Notas de aula
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10ª edição ampliada Rio de Janeiro-RJ / Campinas-SP, 2018
u odeio meu trabalho! Eu odeio meu chefe! Eu odeio minha vida! Ah, eu também odeio segundas-feiras. Existem pessoas que têm sorte e conseguem trabalhar naquilo que gostam. E existem pessoas como eu, que chegaram perto, mas tão perto, que quase toca- ram o sonho, só para vê-lo evaporar feito fumaça. Onde é que eu estava com a cabeça quando pensei que trabalhar na revista Fatos&Furos fosse a melhor coisa do mundo? Tudo bem que eu tinha acabado de sair da faculdade e o grande redator-chefe Dante Montini era um deus entre os estudantes de jornalismo — e isso me incluía —, de modo que trabalhar com ele era uma espécie de sonho coletivo. Se ao menos eles soubessem quem é o verdadeiro Dante... Soltei o ar com força, equilibrando o celular entre o ombro e a orelha en- quanto ligava o computador arcaico sobre a minha mesa, posicionada na entrada da revista, em frente a um painel repleto de capas antigas da Fatos&Furos. As insta- lações ali não eram grandes. A antessala — onde eu fora exilada — contava apenas com uma mesa, uma cadeira rosa e o imenso painel. O coração da revista fun- cionava numa sala espaçosa dominada por diversas mesas. A copa era minúscula e só comportava uma pessoa de cada vez. E havia ainda a sala do Dante, o úni- co que tinha um pouco de privacidade, apesar da janela alta com visão total da redação. Eu sabia que estava de mau humor, mas quem poderia me culpar? Qual é a probabilidade de você encontrar o cara que te traiu durante meses com a vizinha em uma cidade com quase dez milhões de habitantes? Uma em um zilhão? Claro que, com a sorte que eu tinha, eu toparia com ele. E é evidente que o Igor estaria lindo e radiante, os cabelos claros ligeiramente ondulados bem-com-
de se tornar assistente do figurão. Sabrina planejava em breve assumir alguns projetos sozinha. Enquanto isso, eu seguia em meu emprego medíocre. — Escuta só essa — eu continuei, girando de um lado para o outro na ca- deira rosa. — O Igor disse que esses últimos três meses foram horríveis e que sente muito a minha falta. E que ele acha que a gente pode superar isso tudo. — Talvez ele possa mesmo — concordou Sabrina —, mas você não. — Não levo muito jeito pra mulher de malandro. Eu queria tanto bater nele quando ele disse que ainda me amava que a minha mão chegou a coçar. Tá legal, parte de mim — aquela parte idiota e romântica que acredita em finais felizes e que chocolate diet não engorda — quis acreditar nele. A gente foi feliz junto... Isso é, antes de ele começar a me trair com a vizinha e tal... Além do mais, dois anos de relacionamento tinham que ter significado alguma coisa. Antes de eu flagrá-lo se enroscando com a Samara, a vizinha balzaquiana de per- nas longas e peitos gigantescos (e olha que não é despeito não, eu uso sutiã ta- manho 44, então dá para ter uma ideia da enormidade da comissão de frente da Samara), eu chegava a me perguntar se daríamos o próximo passo em breve, tal- vez morar juntos por um tempo. Mas eu não conhecia o verdadeiro Igor. O fato de ele ter tido uma amante por mais de seis meses e eu nunca ter desconfiado de nada era prova disso. — Ele é um grande idiota, simples assim — Sabrina resmungou ao telefone. — É, é sim, e eu... — A porta dupla de vidro se abriu e bateu com uma pan- cada surda. — Ai, droga, o demônio nerd chegou. Preciso desligar! Tchau, Sá! Meu chefe, também conhecido como demônio nerd, cão chupando manga e babaca sem noção — e isso tudo nos dias bons —, entrou na redação e lançou seu tradicional: — Bom dia, Clara. Eu cheguei a pensar que fosse explodir como uma lata de refrigerante quente sacudida ao vê-lo passar em frente à minha mesa. Na recepção. Eu era a porcaria da secretária da redação. Condenada a anotar recados ha- via cinco meses. Eu, jornalista por formação, era uma reles menina de recados. Eu odiava a minha vida. Odiava ainda mais meu chefe idiota que nem sabia meu nome. Dante Eu-Sou-Foda Montini, um homem totalmente desprovido de simpa- tia e de senso de moda, achava que o mundo devia obedecê-lo sem questionar. Ninguém jamais ousava contrariar uma de suas decisões — às vezes o Murilo contestava, mas enfim... —, nem quando ele estava errado. E, bem, o grande
