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1 O experimental em Lygia Clark, Exercícios de Comunicação

contemplativa. A obra de Lygia Clark vai adiante, refazendo e se atualizando a partir da ação de cada indivíduo, adquirindo significados distintos a cada.

Tipologia: Exercícios

2022

Compartilhado em 07/11/2022

PorDoSol
PorDoSol 🇧🇷

4.5

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1
O experimental em Lygia Clark
1.1
Neoconcretismo de Lygia Clark
Lygia Clark e alguns contemporâneos como Helio Oiticica e Lygia Pape – a
partir da experiência Neoconcreta nos anos 19601, procuram modificar o papel do
artista e a concepção de obra de arte: o artista seria um propositor de experiências
a serem vividas pelo espectador e a obra seria completada no ato: o próprio gesto
e seus desdobramentos na vida do participante. A fruição seria uma experiência
expandida, do olhar ao corpo, aos vetores da percepção; o participante é
convocado a conhecer o que lhe é proposto através das sensações, até que ele se
torne o próprio criador de sentido.
Em 1959, Lygia Clark assinara o Manifesto Neoconcreto, início de um
movimento que procurou dar seqüência crítica à introdução da estética construtiva
realizada pelo concretismo brasileiro, contrário ao figurativismo regional que
predominava no restrito circuito de arte do país. O neoconcretismo herdara
certos posicionamentos do movimento concreto, como a participação da arte na
transformação social2, ao mesmo tempo em que inseria novos aspectos, como a
significação da obra a partir do contato com o espectador viés radicalizado
mais tarde por Clark, Oiticica e Pape em suas propostas experimentais –, numa
1. Importante ressaltar que o “grupo” neoconcreto, na verdade constitui-se como manifestação
inaugural de ruptura com o concretismo e não tanto como artistas que seguem um programa.
Apesar de compartilharem uma filosofia de trabalho mais afetiva, de sensibilização da
geometria etc, os artistas distinguiam-se sobremaneira. Nas palavras de Gullar “O
compromisso que os prende, prende-os primeiramente cada um à sua experiência, e eles
estarão juntos enquanto dure a afinidade profunda que os aproximou” (GULLAR, 1977,
p.84). Já em 1959, mesmo ano em que assina o manifesto, no texto Carta a Mondrian, Lygia
Clark se declara descontente com a quebra da unidade que enxergava no movimento.
2. Mais adiante veremos como os neoconcretos abandonam esse “ideal” pela consciência da
impossibilidade de atuação organizada no ambiente cultural brasileiro, caracterizando-se por
uma postura mais crítica, liberatória e apolítica.
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O experimental em Lygia Clark

Neoconcretismo de Lygia Clark Lygia Clark e alguns contemporâneos – como Helio Oiticica e Lygia Pape – a partir da experiência Neoconcreta nos anos 1960 1 , procuram modificar o papel do artista e a concepção de obra de arte: o artista seria um propositor de experiências a serem vividas pelo espectador e a obra seria completada no ato: o próprio gesto e seus desdobramentos na vida do participante. A fruição seria uma experiência expandida, do olhar ao corpo, aos vetores da percepção; o participante é convocado a conhecer o que lhe é proposto através das sensações, até que ele se torne o próprio criador de sentido. Em 1959, Lygia Clark assinara o Manifesto Neoconcreto, início de um movimento que procurou dar seqüência crítica à introdução da estética construtiva realizada pelo concretismo brasileiro, contrário ao figurativismo regional que predominava no já restrito circuito de arte do país. O neoconcretismo herdara certos posicionamentos do movimento concreto, como a participação da arte na transformação social 2 , ao mesmo tempo em que inseria novos aspectos, como a

significação da obra a partir do contato com o espectador – viés radicalizado

mais tarde por Clark, Oiticica e Pape em suas propostas experimentais – , numa

  1. Importante ressaltar que o “grupo” neoconcreto, na verdade constitui-se como manifestação inaugural de ruptura com o concretismo e não tanto como artistas que seguem um programa. Apesar de compartilharem uma filosofia de trabalho mais afetiva, de sensibilização da geometria etc, os artistas distinguiam-se sobremaneira. Nas palavras de Gullar “O compromisso que os prende, prende-os primeiramente cada um à sua experiência, e eles estarão juntos enquanto dure a afinidade profunda que os aproximou” (GULLAR, 1977, p.84). Já em 1959, mesmo ano em que assina o manifesto, no texto Carta a Mondrian , Lygia Clark se declara descontente com a quebra da unidade que enxergava no movimento.
  2. Mais adiante veremos como os neoconcretos abandonam esse “ideal” pela consciência da impossibilidade de atuação organizada no ambiente cultural brasileiro, caracterizando-se por uma postura mais crítica, liberatória e apolítica.

abordagem fenomenológica que levava em conta a espacialização da obra, assim como a abertura às múltiplas percepções de forma e cor dadas pela contingência 3 ; o caráter expressivo e particularizado das obras, que sinalizaram “um esforço para conservar sua especificidade (e até sua ‘aura’)” (BRITO, 1999, p.58) 4 , e a inclusão de cores locais, visíveis na crítica à poética concretista alinhada ao projeto desenvolvimentista brasileiro. “É um fato histórico que o neoconcretismo foi o último movimento plástico de tendência construtiva no país e que, inevitavelmente, encerrou um ciclo. Com ele termina o ‘sonho construtivo’ brasileiro como estratégia cultural organizada” (BRITO, 1999, p.55). A visão mais amadurecida do ambiente cultural local e a consciência da impossibilidade de atuar fora do estrito circuito de arte, presentes no neoconcretismo, devem-se em parte à experiência concretista, que tentara disseminar a linguagem construtiva através da produção industrial – daí sua estreita relação com o design e a publicidade. Os neoconcretos dispensaram um projeto mais abrangente e procuraram pensar o ambiente mesmo de sua formação/disseminação, provocando desafios aos modos de apresentação e fruição pelo seu caráter experimental. Assim, o Neoconcretismo insere o exercício do pensamento sobre a atividade artística dentro do circuito brasileiro, prática que instrumentalizará mais tarde abordagens da arte contemporânea nacional. Tanto pelas questões que levantou como pelo seu próprio modo de inserção na instituição-arte, e pela maneira como evoluiu enquanto estratégia de grupo, o

  1. “É porque a obra de arte não se limita a ocupar um lugar no espaço objetivo – mas o transcende ao fundar nele uma significação nova - que as noções objetivas de tempo, espaço, forma, estrutura, cor etc não são suficientes para compreender a obra de arte, para dar conta de sua ‘realidade’. A dificuldade de uma terminologia precisa para exprimir um mundo que não se rende a noções levou a crítica de arte ao uso indiscriminado de palavras que traem a complexidade da obra criada. A influência da tecnologia e da ciência também aqui se manifestou, a ponto de hoje, invertendo-se os papéis, certos artistas, ofuscados por essa terminologia, tentarem fazer arte partindo dessas noções objetivas para aplicá-las como método criativo. Inevitavelmente, os artistas que assim procedem apenas ilustram noções a priori , limitados que estão por um método que já lhes prescreve, de antemão, o resultado do trabalho. Furtando-se à criação espontânea, intuitiva, reduzindo-se a um corpo objetivo num espaço objetivo, o artista concreto racionalista, com seus quadros, apenas solicita de si e do espectador uma reação de estímulo e reflexo: fala ao olho como instrumento e não olho como um modo humano de ter o mundo e se dar a ele; fala ao olho-máquina e não ao olho-corpo” (GULLAR, 1977 , p.82).
  2. Para Ronaldo Brito, a busca pela “especificidade” e até por uma certa “aura” do trabalho, era comungada tanto pelos neoconcretos identificados pelo autor como o “vértice” construtivo (Willys de Castro, Franz Weissmann, Hercules Barsotti, Aluísio Carvão e em parte Amilcar de Castro), como pelos que representavam a “ruptura” concreta (Helio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape).

sua formalização/ concretização em obra. Assim, o “tempo mecânico” construtivo materializaria a sucessão dos movimentos assim como faz o relógio fracionando-a em unidades numéricas. Já a arte neoconcreta, com sua abordagem fenomenológica, alinhava-se à noção de tempo como duração e virtualidade 7 ; o tempo deveria ser percebido pelo espectador como deveriam ser percebidos o espaço, a forma e a cor, elementos constitutivos da obra que se expandem para além do objeto. Todos devem surgir e se refazer a cada experiência, aparecendo aos olhos como fenômeno e nunca como dados a priori. Soit un morceau de sucre: il a une configuration spatiale, mais sous cet aspect, nous ne saisirons jamais que dês différences de degré entre ce sucre et toute autre chose. Mais il a aussi une durée, un rythme de durée, une manière d`être au temps, qui se revele au moins en partie dans le processus de sa dissolution, et qui montre comment ce sucre diffère en nature non seulement des autres choses, mais d’abord et surtout de lui-même. Cette altération qui ne fait qu’un avec l’essence ou la substance d’une chose, c’est elle que nous saisissons, quand nous la pensons en termes de Durée. A cet égard, la fameuse formule de Bergson “je dois attendre que le sucre fonde” a un sens encore plus large que le contexte ne lui prête (DELEUZE, 1968 , p.23 et. seq.).^8 Em seu livro Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro , Ronaldo Brito relaciona o projeto neoconcreto à “doutrina intuicionista” de Henri Bergson e sua idéia de tempo como duração, pois “servia e estava associado à proposta de ‘ativar’ o relacionamento do sujeito com o trabalho e permitir múltiplas possibilidades da leitura, ‘abertas’ no tempo” (BRITO, 1999,

  1. Para o filósofo Henri Bergson, somente na duração é possível estabelecer diferenças entre a natureza das coisas e, somente nela, a natureza de cada coisa pode se refazer. É na duração que se dá a multiplicidade qualitiativa (subjetiva), como a de um sentimento, por exemplo. Em oposição à multiplicidade qualitativa está a multiplicidade quantitativa (objetiva), fracionável numericamente e que se dá no espaço – segundo elemento que compõe a principal dualidade bergsoniana, de acordo com Gilles Deleuze. Ao contrário da multiplicidade qualitativa, sempre atualizada pois desprovida de profundidade, a multiplicidade quantitativa é virtual já que não se separa de seu movimento ininterrupto de atualização e de diferenciação, não podendo prescindir da dimensão temporal. Apenas através da intuição e não pelo intelecto, podemos, segundo Bergson, introjetar e explicitar o que percebemos da realidade; apenas a intuição nos possibilita perceber nossa duração e reconhecer as outras durações que nos cercam. A intuição tem status de método na filosofia bergsoniana.
  2. Tradução livre: “Aqui está uma porção de açúcar: ela tem uma configuração espacial, mas nesse aspecto, só saberemos as diferenças de grau entre essa porção e todas as outras coisas. Mas há também uma duração, uma forma de ser no tempo, que se revela, ao menos em parte, no seu processo de dissolução, e que mostra como esse açúcar se difere em natureza, não somente das outras coisas, mas primeiramente, e sobretudo, dele mesmo. Esta alteração, feita com a essência ou substância de uma coisa, é a que sabemos, quando a pensamos em termos de Duração. Sob esse aspecto, a famosa fórmula de Bergson ‘eu devo esperar que o açúcar derreta’, tem um sentido ainda mais amplo que o contexto lhe atribui”.

p.78). O tempo da obra estaria suspenso, como se esperasse a intervenção do espectador para completar-se; sua suspensão se daria a cada nova abertura à participação e a recriação do trabalho permaneceria latente. Toda a minha visão não é puramente ótica mas está visceralmente ligada à minha vivência do sentir, não somente no sentido imediato, mas, mais ainda, no sentido profundo que não se sabe onde está a sua origem. O que uma forma pode expressar somente tem sentido, para mim, em relação estreita com seu espaço interior, vazio- pleno da sua existência, assim como existe o nosso que vai se completando e tomando sentido à medida que a maturidade chega (CLARK, 1997 , p.111). No texto O vazio-pleno (1959), Lygia Clark supõe uma troca entre o homem e o objeto no espaço circundante – “vivo e real” – graças à “irradiação” de uma energia que os conecta, que preenche o aparente vazio. Quando um objeto é colocado num entorno superdimensionado, sem tensão, o espaço torna-se “vazio” e “morto”. Porém, quando esse objeto encontra seu espaço ou é cercado por outros objetos, é possível sentir as forças interagindo entre os mesmos. Para a artista, acima dos objetos e dos animais, estaria o homem, dotado da maior capacidade de irradiação. Vemos aí uma consonância do pensamento de Lygia Clark com outras poéticas neoconcretistas, que entendem o espaço e os objetos como elementos vivos/orgânicos, sujeitos à reelaboração pelos processos vitais. A obra nos levaria ao tal “flash do infinito” (CLARK), à experiência de fusão com o coletivo em vida, antecipando o que se daria apenas na morte. Daí sua idéia de que o início e o fim (vida e morte), o vazio e o pleno, podem fundir- se, por um momento, através da experiência estética. Em seus trabalhos, Lygia Clark problematizou a instabilidade entre noções aparentemente distintas, como o dentro e o fora, o espectador e o artista, o espaço e o tempo: neste caso, a obra que surge no ato não dividiria as duas dimensões, possibilitaria um distanciamento da noção de tempo cronológico e uma vivência do tempo como duração, sugerindo uma relação mais orgânica como o entorno, como indicado pela artista em O vazio-pleno. Através da não diferenciação entre certos conceitos, a artista força o exercício de uma experiência originária, anterior aos predicados. “Em tudo que faço há realmente necessidade do corpo humano, para que ele se expresse ou para revelá-lo como se fosse uma experiência primeira” (CLARK, 1996, p.61). Percebe-se aí uma aproximação das propostas de Lygia Clark com experiência do

ensina que seres diferentes, ‘exteriores’, estranhos um ao outro, estão todavia, absolutamente juntos” (MERLEAU-PONTY, 1984, p.298) 12 . Esta extraordinária superposição [...] impede concebermos a visão como uma operação de pensamento que ergueria diante do espírito um quadro ou uma representação do mundo, um mundo da imanência e da idealidade. Imerso no visível por seu corpo, embora ele próprio visível, o vidente não se apropria do que vê: só se aproxima dele pelo olhar, abre-se para o mundo. E por seu lado, esse mundo, de que ele faz parte, não é em si ou matéria. Meu movimento não é uma decisão do espírito, um fazer absoluto que, no fundo do retiro subjetivo, decretasse alguma mudança de lugar miraculosamente executada na extensão. Ele é a seqüência natural e o amadurecimento da visão. De uma coisa digo que ela é movida, porém meu corpo, este, se move, meu movimento se desdobra. Ele não está na ignorância de si, não é cego para si, irradia de um si... (MERLEAU-PONTY, 1984, p.278)^13. A constituição do homem como tal, a partir de sua experiência no mundo da vida, está presente nas poéticas de artistas como Lygia Clark e Helio Oiticica, que enveredaram para uma arte experimental: “Recusamos o artista que pretenda emitir através de seu objeto uma comunicação integral de sua mensagem, sem a participação do espectador” (CLARK, 1980, p.30). O movimento neoconcreto substitui o causalismo da leitura gestáltica, pelo conhecimento fenomenológico da obra, sobretudo o teorizado por Maurice Merleau-Ponty. A experiência da percepção nos põe em presença do momento em que se constituem para nós as coisas, as verdades, os bens, que a percepção nos dá um logos em estado nascente, que ela nos ensina, fora de todo dogmatismo, as verdadeiras condições da própria objetividade [...]. Não se trata de reduzir o saber humano ao sentir, mas de assistir ao nascimento desse saber, de torná-lo tão sensível quanto o sensível, de reconquistar a consciência da racionalidade, que se perde acreditando que ela vai por si, fazendo-a aparecer sobre um fundo de natureza inumana (MERLEAU-PONTY, 1990 , p.63). Em 1960, Ferreira Gullar desenvolve a Teoria do não-objeto^14 , estabelecendo uma distinção entre obras de arte em pintura e escultura e os novos objetos que estavam sendo propostos pelos neoconcretos, que ultrapassavam os limites convencionais relativos a tais categorias. Esses não-objetos, transparentes ao conhecimento fenomenológico, sintetizariam sensação e pensamento durante a experiência. Segundo Gullar, os não-objetos, em sua maioria, solicitavam a participação do espectador, pois o sentido da obra não poderia ser dado

  1. Id. ibid.
  2. Id. ibid.
  3. Publicada no suplemento dominical do Jornal do Brasil, uma contribuição à II Exposição Neoconcreta, em 1960.

unicamente pela contemplação: “A ação não consome a obra, mas a enriquece: depois da ação, a obra é mais que antes. [...] Sem ele [espectador], a obra existe apenas em potência, à espera do gesto humano que a atualize” (GULLAR, 1977, p.94). O plano é um conceito criado pelo homem com fins práticos: para satisfazer sua necessidade de equilíbrio. O quadrado, criação abstrata, é um produto do plano. O plano, marcando arbitrariamente os limites do espaço, dá ao homem uma idéia inteiramente falsa e racional de sua própria realidade. Daí surgem os conceitos antagônicos como o alto e o baixo, o avesso e o direito – contribuindo para destruir no homem o sentimento da totalidade (CLARK, 1980, p.13). O trabalho de Lygia Clark, sobretudo a partir dos Bichos , (Figuras 1 e 2, p.45) participa da problemática em torno do entrecruzamento das categorias artísticas, não sendo mais possível considerar sua obra exclusivamente no campo da escultura. Com Estruturação do Self (1976- 1988 ) 15 a artista força mais limites, colocando-se na fronteira entre a atividade artística e a terapêutica. Nessa última fase, a divisão da autoria com o espectador-participante, ficava sujeita às respostas mais íntimas de cada indivíduo, a quem eram fornecidas condições de criar uma poética própria, numa empresa generosa da artista. Ao dar significado às suas experiências, o participante ia se revelando ser criativo num mundo que lhe é dado como pronto. Como querem alguns buscar uma expressão para o espaço absoluto através de uma esquematização racional? Como querem saber o que é tempo se o esquema deles já é deturpado na base do tempo mecânico? Há outra linguagem, há outra realidade e não é a lógica que nos levará a ela mas somente a vivência. Há o espírito. É a tragédia do homem. Ele vive de uma maneira e tem que aprender a se deslocar desta realidade em busca de uma expressão que ultrapasse toda esta mesma realidade (CLARK, 1997, p. 144). Os Bichos seriam a materialização das reflexões de Lygia Clark: propõem um exercício de liberdade em relação ao espaço e ao tempo determinados. Planos unidos por charneiras são organizados em diferentes disposições, formam objetos de aspecto orgânico que se movimentam através das articulações tridimensionais. Assim como seres da natureza, os Bichos de Lygia Clark têm movimentos

  1. A partir de 1981, Lygia Clark diminui o número de clientes; a Estruturação do Self torna-se um trabalho formulado e, portanto, menos interessante para o espírito investigativo da artista. Em 1984 Lygia reduz ainda mais o tempo dedicado à proposta, realizada até 1988, ano de sua morte.

os Bichos , foram confeccionados através de recortes espiralados em alumínio, artifício que conferiu maleabilidade ao metal: esses “seres invertebrados”, podiam esticar-se na verticalidade ou achatar-se quando apoiados no plano. Em 1964, interessada na utilização de materiais ordinários e frágeis encontrados no entorno, Lygia realiza a Obra-Mole (Figura 4, p.4 6 ), uma espécie de Trepante feito de borracha laminada. