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1 Rezas, Crenças, Simpatias e Benzeções, Exercícios de Comunicação

Rezas, Crenças, Simpatias e Benzeções: costumes e tradições do ritual de cura pela fé. 1. Vanda Cunha Albieri Nery. 2. Centro Universitário do Triângulo ...

Tipologia: Exercícios

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Brasilia80
Brasilia80 🇧🇷

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Rezas, Crenças, Simpatias e Benzeções:
costumes e tradições do ritual de cura pela fé1
Vanda Cunha Albieri Nery2
Centro Universitário do Triângulo Uberlândia/MG
Resumo:
Apesar dos avanços verificados na medicina, as práticas de benzeções não ficaram
enterradas no passado nem foram totalmente substituídas pelos preceitos científicos.
Acreditando ou não no poder da reza, tem sempre aqueles que procuram nas benzeções,
uma cura para a sua doença. O que é esta prática religiosa tão permeada em nosso
cotidiano? Que maneira é esta de resolver problemas tão fincados na solidariedade, tão
diferentes da cultura dominante? O que significa benzer? Por meio de observação direta e
de entrevistas informais realizadas com benzedores da cidade de Uberlândia/MG, e
entendendo a folkcomunicação como a comunicação em nível popular, busco descrever
como se dão as benzeções, procurando entender essas manifestações folclóricas como a
linguagem de um povo, a expressão do seu pensar e do seu sentir, tantas vezes discordante
do pensar e do sentir da cultura oficial e dominante.
Palavras-chave: folkcomunicação, benzeção, religiosidade popular
Introdução
Quebranto, cobreiro, mau-olhado, espinhela caída, erisipela, vento virado, peito
arrotado. Quem quer que percorra os povoados da zona rural, as pequenas cidades do
interior ou mesmo as periferias das grandes cidades vai se deparar, em um momento ou
outro, com alguns desses nomes que fazem parte de um mundo mágico-religioso, povoado
de rezas, crenças, simpatias e benzeções.
Na cultura popular, corpo e espírito não se separam, tampouco desliga-se o homem do
cosmos, ou a vida da religião. Para todos os males que atingem o corpo e a alma do homem
sempre há uma reza para curar. É por isso que, apesar do tempo e dos avanços da medicina,
a tradição dos benzedores ainda persiste na nossa moderna sociedade capitalista.
Acreditando ou não no poder da reza, tem sempre aqueles que procuram, nas rezas e nas
benzeções, uma cura para a sua doença ou um alívio para a sua dor.
1 Trabalho apresentado ao NP Folkcomunicação do VI Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom
2 Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e professora do Curso de Comunicação Social do
Centro Universitário do Triângulo onde também coordena o Comitê de Ética em Pesquisa.
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Rezas, Crenças, Simpatias e Benzeções: costumes e tradições do ritual de cura pela fé^1 Vanda Cunha Albieri Nery^2 Centro Universitário do Triângulo – Uberlândia/MG

Resumo: Apesar dos avanços verificados na medicina, as práticas de benzeções não ficaram enterradas no passado nem foram totalmente substituídas pelos preceitos científicos. Acreditando ou não no poder da reza, tem sempre aqueles que procuram nas benzeções, uma cura para a sua doença. O que é esta prática religiosa tão permeada em nosso cotidiano? Que maneira é esta de resolver problemas tão fincados na solidariedade, tão diferentes da cultura dominante? O que significa benzer? Por meio de observação direta e de entrevistas informais realizadas com benzedores da cidade de Uberlândia/MG, e entendendo a folkcomunicação como a comunicação em nível popular, busco descrever como se dão as benzeções, procurando entender essas manifestações folclóricas como a linguagem de um povo, a expressão do seu pensar e do seu sentir, tantas vezes discordante do pensar e do sentir da cultura oficial e dominante.