Dante Montini nem sempre estava certo, como ficou evidente na última edição da Fatos&Furos , quando na reunião de pauta ele sugeriu, na tentativa — segun- do ele — de tornar a revista mais ousada , que a Michele, a repórter responsável pela coluna de comportamento sexual, escrevesse um artigo sobre sexo sado na terceira idade. Ele só se deu conta de que a matéria não seria bem recebida de- pois que a ruiva tomou guarda-chuvadas de uma vovó na portaria da revista. Eu teria dito a ele que a ideia era ruim se tivesse tido a chance, mas, depois da embaraçosa entrevista de emprego, eu nunca mais lhe disse nada além de “bom dia, Dante”, ao que ele respondia “bom dia, Clara”. O que era totalmente compreensível. Eu era apenas a garota da recepção, afinal, e ele, o redator-chefe. Quem se importaria com o nome da telefonista? O fato de eu odiá-lo com to- das as minhas células não poderia mudar, ainda que ele acertasse meu nome. Dante era alto, ombros do tamanho certo, apesar de parecer um pouco ma- gro demais sob as camisetas estranhas, e tinha um rosto forte e marcante. Se ele não fosse quem era — o chefe idiota que nunca acertava meu nome —, eu até o acharia bonito. Mas tinha os óculos. Eu odiava aqueles óculos! Eram grandes, pretos e fora de moda havia pelo menos uns dez anos. Isso sem mencionar que, para um redator-chefe renomado, ele parecia um indigente. Quando não estava vestindo uma camiseta com estampas esdrúxulas, esculhambava nas gravatas ri- dículas — a que tinha um teclado de computador estampado era a melhorzinha. O que nunca variava eram os jeans. Todos iguais, cortes tradicionais combina- dos com tênis de lona preto. Eu nunca tinha visto seus cabelos penteados des- de que começara a trabalhar ali. Eles apontavam para todas as direções de um jeito estranho, como se ele acordasse e simplesmente os deixasse daquele jeito. — Bom dia, Dante — respondi, para não quebrar o roteiro. — Quero todo mundo na sala de reuniões em vinte minutos — anunciou ele, com o tom grave e autoritário de sempre. — Certo, mas nem todo mundo chegou ain... — Eu disse vinte minutos. Se um meteoro atingisse a Terra , me peguei pensando, será que haveria alguma possibilidade de cair, digamos, bem na cabeça do meu chefe? Vinte e cinco minutos e sete telefonemas histéricos depois, consegui acomo- dar toda a equipe da Fatos&Furos na sala de reuniões fria e impessoal, porém bem iluminada graças à imensa vidraça que ia de uma parede a outra. As paredes nuas e brancas contrastavam com as cadeiras negras, a longa mesa de madeira cor de mel dominava todo o espaço, e, no canto, um quadro branco se equilibrava so- bre um tripé metálico, no qual se lia, em tinta azul, a pauta da semana.
rar a Fatos&Furos do buraco. Só que ainda não chegamos lá! Alguns anunciantes estão passando por dificuldades e não renovaram os contratos. Vamos ter que batalhar por novos patrocinadores. As próximas edições serão cruciais para nós. Não haverá novas contratações. — Como assim? — Adriele perguntou, retorcendo com o indicador uma me- cha do cabelo liso e castanho. Os lábios de Dante se transformaram numa linha pálida. — Pensei que tivesse sido claro, Adriele. A equipe se resume aos que estão nesta sala. Por um momento, cheguei a pensar que ele estava me incluindo. Mas não. Ele nem sequer notava minha presença ali no fundo, de pé. — De agora em diante — ele prosseguiu —, cada um de nós desempenhará mais que a própria função. Vamos nos adaptar e tentar sobreviver até que os in- vestidores renovem os contratos e as vendas melhorem. Não vou mentir. Nosso rabo está na reta. Murilo, o cara mais fera no que se relaciona a cenário político, resmungou: — É só uma crise, vai passar. — Sim, é o que todo mundo diz. A população está cortando gastos supér- fluos, e isso inclui assinaturas de revistas. Com a internet trazendo notícias em tempo real, eu duvido que ainda tenhamos meios de comunicação impressos em trinta ou quarenta anos. — Seus olhos focavam cada rosto naquela sala enquan- to ele falava. Menos o meu, claro. Não sei nem por que eu ainda me dava o tra- balho de notar essas coisas. — Estou trabalhando para modernizar a Fatos&Furos , e em breve lançaremos a revista digital, mas, até que isso aconteça, temos um problema mais imediato a sanar do que a extinção de revistas e jornais. A extinção do nosso emprego. Engraçado como ele sempre incluía a equipe toda nos problemas. Era sem- pre “nós” isso, “nós” aquilo, nunca “eu”. Uma bagunça generalizada se instalou. Todos falavam juntos. — Não posso fazer as entrevistas e as fotos ao mesmo tempo. — Murilo co- çou a cabeleira loira. — Já contratei um freelance, Murilo — explicou Dante. — É tudo o que po- demos pagar no momento. Ele deve aparecer por aqui amanhã e vocês se acer- tam. Júlia, sua coluna tem recebido boas críticas. Tenho certeza que você pode melhorar ainda mais. — Parece que o meu melhor nunca é o bastante — ela resmungou e soltou um suspiro.
