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Sublime na Poesia de Fagundes Varela: Análise de 'Cântico do Calvário' e 'A Sede', Notas de aula de Poesia

Este artigo explora a manifestação do sublime na poesia de fagundes varela, analisando especificamente os poemas 'cântico do calvário' e 'a sede'. O autor compara duas teorias do sublime: a versão romântica de wordsworth e a versão terrível de burke. O objetivo é demonstrar que o poeta fluminense incorporou elementos de ambas as versões do sublime em sua produção.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Raimundo
Raimundo 🇧🇷

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TERROR E MELANCOLIA: O SUBLIME NA POESIA DE FAGUNDES
VARELA João Pedro Bellas
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(UFF/CAPES)
Resumo: Este artigo analisa a manifestação do sublime na poesia de Fagundes Varela, tendo
como objetos de investigação os poemas “Cântico do calvário” (1865) e “A sede” (1869). Neste
ensaio, trabalhamos, especificamente, com duas dessas formulações, a saber, o sublime
romântico wordsworthiano, que podemos reconstruir a partir das considerações de Wordsworth
acerca da poesia, e o conceito definido por Edmund Burke em sua Investigação filosófica sobre
a origem de nossas ideias do sublime e do belo (1757). Para contrastar ambas as teorias da
sublimidade, partimos da divisão proposta por Thomas Weiskel (1994) entre um sublime
negativo e outro positivo, o primeiro derivado da ideia de que a alma humana é finita e limitada
e o segundo relacionado à noção de que ela é infinita. A partir dessa distinção, podemos afirmar
que o sublime burkeano, pautado no instinto de autopreservação e nas ideias de dor e perigo,
seria de natureza negativa, enquanto o sublime wordsworthiano, que visa a afirmar as
capacidades quase divinas da alma, seria de natureza positiva. Nosso objetivo é demonstrar que
o poeta fluminense, em sua produção, adotou elementos comuns a ambas as versões do sublime.
Palavras-chave: Sublime. Romantismo. Fagundes Varela. Poesia.
Duas versões do sublime
Desde que o sublime se consolidou, no século XVIII, como uma categoria
estética autônoma no campo da filosofia da arte, várias foram as formulações
apresentadas por pensadores para dar conta de suas características principais. “A
alegação essencial do sublime”, afirma Thomas Weiskel, “é a de que o homem pode, no
sentimento e no discurso, transcender o humano” (WEISKEL, 1994, p. 17). De fato, as
diferentes versões do conceito parecem concordar que ele lida com aspectos que estão
para além do âmbito humano. No entanto, quando nos debruçamos sobre que tipo de
efeito acompanha o momento sublime, encontramos respostas bastante divergentes. A
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Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense
sob orientação de Fernando Muniz (UFF) e Júlio França (UERJ), e bolsista da CAPES. E-mail:
joaolbellas@gmail.com.
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TERROR E MELANCOLIA: O SUBLIME NA POESIA DE FAGUNDES

VARELA

João Pedro Bellas^1 (UFF/CAPES)

Resumo : Este artigo analisa a manifestação do sublime na poesia de Fagundes Varela, tendo como objetos de investigação os poemas “Cântico do calvário” (1865) e “A sede” (1869). Neste ensaio, trabalhamos, especificamente, com duas dessas formulações, a saber, o sublime romântico wordsworthiano, que podemos reconstruir a partir das considerações de Wordsworth acerca da poesia, e o conceito definido por Edmund Burke em sua Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo (1757). Para contrastar ambas as teorias da sublimidade, partimos da divisão proposta por Thomas Weiskel (1994) entre um sublime negativo e outro positivo, o primeiro derivado da ideia de que a alma humana é finita e limitada e o segundo relacionado à noção de que ela é infinita. A partir dessa distinção, podemos afirmar que o sublime burkeano, pautado no instinto de autopreservação e nas ideias de dor e perigo, seria de natureza negativa, enquanto o sublime wordsworthiano, que visa a afirmar as capacidades quase divinas da alma, seria de natureza positiva. Nosso objetivo é demonstrar que o poeta fluminense, em sua produção, adotou elementos comuns a ambas as versões do sublime.