Palavras-chave: folkcomunicação, benzeção, religiosidade popular

Introdução Quebranto, cobreiro, mau-olhado, espinhela caída, erisipela, vento virado, peito arrotado. Quem quer que percorra os povo ados da zona rural, as pequenas cidades do interior ou mesmo as periferias das grandes cidades vai se deparar, em um momento ou outro, com alguns desses nomes que fazem parte de um mundo mágico-religioso, povoado de rezas, crenças, simpatias e benzeções.

Na cultura popular, corpo e espírito não se separam, tampouco desliga-se o homem do cosmos, ou a vida da religião. Para todos os males que atingem o corpo e a alma do homem sempre há uma reza para curar. É por isso que, apesar do tempo e dos avanços da medicina, a tradição dos benzedores ainda persiste na nossa moderna sociedade capitalista. Acreditando ou não no poder da reza, tem sempre aqueles que procuram, nas rezas e nas benzeções, uma cura para a sua doença ou um alívio para a sua dor.

(^1) Trabalho apresentado ao NP Folkcomunicação do VI Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom (^2) Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e professora do Curso de Comunicação Social do Centro Universitário do Triângulo onde também coordena o Comitê de Ética em Pesquisa.

Mas o que é esta prática religiosa tão permeada em nosso cotidiano? Que maneira é esta de resolver problemas tão fincados na solidariedade, tão diferentes da cultura dominante? O

que significa benzer? No sentido dicionarizado, benzer significa “fazer o sinal da cruz sobre pessoa ou coisa, recitando fórmulas litúrgicas para consagrá- la ao culto divino ou chamar sobre ela o favor do céu, abençoar.” Em outras palavras, o ato da bênção é um ato de súplica, de imploração, de pedido insistente aos deuses para que eles se dispam dos seus mistérios e se tornem mais presentes, mais concretos, para que tragam boas novas, produzindo benefícios aos mortais. A bênção é um veículo que possibilita ao seu executor estabelecer relações de solidariedade e de aliança com os santos, de um lado, com os homens de outro e entre ambos, simultaneamente (Oliveira, 1985).

Diz a tradição que o ato de benzer, ou de curar, é a ritualização das coisas da fé, onde muitas vezes se misturam o sagrado e o profano. Herança dos portugueses que ao chegarem ao Brasil sofreram influências dos índios e, posteriormente, dos africanos, sobretudo as mulheres. O conhecimento das plantas medicinais da colônia, dominado pela cabocla e pela mulata, unido ao das plantas medicinais trazidas pelos portugueses, foi sendo repassado de geração em geração, originando o costume de curar doenças por meio de recursos naturais. Daí a proc ura pelas rezadeiras para fazer chás, simpatias, rezas e benzeções – uma solução eficaz para solucionar os problemas de saúde para as classes mais desfavorecidas.

Por isso, a grande mistura que há. Cada benzedor tem a sua própria forma de benzer, porque a cada um foi dado um dom para curar. Um dom que se traduz na fé, aprendida com seus antepassados e de onde aprenderam a ver o mundo que os cerca. Rezadores, benzedores e curadores estabelecem com a comunidade um sistema próprio de comunicação que está além da comunicação oficial da mídia de massa, através de seus cantos, gestos, rezas e orações, que refletem vigorosamente a mais pura expressão das classes menos cultas e mais carentes da população.

Entendendo a folkcomunicação como a comunicação em nível popular, como queria Beltrão (2001), pretendo mostrar não apenas o que essas pessoas pensam, mas como pensam, como interpretam e organizam o mundo, conferindo-lhe significado e lhe infundindo emoção.

escolhido de Deus e essa escolha é revelada na descoberta do seu dom. Daí a razão dele não precisar de estudos: seu saber é revelado e o poder da cura lhe é dado por Deus. Por ter esse dom, ele sempre pode aprender alguma nova reza.

O benzedor não faz propaganda de seu trabalho. Ele se torna conhecido da comunidade por causa da cura das pessoas que atende e é sempre procurado por pessoas da sua comunidade. Não existe benzedor sem que haja uma comunidade que busque suas orações. Quando um benzedor morre, as pessoas do lugar procuram um outro que possa curar os seus males. “É a comunidade que faz o benzedor”, eles acreditam.