— Exato! — confirmou Dante. — Agora um de vocês terá que assumir o ho- róscopo. — Ah, cara, tô fora — Murilo avisou. — Não vou escrever aquela merda. — Nem eu. De jeito nenhum. — Adriele cruzou os braços. Todos os repórteres começaram a se esquivar, alegando compromissos, fal- ta de tempo, de conhecimento e blá-blá-blá, até que o Dante perdeu a calma. — Fiquem quietos! Um de vocês vai assumir a porra do horóscopo! — Por que você mesmo não faz isso? — Murilo sugeriu, com um sorriso sá- dico. Ele era o único que se atrevia a enfrentar o Dante, pois era o bem mais pre- cioso da revista e sabia disso. Murilo fazia o tipo quarentão bonito e paquera- dor e era o dono da banca de apostas da redação. Não que o Dante soubesse qualquer coisa a respeito das apostas. Murilo fora o grande trunfo contra a fa- lência da revista. Dante insistira que precisávamos de uma coluna sobre política, que mulheres inteligentes acompanhavam os acontecimentos importantes do cenário político, e não apenas as novas tendências de moda da estação. Era esse o nosso diferencial em relação a outras revistas femininas. De fato, as vendas co- meçaram a subir. — Você também é jornalista, Dante. E dos bons! — Murilo acrescentou. O olhar que Dante lhe lançou me fez encolher os ombros, mas Murilo per- maneceu impassível. — Alguém tem que acalmar os anunciantes que ainda temos, fazer com que não caiam fora, arranjar novos investidores. E isso me toma muito tempo, Murilo. — A Luna é jornalista — falou Júlia, me fazendo ficar em posição de alerta no mesmo instante. — Recém-formada, mas é. Por que você não dá uma chance para a menina? Ela é esperta. — E a garota minúscula de cabelos ao estilo joão- zinho e rosto de fada me lançou um sorriso meio torto. Eu adorava a Júlia. — Ela pode se sair bem. — De quem você tá falando? Quem é Luna? — perguntou Dante, fitando-a como se ela tivesse falado japonês. Tá legal, Deus, se você fizer com que aquele meteoro caia na cabeça do Dante neste minuto, eu prometo não comer chocolate durante... um mês. Inteirinho! Eu esperei e, como Deus não fez a parte dele, usei a imaginação para atingir a cabeça despenteada do meu chefe com pedras de tamanhos variados. — Cara, é a garota ali na parede te olhando com cara de assassina — Murilo sussurrou e riu ao mesmo tempo, apontando para mim com o indicador. Dante se virou e me avaliou da cabeça aos pés, como se só então percebesse a minha existência.
reunião terminou sem que eu me desse conta. Só percebi que tinha acabado quando todos se levantaram, exceto Dante, que voltou a atenção para a pa- pelada diante de si. Eu aproveitei para sair rapidinho dali, com medo de que ele mudasse de ideia a respeito da minha nova coluna e me aprisionasse ao telefo- ne outra vez. Feliz da vida com a minha promoção, esvaziei a mesa na entrada do oitavo andar e me dirigi para a antiga mesa da Soraia, no coração da revista. Por ali, en- contrei uma infinidade de artigos místicos em uma das gavetas e dei uma espia- da neles, tentando aprender e entender alguma coisa, mas isso só serviu para me desanimar. Aquilo parecia complicado demais. Eu teria que pedir a ajuda de al- guém. Minha avó entendia dessas coisas, até tentou me ensinar vez ou outra, mas naquela época eu estava ocupada demais resolvendo palavras cruzadas. Acabei me distraindo desse pormenor no meio da tarde, quando Alexia Arem- berg adentrou a redação. Os óculos escuros estavam no topo da cabeça, o rosto sério e compenetrado. Era como se ela ainda estivesse na passarela. Alexia era modelo, linda, riquíssima, e eu queria ser ela. Ah, ela também era a mulher do Dante. A razão de um cara como ele con- seguir uma top internacional me escapava. Como de costume, Alexia não se importou em falar com ninguém, nem es- perou ser anunciada para entrar no escritório do Dante. Estava acostumada a tra- tamento viP, não seria diferente ali. Pouco antes do fim do expediente — porque notícias não dão aviso-prévio —, a redação virou um pandemônio. Os telefones não paravam de tocar. Um ro- queiro havia entrado em coma devido a uma diabete nunca antes divulgada, e a Adriele quase teve um orgasmo de alegria. Murilo recebeu um telefonema an- tes de sair desarvorado porta afora, pois, segundo uma de suas fontes, o prefeito fora visto com a amante entrando em um hotel.
Soltei um suspiro observando-os tomarem seus rumos até as histórias fantás- ticas que ficariam na boca do povo por dias, enquanto eu permanecia ali, olhando para uma pilha cheia de números, rabiscos e desenhos de planetas. Definitivamente eu odeio a minha vida. Alexia por fim saiu do escritório do chefe. Dante a acompanhou até o eleva- dor, e eu tentei não olhar quando os dois trocaram um beijo rápido. Não que qualquer tipo de contato físico mais íntimo fosse permitido na Fatos&Furos. Mas, ei, o cara era o chefe! Ele podia fazer o que bem entendesse. — Algum problema, Luna? — ele perguntou depois que a mulher foi embo- ra, enfatizando meu nome, se plantando em frente à minha mesa e observando a pilha de mapas astrológicos. — Ah, não. Tudo bem, tudo... ótimo! Só estou me familiarizando com o material. Ele assentiu, olhou discretamente para os lados e voltou a me encarar. — Escuta... sobre o seu nome... — Ele colocou as mãos nos bolsos do jeans. — Eu... tinha certeza que seu nome era Clara. — Não é — falei, encarando o Homer Simpson que corria atrás de uma ros- quinha na sua gravata. Ele inclinou a cabeça para o lado, os olhos atrás dos óculos horrorosos me fitavam com seriedade. — Agora eu sei disso. Aquilo era um pedido de desculpas? Não, claro que não. O Dante não se da- ria esse trabalho a menos que estivesse chapado de vodca ou de algum medica- mento que mexesse com a sua sanidade. E eu tinha quase certeza de que ele não tinha feito uso de nenhuma das duas coisas. — Está tendo dificuldades? — E apontou para o mapa astrológico. Sim! — Não! Esse material é... muito bom. Excelente mesmo! — Que bom, porque preciso que você me entregue o horóscopo até quinta. — Mas isso é amanhã! — Bem-vinda à Fatos&Furos — e me deu uma piscadela, sorrindo meio torto. O que me pegou completamente de surpresa, pois eu não sabia que o Dante era capaz de sorrir, ainda que fosse apenas uma insinuação de sorriso. Se bem que, pensando melhor, ele havia sorrido uma ou duas vezes quando me entrevistou para a vaga de secretária. Em seguida, ele se trancou em sua sala e eu gemi, apoiando os cotovelos na mesa e afundando a cabeça nas mãos. Eu tinha um prazo a cumprir e nenhuma ideia de como executar a tarefa. Em outras palavras: eu estava totalmente ferrada.
Ele apenas deu de ombros. — Você chegou ao topo, Dante — prossegui. — Muita gente ainda luta para escalar o primeiro degrau. Você não devia ficar se lamentando, por mais difícil que o dia tenha sido. Ele me encarou com algo diferente nos olhos. Parecia diversão. Ou podia ser constipação intestinal, era difícil interpretar o meu chefe. Então ele desviou o olhar para as portas que se abriam. Caminhamos pelo saguão revestido de mármore escuro, e eu já ia seguindo meu caminho para o estacionamento quando ele me deteve, dizendo: — Eu gostei do seu entusiasmo. — E sorriu. Sorriu mesmo, para valer dessa vez. Um sorriso preguiçoso, cheio de dentes, que atingiu seus olhos e fez seus traços graves se suavizarem, deixando-o muito mais jovem. Não que ele fosse velho. Devia ter trinta e poucos ou algo assim. — Bom... até amanhã, Luna. — Ele passou a alça da mochila pelo ombro. — Tchau, Dante. Entrei no carro parado no estacionamento e dei uma olhada no espelho re- trovisor. Meus cabelos ameaçavam fugir do controle e o volume fazia meus olhos verdes parecerem maiores. Meu rosto estava corado, então retoquei o batom para diminuir o contraste. Segui direto para a loja esotérica e, apesar de não ser longe, demorei mais de uma hora por culpa do engarrafamento do fim de tarde. Uma enorme lua brilhante chamava atenção no letreiro da loja, e a fachada tinha tantas cores que era difícil entender os muitos símbolos desenhados ali. Assim que empurrei a porta para entrar, sinos de vento anunciaram minha pre- sença, e o aroma agudo de incenso acabou me deixando meio zonza. Entre as prateleiras abarrotadas de coisas coloridas e perfumadas, havia uma mulher baixinha, com pouco mais de um metro e meio, os cabelos longos mes- clados de branco e preto e muitas pulseiras nos pulsos finos. E era meio vesga. — Olá, raio de sol! — ela sorriu. — Oi. Eu preciso de alguma coisa pra criar horóscopo. Se tiver algum pro- grama de computador que faça isso, melhor. Ela meneou a cabeça. — Meu bem, a magia é algo precioso, e apenas as mãos e o coração podem manejá-la. — Tá legal... — falei devagar. — Você tem o quê, então? — Deixe-me ver... — Ela puxou duas caixas de uma prateleira e começou a revirá-las. — Não. Não. Esse também não. Ah! O que acha disso aqui?
Dei uma olhada no mapa astrológico e sacudi a cabeça. — Tem cinco iguais a esse na minha mesa. Preciso de alguma coisa mais... autossuficiente. — A mulher arqueou a sobrancelha, então tive que explicar. — Olha só, minha vida toda tá errada. Meu namorado me traiu, meu emprego é uma droga e meu carro vive me deixando na mão. E agora tenho a chance de fazer algo que eu gosto... bom, não exatamente, mas a ideia é que seja temporá- rio. Preciso fazer essa coisa de horóscopo bem feita, se quiser me destacar, en- tendeu? Preciso que pelo menos isso dê certo! Eu me interrompi para tomar fôlego. Por que raios eu estava despejando toda a minha vida sobre aquela mulher? Só podia ser por causa da pressão de um prazo apertado a cumprir. — Pelo que eu entendi — ela ficou séria —, você acha que é capaz de lidar com a magia. — Ela fez um gesto amplo, como se dançasse balé. Achei que seria mais fácil e muito mais rápido se eu entrasse na dela. Não a contrariei. — Não foi por acaso que essa coluna caiu no meu colo — sussurrei. — Ah, sim! Nada é por acaso — ela sorriu, radiante. — Os astros nos guiam sempre. Basta saber interpretá-los. — É justamente disso que eu preciso! Algo que interprete os astros. Você tem? — O que você precisa está ali nos fundos. Volto já. Comecei a perambular ansiosa pela pequena loja entulhada de cacarecos. Budas, elefantes, gnomos e imagens de santos se misturavam de forma caótica nas prateleiras. Alguns minutos depois, a mulher estava de volta com uma pe- quena caixa, pouco maior que um celular. — Isso deve ajudar. — Ela abriu lentamente a tampa. — Um baralho cigano — murmurei e soltei um gemido agastado. Por mais que eu tentasse ignorar, algo cigano sempre se colocava no meu caminho. De- via ser alguma mandinga da vovó para me fazer “ver a luz”. — O baralho cigano — frisou a mulher vesga. — Reza a lenda que foi da ci- gana Madalena, duzentos anos atrás. Ao ver o estado das cartas, acreditei que fosse bem possível mesmo. — A cigana Madalena — prosseguiu ela —, e não confunda com Sandra Rosa Madalena, foi uma das mais importantes de seu clã. Dizem que quem se consul- tava com ela resolvia imediatamente todos os problemas. Ela era a guia de sua caravana e jamais errou uma única leitura em toda a vida. Graças a seu baralho poderoso. — E ergueu a caixinha. — Legal! Mas eu não vou ler a sorte — expliquei pacientemente. — Só quero algo que me ajude a fazer um horóscopo.
— Claro, claro. Vou tomar cuidado. — Que assim seja — ela assentiu e, num piscar de olhos, voltou a seu esta- do esfuziante, de modo que, depois de ela me entregar o baralho, me mandei dali rapidinho. Quando alcancei a calçada, enchi os pulmões, sentindo certo alí- vio por me afastar do cheiro adocicado e enjoativo dos incensos. Peguei o carro e dirigi para a periferia da cidade, seguindo em frente até che- gar à zona rural, para tomar uma pequena estrada de terra batida e pular feito pipoca no interior do meu Twingo. Parei a poucos metros da casa amarela. A tenda de tecidos ali perto contrastava com a habitação grande e moderna de dois andares, mas eu já tinha me acostumado. Fora ali que meu irmão e eu vivemos por quase cinco anos. A figura esguia e colorida surgiu no horizonte. A longa saia laranja dançava com a brisa, os cabelos negros e compridos escondidos sob o lenço roxo. Suas pulseiras douradas capturavam e refletiam os últimos raios de sol. A cesta de pa- lha que trazia numa das mãos estava cheia de ervas. A velha cigana olhou para mim, e seus olhos cansados e cheios de rugas sor- riram. Sorri de volta, acenando. — Oi, vó.
egui vó Cecília para dentro do sobrado amarelo, depois de beijar sua mão e pedir sua bênção. Minha mamí adorava cores vibrantes. E flores. E espelhos. Na verdade, ela adorava tudo que brilhava. Por isso a casa toda parecia feita de purpurina, e era quase impossível encontrar um espaço onde não houvesse um enfeite. — Como está seu pai? — ela me perguntou indo para a cozinha. Eu quase ri. A vovó gostava tanto do meu pai quanto eu do Dante. A ques- tão era que a minha mãe não deveria ter se apaixonado pelo meu pai. Para vovó, a mamãe deveria ter se casado com alguém do clã ao qual pertencia, não com um gadje , um não cigano. O fato de a minha mãe ter morrido durante o meu parto não contribuiu muito para a vovó e o papai se entenderem. E meu irmão e eu termos crescido fora da cultura cigana também não ajudou em nada. Raul era meu irmão mais velho — ao menos cronologicamente, porque men- talmente eu ainda tinha minhas dúvidas. Ele e eu vivemos com o nosso pai até os meus quinze anos. Então papai decidiu retomar sua pesquisa sobre pombos na Patagônia, e nós ficamos com a vovó. Raul e eu sempre tivemos nossas diferenças. Meu irmão ainda me tratava como a irmãzinha caçula nos momentos mais impróprios. Seu esporte preferi- do era me causar problemas, como quando soube que o Igor me traíra com a Samara. Ele ficara furioso e tive que implorar que não batesse no Igor. Meu ir- mão acabou cedendo. Mas ele não mencionara nada sobre não detonar o carro do meu ex. Depois disso, comecei a prestar mais atenção no que o Raul me pro- metia. — Papai estava bem da última vez que me ligou. Ele gostou do presente que a senhora mandou no Natal — menti. Papai, que vivia na Argentina havia quase dez anos, ficou chocado ao abrir a caixa de presente e encontrar uma das poções da cigana Safira — era esse um
— Ah, não, vó. De novo, não. — Eu sabia que aquele homem ia destruir a vida da sua mãe. Eu vi nas cartas. — Meu pai não destruiu nada — objetei. — Ele amou a mamãe. Depois que ela morreu, ele ficou sozinho por muitos anos, e a senhora sabe disso. Mas, já que mencionou as cartas, eu queria sua ajuda para aprender a ler a sorte. Ela girou sobre os calcanhares e congelou, as pálpebras piscando eram a úni- ca coisa em movimento. A chaleira apitou. — Finalmente, filha! Cheguei a pensar que a sabedoria se perderia! — E veio ao meu encontro, me abraçando com força. Eu adorava o cheiro da minha avó. Uma mistura de jasmim, lavanda e sal. — Então podemos começar? — eu quis logo saber. — Preciso aprender tudo até... amanhã. Um silêncio pesado se instaurou. Vovó me soltou, recuando. A longa saia rodada chiou no assoalho. — Amanhã — repetiu ela, austera. Fiz uma careta. — É, mas eu explico. Eu consegui uma coluna no trabalho, só que é a do horóscopo. Eu não quis perder a chance, vó. A senhora sabe que eu sonho em escrever um artigo há tempos. Esse é meu primeiro passo nessa direção. Não pre- cisa me ensinar tudo até amanhã. Só o basiquinho serve. Por favor, vó, me ajuda. Ela ficou apenas me observando, como se eu fosse um inseto que acabara de pousar em seu pão fresco. — Sinto muito, Luna, mas eu não posso ajudá-la. — Sua voz soou tão fria quanto sua expressão. — Por que não? A senhora estava disposta a me ajudar até trinta segundos atrás. — Trinta segundos antes, eu estava achando que você tinha a intenção de le- var a vida cigana a sério. A magia não pode ser ensinada dessa forma. Os costu- mes e as crenças são sagrados, não os trate com leviandade. — Mas eu preciso criar o horóscopo até amanhã! E não entendo porcaria nenhuma de astrologia, a senhora sabe disso. Eu fui a uma loja esotérica e com- prei um baralho bem velho. Então pensei que a senhora poderia me ensinar a usá-lo. Já te vi fazendo isso e... bom, como a senhora sempre quis me ensinar as coisas ciganas, achei que gostaria de me ajudar. A gente se divertiu tanto quan- do me ensinou a dançar... Ela sacudiu a cabeça, e as correntes presas aos cabelos tilintaram. — Ler cartas não é como dançar. E coisas ciganas, Luna? Coisas? — ela per- guntou, ofendida.
— Ai, vó, é só jeito de falar! — eu resmunguei, batendo o pé. — A senhora sabe o que eu quis dizer. — Sinto muito. Muito mais do que você pode imaginar. — E, pelo tom de sua voz, eu soube que ela estava colocando um ponto-final no assunto. — Eu também — me levantei, pendurando a bolsa no ombro. — Porque, se a senhora não me ajudar, tudo o que vai me restar é o Google, e ele não sabe tanto assim. — Quem? — Mamí , a senhora por acaso não tem um pouco de... Ei, Luna! — Oi, tio Vlad. — O homem alto e magricela, de cabelos pretos presos em um rabo de cavalo, não era meu tio de verdade. Os ciganos se tratam como uma grande família, ainda que não tenham o mesmo sangue. E eu gostava do tio Vlad. Exceto quando ele cismava de querer me arranjar um noivo. O que ocorria mais ou menos a cada duas semanas. — Meu Deus, como você está bonita! — Ele me apertou contra o peito os- sudo. — E como está parecida com a sua mãe! — Sim, em muitos aspectos — acrescentou a vovó, com desgosto. — Você vai ficar aqui esta noite? — tio Vlad perguntou. — Pode nos ajudar com os preparativos do casamento de sua prima Sara. — Ah, eu adoraria, tio, mas não posso. Ainda tenho que trabalhar. — Eu me afastei dele e dei uma espiada na minha avó. — Bom... vou indo então. Beijei a bochecha do tio Vlad e em seguida as mãos da minha avó. — Sua bênção, vovó. — Que Deus a abençoe — ela fez uma cruz com o polegar na minha testa. Saí da cozinha às pressas, mas ainda pude ouvi-la perguntar: — Vladmir, você sabe quem é esse tal cigano Google?
Ao chegar em casa, subi correndo as escadas até o último andar. Meu prédio era antigo, apenas três andares, sem elevador e com largas escadarias. Sabrina achava o lugar charmoso, exceto quando voltávamos do mercado com os braços reple- tos de sacolas pesadas. Minha amiga estava me esperando com um imenso pote de sorvete de cho- colate e o dvd de Kill Bill sobre a mesa da sala, pronta para me animar no que fosse preciso. Mas ela percebeu que o caso não era tão grave assim quando viu meu rosto tenso, porém extasiado. — Consegui uma coluna! — gritei, jogando a bolsa no nosso sofá de segun- da mão. A maioria dos nossos móveis tinha sido comprada em lojas de usados.