Palavras-chave : Sublime. Romantismo. Fagundes Varela. Poesia.

Duas versões do sublime

Desde que o sublime se consolidou, no século XVIII, como uma categoria estética autônoma no campo da filosofia da arte, várias foram as formulações apresentadas por pensadores para dar conta de suas características principais. “A alegação essencial do sublime”, afirma Thomas Weiskel, “é a de que o homem pode, no sentimento e no discurso, transcender o humano” (WEISKEL, 1994, p. 17). De fato, as diferentes versões do conceito parecem concordar que ele lida com aspectos que estão para além do âmbito humano. No entanto, quando nos debruçamos sobre que tipo de efeito acompanha o momento sublime, encontramos respostas bastante divergentes. A

(^1) Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense sob orientação de Fernando Muniz (UFF) e Júlio França (UERJ), e bolsista da CAPES. E-mail: joaolbellas@gmail.com.

esse respeito, Weiskel distingue dois tipos de sublimidade: um positivo e outro negativo. O primeiro deles tem como pressuposto a noção de que a alma^2 humana é infinita e capaz de reconhecer seu caráter quase divino, mediante o contato com um objeto grandioso. Já o segundo sugere que o espírito seria finito, e que a experiência do sublime o faria reconhecer os seus próprios limites. As duas versões da sublimidade com a qual lidaremos neste artigo – o sublime romântico, ou egotista, wordsworthiano e o sublime terrível burkeano – enquadram-se na distinção feita por Weiskel. A primeira, bastante tributária das ideias de Longino, configura-se como uma visão de cunho positivo, que visa a demonstrar e afirmar as capacidades do espírito humano. A segunda, por sua vez, apresenta-se como uma versão negativa, pois Burke associa o sublime ao instinto humano de autopreservação. Enquanto a visão do poeta britânico se tornou bastante influente no século XIX, o modelo burkeano, exposto na obra Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo (1757), sobretudo por estar pautado na ideia de terror, é tradicionalmente tomado como a fundamentação filosófica avant la lettre do Gótico literário. Ao analisarmos dois poemas de Fagundes Varela – especificamente, “Cântico do calvário” (1865) e “A sede” (1869) – sob o viés do sublime, levamos em consideração a divisão apresentada acima. Partindo da proposta de Weiskel, defendemos que, enquanto em “Cântico do calvário” é possível observar uma manifestação do sublime egotista, no poema “A sede” há uma filiação à noção de Edmund Burke, o que nos permitiria afirmar que se trataria de uma obra de influxos góticos. A partir da análise de ambos os poemas, nosso objetivo é demonstrar que Varela não apenas foi influenciado por mais de uma visão sobre o sublime, mas que, sua produção tardia evidencia uma filiação à poética burkeana do sublime e, consequentemente, à vertente literária do Gótico.

O sublime egotista: “Cântico do calvário”

Considerado a obra-prima de Fagundes Varela, “Cântico do calvário”, originalmente publicado em Cantos e fantasias (1865), foi escrito em homenagem a seu filho Emiliano, morto em dezembro de 1863. Antonio Candido (2000, p. 237) observa

(^2) Ao longo da história do sublime, diferentes autores utilizaram, de modo geral, os termos “alma”, “espírito” e “mente” em uma relação quase de sinonímia. Apesar das questões conceituais que envolvem esses termos, neste artigo, faremos uso dos vocábulos “alma” e “espírito” como sinônimos.

Classificamos, com base na divisão de Weiskel, o sublime egotista como um sentimento de natureza positiva, que tem como pressuposto a infinitude do espírito humano. Em “Cântico do calvário”, o elemento religioso é a pedra de toque para confirmar esse caráter, infinito, grandioso e quase divino da alma. Da mesma forma que ocorre à abertura do poema – “Eras na vida a pomba predileta” (VARELA, 2003, p. 41) –, também seu desfecho é permeado pela “tonalidade bíblica” (CANDIDO, 2000, p. 236):