O benzedor homem é procurado em especial para rezar em “ofendido de bicho mau”, para tirar cobras de uma fazenda, para curar a picada de cobra, para estancar sangue numa ferida ou para curar bicheiras em animais.

A benzedeira reza em males que acometem as crianças e os adultos. Estudos realizados em Minas Gerais, mostram que a benzeção é uma prática desenvolvida sobretudo pelas mulheres: “A presença da mulher é marcante no mundo da crendice e é ela, numa maioria quase absoluta, que conhece o segredo das palavras e dos gestos capazes de exorcizarem o mal” (Gomes & Pereira, 1989:16). As benzedeiras costumam rezar mais sobre as crianças, principalmente nas situações mais comuns que as atingem: o “vento virado” (ou ventre virado) e o quebranto (ou quebrante, ou mau-olhado). Reconhece-se o vento virado quando a criança cai muito, quando não está comendo adequadamente. É uma “doença de neném, causada por susto. Manisfesta-se em diarréia e encurtamento de uma perna”. Já o quebranto é reconhecido quando a criança está “enjoada, birrenta, com suas rotinas cotidianas alteradas”. A situação ocorre porque, segundo as benzedeiras, alguém “colocou um olho ruim sobre a criança”. Esse alguém pode ser uma pessoa desconhecida ou algum parente, até mesmo os próprios pais. Quanto maior o grau de parentesco, pior é o quebranto. A solução é levar a criança para benzer, e para que a reza dê resultado é necessário que a benzeção seja feita três vezes. As palavras são pronunciadas em tom muito baixo, de forma sussurrada, o que nos impede de compreender o que é falado. Segundo as benzedeiras, são orações destinadas ao anjo da guarda da criança, pois cada uma ao nascer tem um anjo que lhe protege por toda a vida. Além disso, as rezas são acompanhadas de muitos gestos: várias vezes faz-se o nome do Pai sobre a criança, e geralmente a benzedeira tem em sua mão um terço católico ou folhas de alguma planta.

Geralmente, as benzedeiras apelam para santos católicos que, segundo elas, também curam pela intercessão divina: Santa Luzia, Santa Iria, São Sebastião, São Brás, São Bento, Santo Antônio e muitos outros. Na benzeção de terreiros e lavouras, o pedido é feito para São Sebastião; para as feridas, a reza é para São Lázaro; para a dor de cabeça, ou para o soluço ou, ainda, para o engasgo, a fé é em São Brás; para a dor de dente, chama-se por Santa Apolônia; para proteger e/ou curar os animais, a oração é para São Francisco; para a azia, pede-se o socorro de Santa Sofia; para os endividados, o auxílio vem de Santa Edvirges e na hora do parto, a poderosa ajuda de Nossa Senhora do Bom Parto.

Algumas vezes, o santo curador conhece a doença por experiência própria. Santa Luzia, por exemplo, que perdeu a vista, é a santa que protege e cura os olhos; São Lourenço, que foi martirizado no fogo, cura as queimaduras; padre Frei Clemente, um santo não canonizado, morreu envenenado, e, assim como São Bento, é invocado contra a picada de cobra.

Muitos benzedores acreditam ainda no poder das ervas e das plantas medicinais e as utilizam durante a benção. Arruda, alecrim, guiné e mamona são as mais usadas no ritual de cura. A planta, conhecida popularmente como arruda, uma erva originária da Europa, de folhas verde-acinzentadas, é a mais utilizada e tem tanto o poder de curar as enfermidades, quanto o de proteção contra “mau olhado”. Para se proteger basta colocar um pequeno ramo atrás da orelha. Seus ramos são usados para exorcizar a energia negativa dos ambientes. Nas benzeções o ramo de arruda é usado para aspergir água no benzido, purificando-o através da derrota do mal (dor de cabeça, cisco no olho, mau- olhado)”(Gomes & Pereira, 1989:40). Segundo a crença popular, as folhas do ramo, que exalam um forte odor principalmente se maceradas, quando usadas para benzer ficam murchas porque recebem o malefício que estava no doente.

Algumas outras ervas e plantas medicinais são administradas em chás, garrafadas, xaropes, cheiros e defumações e, também, em banhos. Geralmente, as garrafadas são preparadas pelos raizeiros – um homem que procura e vende as raízes medicinais, muitas já conhecidas pelo povo.

Mas é bom lembrar que não só os raizeiros conhecem raízes, sementes e folhas. Todos conhecem e usam as plantas medicinais: quebra-pedra, boldo, carqueja, hortelã. Boldo e

cura. Mas isso acontece de forma despretensiosa, não como um pagamento. O presente (agrado) representa uma troca e não uma venda, pois “o sagrado não é vendido, é trocado.” Muitos asseguram que se receberem dinheiro como pagamento podem até perder o dom, que é gratuito e vem de Deus. “Benzer é fazer o bem, por isso não se deve cobrar por nenhuma reza. Faça o bem, não importa a quem”, ensina a benzedeira Maria Cândida.

O ritual da Cura Na crença popular, a benzeção, ou simplesmente a benção, é um ritual de cura. Há benzeções para doenças específicas e outras que servem para qualquer doença. De modo geral, antes da benção, coloca-se um copo com água no local onde se realiza o ritual e no final a pessoa benzida deve tomar essa água, considerada benta. Como a água benta que encontramos nas igrejas católicas. Os gestos praticados pelos benzedores são todos idênticos ao da religião católica: eles rezam fazendo o sinal da cruz. Suas rezas, na maioria das vezes, são deturpações das orações oficializadas pela igreja, entremeadas de palavras incompreensíveis. Enquanto estiver sendo benzido, o doente não deve cruzar os pés ou as mãos. Geralmente, a benzeção é feita mais de uma vez, dependendo do mal que se acomete. No caso de cobreiro, por exemplo, é preciso benzer até três vezes para que ele seque.

A quase totalidade das rezas veio de Portugal e foi aqui adotada e recriada. Às vezes, a mesma reza tem variações de um para outro local. Como as rezas para a cura do cobreiro, uma doença dolorosa da pele, marcada com manchas de bolhas coloridas. “São bolhas de pus que provocam muita coceira e podem cobrir o corpo todo e levar à morte”, explica o senhor Sebastião Oliveira, 67 anos, benzedor de Tapuirama, um distrito de Uberlândia. Todos concordam que o cobreiro vem de algum animal peçonhento como a aranha, a lagartixa ou o sapo. Quando estes bichos passam em cima de uma roupa estendida no quintal podem largar o cobreiro.

Há diversas maneiras de curar a doença: uns fazem cruzes com tição de fogo por cima do cobreiro, outros passam um ferro quente num pano que, por sua vez, é colocado quente no cobreiro, outros cozem ritualmente com agulha e pano. Todos fazem alguma benção com suas rezas e orações que, embora variadas, trazem sempre alguns traços de semelhança. Muitas delas falam da cabeça e do rabo das manchas de bolhas. Como neste

exemplo, colhido na zona rural: O que corto?/ Cocho, cochão; sapo, sapão; lagarto, lagartão;/ Todo bico de emanação para que não cresça,/ Não apareça, não ajunta o rabo com a cabeça./ Santa Iria tinha três filhas:/ Uma lavava, outra cosia e outra pela fonte ia./ Perguntou a Santa Maria: /Cobreiro bravo, com que curaria?/ Com um Padre Nosso e três Ave-Maria,/ Oferecidas às almas benditas, que me auxilie nesse momento.

Uma coisa os benzedores têm em comum: qualquer que seja a reza, ela deve ser feita sempre em direção ao sol. Muitos também utilizam o talo da mamona e a faca, que eles passam sobre as manchas, durante a benzeção.

Outra cura bastante procurada é para o mau jeito, ou carne quebrada, para usar a linguagem mais comum entre os benzedores. Trata-se de uma luxação, uma torcedura numa parte qualquer do corpo. Em todo o Brasil, benze-se cosendo com uma agulha e um novelo de linha. Os benzedores dizem: “coser de jeito”. O ritual acontece assim: o benzedor pergunta ao doente:/ que é que eu benzo? Resposta: carne quebrada, nervo rendido, osso partido. Repetem tudo três vezes.

Uma outra variante do ritual para coser carne quebrada. O benzedor, sempre benzendo em cruz, reza: “Cristo nasceu, Cristo ressuscitou/ emendai esta carne, este nervo,/ esse osso que aqui quebrou”.

Há vários outros males no mundo mágico das benzeções. A espinhela caída, para muitos, ou peito caído, peito aberto, ou ainda, arca caída, para outros, é causada, segundo a crença popular, pelo peso que a pessoa pega. As benzedeiras trazem na ponta da língua a explicação do que seja a espinhela: é um ossinho mole que vem do coração, diz Tereza Gomes Rodrigues, benzedora da comunidade rural de Rio das Pedras. Todas concordam com os sintomas da doença: dor nas pernas, na região do tórax, nas costas e no estômago. A doença dá mais em adultos e a cura deve ser procurada na benzedeira, que primeiro trata o vento caído, tomando a medida e rezando. Depois reza a oração própria da espinhela caída, colocando um objeto de ferro na mão da pessoa. A medida é feita assim: com uma linha de algodão mede do dedo anular até o cotovelo. Tomando este tamanho duas vezes passa o fio na cintura da pessoa. Se passar ou faltar um palmo, a espinhela está caída.

Também na Bahia, de acordo com José Evangelista de Souza (1989:57), para se saber se a espinhela está caída, “tira-se” a medida. Com um fio de algodão ou uma toalha, a

conhecida. Trata-se de uma erupção na pele da criança recém- nascida. Aqui em Uberlândia, sobretudo na zona rural, para tratar do brotoejo, coloca-se um pedaço de caco de telha no fogo até ficar vermelho e coloca na água de banho da criança. A simpatia é usada, também, para acabar com coqueluche. Para isto, basta na sexta feira santa fazer um cordão com talo de mamona e colocar no pescoço da criança, à medida que secam os talos, acaba a coqueluche, depois deve-se enterrá- los.

Com a simpatia cura-se também a bronquite. Basta, numa sexta-feira santa, levar a criança doente logo de manhã, bem cedinho, no curral. Levanta-se algum boi deitado e coloca a criança no mesmo lugar quentinho onde o boi deitou. Esse ritual deve ser seguido por três anos consecutivos.

Há outras situações bastante freqüentes e conhecidas. Para os bebês com soluço deve-se colocar um pedaço de papel ou fiapo de coberta molhado em saliva da própria mãe em sua testa e o soluço passará. Para as crianças que não falam no tempo esperado (a partir de 12 meses de idade), há várias soluções: tomar a água da primeira chuva de janeiro, tomar água na campainha (ou sineta) da igreja, pegar um ovo de galinha caipira, quebrar e servir para a criança, e dar água para beber, na casca do ovo, durante três sextas-feiras seguidas. Para a criança que não anda no primeiro ano de vida deve-se pegar uma rama de batata doce com a raiz, colocá-la no chão e dar três pequenos cortes, repetir por três sextas- feiras seguidas, na última plantar pela manhã ou ao meio dia, nunca à tarde ou noite, conforme ela crescerá a criança passa a andar. Se o que se quer é tirar medo de criança, o jeito é escolher três portas tomando a direção da rua, colocar a criança em baixo de seu umbral, varrer em torno da criança e dizer “que varre o medo da criança”, repetir a mesma situação nas duas últimas portas, até varrer o medo para a rua (Megale, 1999).

O prego é um instrumento bastante usado nas simpatias. O gesto mágico de bater um prego numa árvore para livrar de febre, dor de dente e hérnia, já existia na Europa antiga, pré-cristã e perdura até hoje. Conforme uma simpatia tradicional, para diminuir o umbigo grande da criança, a mãe deve bater um prego novo num cupim. Na medida em que o prego some, pela ação do cupim, o umbigo vai diminuindo.

As simpatias são usadas também para proteção: plantas como espada-de-São Jorge e guiné são usadas como simpatia e protegem moradias e locais de comércio de maus olhados

e outros fluidos maléficos. Na sabedoria popular, a cura implica num ritual: uma oração no sentido amplo, que não contradiz a simpatia, nem o remédio.

Mas não são apenas os humanos que podem usufruir das rezas e das benzeções. Os animais também são curados de seus males pelos benzedores. Como a bicheira, ferida causada por larvas da mosca verejeira. Quando um animal tem maus, isto é, o verme da bicheira, é possível curar no rastro. Basta passar um ramo verde sobre o rastro do animal. Outros cobrem o rastro com uma pedra. Também pode bater com uma pedra em três rastros do animal. Um “remédio” usado contra a bicheira é o pó de café. Mas, é claro, a força maior da cura está no poder da oração. Getúlio César ( apud Seraine, 1978), estudando as crendices lá pelo nordeste, registra a seguinte reza: Maus que come, não se logra/ quem come e não reza, não se salva/ oficial de justiça não se salva, delegado não se salva,/ promotor não se salva, juiz de direito não se salva,/ E assim, caia de um a um, de dois em dois, de três em três, de quatro em quatro,/ de cinco em cinco, de seis em seis, de sete em sete,/ de oito em oito, de nove em nove, de dez em dez,/ de onze em onze, de doze em doze, de treze em treze,/ caia de um em um, não fique nenhum/ Amém.

Outras tantas rezas contra bicheira, bastante semelhantes, e algumas simplificadas, fazem parte da sabedoria popular. Como esta, registrada em Goiás e que deve ser repetida três vezes: Assim como o trabalho no dia de domingo não põe ninguém pra adiante,/ Será também os bichos desta bicheira/ Há de cair de nove a nove, de sete a sete, de cinco a cinco,/ De três em três, de um a um, até ficar nenhum (Lacerda, 1977).

Não é possível falar de todos os tratamentos populares. Em muitas doenças, as causas e os remédios são vários. A benção, juntamente com o remédio, tem como objetivo salvar o doente como um todo. Mesmo não separando vida e religião, ou o profano e o sagrado, essa gente sabe muito bem a diferença entre um remédio e uma oração. A reza, a simpatia e o remédio, que não se contradizem em momento algum, nem se separam no tratamento da pessoa doente; formam o sagrado, o sábio e o competente trip é da medicina popular. Eles fazem parte do agir coerente dessa gente simples e humilde que faz a benzeção em nosso país.

A gente que faz a cura

Conhecido por Tonico, o benzedor Antônio Carlos Pereira, de 47 anos, que mora em Uberlândia, diz que tem muita fé no poder da natureza. “Meus bisavós eram índios e tinham o conhecimento das ervas”, ele conta. É por esta razão que ele usa muitas plantas em suas benzeções e faz questão de respeitar as matas como também o sol, a lua, a terra e o ar. “Deus é tudo isso”, ele diz, acrescentando que não benze depois do por do sol. Os finais de semana, sábados e domingos, são reservados para a cura dos animais. Nos demais dias atende as pessoas que o procuram, mas sempre de acordo com a disponibilidade de seus horários. Ele não tem todo o dia disponível, como dona Maria Januária e dona Dirce, porque tem compromissos com seu trabalho. Mas quando atende benze cobreiro, erisipela, quebranto, mau-olhado, espinhela caída e queimaduras.

O dom, que ele também garante ser divino, foi percebido pela mãe quando ele ainda era criança. Tradição de família, foi ela quem lhe ensinou os primeiros passos das benzeções. Mas ele só começou a benzer tempos depois, aos 20 anos, pois “para se chegar a ser um benzedor tem muito sofrimento, é preciso um crescimento espiritual. Benzeção é coisa sagrada, é uma missão. O conhecimento não pode ser passado para qualquer pessoa, é preciso ter uma permissão.” Tonico explica ainda que, depois de passar a teoria para o sucessor, é necessário aguardar sete meses pela permissão espiritual. Só depois pode-se começar a exercer o ofício de fé. Também é preciso fazer um juramento de guardar em segredo as palavras que curam. Ele acredita que “se essa promessa for quebrada, a vida da pessoa fica embaraçada.”Em cada tipo de benzeção há uma reza diferente: uma Ave Maria, um Pai Nosso e, ainda, algumas palavras que são segredo. Por isso, ele reza as orações em tom quase imperceptível.

Diferente de Tonico, e não tão supersticioso quanto ele, o benzedor Aldoresti José Rosa reza sempre em voz alta. Aldoresti tem dias programados para o atendimento. Também tem um local próprio. Ele reza sempre frente a um altar, onde estão vá rias imagens de santos.

Nas falas dos benzedores podemos perceber que a rede de significados que perpassa pelas concepções e práticas de cura é tecida por múltiplos fatores que vão além da relação corpo/saúde/doença, abrangendo a relação dos benzedores co m o espaço e o tempo, juntamente com suas crenças e cosmovisões. Mais do que relatos de vida, o que temos em nossas mãos são os seus sentimentos, suas angústias, seus desejos e sonhos. Embutido a

tudo isso estão as influências do meio em que vivem e das demais pessoas que com eles interagem, direta ou indiretamente: familiares, amigos, vizinhos e as pessoas que buscam e esperam ajuda.

Para muitos benzedores, a tradição da benzeção está correndo o risco de acabar. A verdade é que hoje, já não é tão fácil encontrar benzedores, que geralmente vivem nos povoados rurais. Eles são pessoas de vida exemplar, servindo de referência para os moradores do lugar. Maria Januária diz que a benzeção está acabando porque as pessoas estão perdendo a fé. Dirce Aparecida acha que o dom de fazer o bem através da reza não está sendo repassado para outras pessoas. Para ela, não há interesse, nem de familiares nem de amigos, para aprender as rezas e os rituais das benzeções. Antônio Carlos Pereira, o Tonico, acha que os benzedores não estão encontrando os sucessores certos. O teólogo e historiador, José Lucindo Pinheiro, acredita que a tradição dos benzedores está acabando em função do avanço tecnológico que está sendo empregado sobretudo na medicina. “Está prevalecendo mais a mentalidade comercial. As pessoas hoje acreditam mais na medicina do que no benzedor.” Ele acrescenta ainda que cada pessoa, conforme a sua crença, procura aqueles que manifestam o dom que receberam, embora possa recorrer a Deus diretamente. “O homem é tão sensível que precisa de um sinal externo que confirme o seu contato com Deus e o benzedor é que lhe dá essa crença.”

A benzeção é a mais viva forma da cultura nascida do povo e praticada pelo povo. O povo guarda as suas cantigas, seus remédios, suas preces, suas devoções, seus rituais de trabalho, enquanto tiverem algum sentido na vida deles. Os benzedores tratam seus doentes com rezas, simpatias e remédios que não se contradizem em nenhum momento. Eles transmitem uma grande paz e pelejam com o doente. Diante do tratamento dado pelos benzedores, é fácil enxergar que eles representam valores. Para nós, é impossível imitar suas rezas, simpatias e benzeções. Tudo isso está perfeitamente adaptado à vida dos benzedores e à dos seus doentes, mas muito diferente da nossa vida. É preciso tentar entender as suas histórias e suas realidades, seu modo de pensar, a partir dele próprio, da sua visão de mundo, que é bem diferente da nossa. É grande a diferença entre o oficial e o popular, desde o lugar do tratamento, os nomes dados aos membros do corpo até a própria interpretação da doença e, consequentemente, à prática dos benzedores. “Não podemos, portanto, continuar a ignorar o pensamento da metade da população brasileira, se quisermos