[…] Vejo esparsas Saudades e perpétuas – sinto o aroma Do incenso das igrejas – ouço os cantos Dos ministros de Deus que me repetem Que não és mais da terra!… E choro embalde!.. Mas não! Tu dormes no infinito seio Do Criador dos seres! Tu me falas Na voz dos ventos, no chorar das aves Talvez das ondas no respiro flébil! Tu me contemplas lá do céu, quem sabe, No vulto solitário de uma estrela. E são teus raios que meu estro aquecem! Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho! Brilha e fulgura no azulado manto, Mas não te arrojes, lágrima da noite Nas ondas nebulosas do ocidente! Brilha e fulgura! Quando a morte fria Sobre mim sacudir o pó das asas, Escada de Jacó serão teus raios Por onde asinha subirá minh’alma. (VARELA, 2003, p. 46-47) Os versos derradeiros vislumbram a possível eternidade da alma humana. É nesse sentido, que nos é apresentada a imagem do filho que contempla o pai do alto de uma estrela e continua a lhe inspirar. Além disso, mais do que sua inspiração poética, o eu lírico relaciona o filho à escada de Jacó – que na Bíblia representa o caminho utilizado pelos anjos para transitarem por entre o céu e a terra – , por onde subirá ao paraíso sua própria alma.

O sublime terrível: “A sede”

Em oposição ao lirismo de “Cântico do calvário”, “A sede”, publicado em Cantos do ermo e da cidade (1869), é um poema narrativo ambientado no deserto de Monclova durante a guerra de independência do México. Conforme apontamos acima,

essa obra, filiada à poética do sublime de Burke, apresenta explicitamente uma série de influências oriundas do Gótico literário. O sublime burkeano, diferentemente da formulação egotista de William Wordsworth, é fundamentado nas ideias de dor e terror, e está relacionado ao instinto humano de autopreservação:

Tudo que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atua de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime, isto é, produz a mais forte emoção de que o espírito é capaz (BURKE, 1993, p. 48). Essa clara associação com as ideias de dor, terror e perigo nos permite classificar a formulação de Burke como uma espécie de sublime terrível, e é precisamente por causa dessa relação que o modelo do filósofo irlandês pode ser considerado a fundamentação filosófica da literatura gótica^3. Além de ter por fundamento a ideia de terror, o modelo burkeano difere ainda da versão egotista sobretudo pelo efeito que acompanha o momento sublime. Em vez de afirmar um caráter infinito da alma, sua premissa é o oposto, pois a sublimidade, relacionada a objetos que poderiam ameaçar a preservação do indivíduo, sinalizaria justamente os limites do espírito humano. Isso fica claro nas considerações do filósofo acerca do efeito suscitado pela grandiosidade no indivíduo. Nesse estado, denominado “assombro” por Burke, “o espírito sente-se tão pleno de seu objeto que não pode admitir nenhum outro nem, consequentemente, raciocinar sobre aquele objeto que é alvo de sua atenção” (BURKE, 1993, p. 65). Um dos principais meios empregados na literatura com o objetivo de possibilitar a produção do sublime terrível e, por consequência, de evocar um sentimento de assombro é a construção do espaço ficcional. Trata-se de um artifício herdado da tradição do Gótico setecentista. Essa é também a principal estratégia narrativa utilizada por Fagundes Varela em “A sede”. Os versos que dão início ao poema já fornecem um interessante exemplo da construção do espaço de narração:

Cada vez mais possante e mais robusta

(^3) Como afirma Fred Botting: “Gótico significava uma tendência em direção a uma estética baseada em sentimento e emoção, e associada primariamente ao sublime ” (BOTTING, 1996, p. 2. Tradução e grifos nossos).

decorrente do caráter aterrorizante do deserto. Por fim, vale ressaltar, há também uma indicação da insignificância do ser humano em meio a esse ambiente hostil, que é “[…] Desditoso/ Do viandante que o roteiro perde/ Nessas paradas lúgubres, malditas”. Esse último ponto nos permite aproximar a estratégia empregada no poema à noção de horror cósmico formulada pelo escritor H. P. Lovecraft. No ensaio O horror sobrenatural em literatura (1927), o autor defende que “[a] emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o tipo de medo mais antigo e mais poderoso é o medo do desconhecido” (LOVECRAFT, 2007, p. 13). É justamente sobre essa noção de desconhecido que Lovecraft fundamentará a sua teoria do medo cósmico. O autor sustenta que a genuína literatura do medo cósmico nada tem em comum com a literatura de medo físico. Nela, é necessário haver “certa atmosfera inexplicável e empolgante de pavor de coisas externas desconhecidas” (LOVECRAFT, 2007, p. 17) e uma sugestão daquele medo primordial do ser humano. Esse elemento está presente em “A sede”, e ele fornece uma descrição mais aterrorizante do que as primeiras descrições físicas do local:

Tinha-se posto o sol, mas o ocidente, Tinto de rubra cor, sobre as planícies Derramava um clarão sinistro e feio. As altas rochas, os grosseiros cardos, Erguiam-se fantásticos, imóveis, Ora como sepulcros solitários, Monumentos estranhos de uma raça Que nunca os homens viram; ora um grupo De informes criaturas imitando, Ora disperso turbilhão de espectros No vasto chapadão cismando quedos À luz sangrenta de um vulcão sem fundo (VARELA, 2003, p. 318). Nesse trecho, que poderia muito bem ter sido escrito pelo próprio Lovecraft, o cenário natural se torna ainda mais aterrorizante devido à sua associação não apenas a coisas que são grandiosas – como os vulcões, por exemplo – mas também a coisas que são desconhecidas ao ser humano: as rochas são comparadas a um “turbilhão de espectros”, a criaturas informes, e monumentos estranhos de uma raça que a humanidade jamais conheceu. Essa associação a objetos que estão além da esfera de conhecimento do homem indica sua insignificância frente ao cenário descrito. Essa é uma estratégia empregada precisamente para sinalizar antes os limites do que um caráter supostamente infinito do espírito humano.

Ao final do poema, há uma cena digna de comentário por evocar a noção de obscuridade , algo que Burke considera um componente essencial para tornar um objeto sublime: “[p]ara tornar algo extremamente terrível, a obscuridade parece ser, em geral, necessária. Quando temos conhecimento de toda a extensão de um perigo [...] boa parte da apreensão desaparece” (BURKE, 1993, p. 66). Assim, é fundamental haver um grau de incerteza em relação ao objeto para que ele possa constituir uma fonte para o sublime. Vejamos os versos em que é descrita a batalha entre o grupo de insurgentes e o exército rival:

Então à dúbia luz dos astros raros, Que entre as nuvens condensas cintilavam, Houve uma cena horrível. Semelhantes A dous bulcões medonhos que se enroscam, Torcem-se unidos atroando o espaço, Os guerreiros do forte e os assaltantes Numa só massa escura se fundiram, Caos de seres humanos consumido Pelo fogo da raiva e da vingança! (VARELA, 2003, p. 326) A comparação dos grupos a nuvens densas e cinzentas, a alusão à fusão de ambos em uma massa única e escura conferem um elevado grau de incerteza à passagem. É precisamente esse tom obscuro que permite associar a passagem à poética burkeana do sublime. Se a cena do combate sangrento fosse descrita detalhadamente, ela seria meramente horrível, mas ela se torna sublime a partir do momento que não é possível delimitar uma ideia clara da situação que está se desenrolando. Se, no caso de “Cântico do calvário”, as imagens bíblicas permitiam vislumbrar o caráter possivelmente eterno e infinito da alma, em “A sede” é ressaltada a ideia de que o espírito humano seria finito e limitado por meio da representação de objetos e situações que constituiriam uma ameaça à preservação da vida do indivíduo. Assim, enquanto a primeira obra constitui uma manifestação do sublime egotista wordsworthiano, a segunda faz uso de imagens comuns à poética burkeana do sublime terrível. O cotejo dos dois poemas parece sugerir também que, nas primeiras obras do poeta fluminense, observa-se a presença da vertente positiva do sublime egotista, enquanto que, na última fase de sua carreira, impera a poética negativa do sublime terrível. Embora ainda não tenha sido confirmada no conjunto de sua obra, essa hipótese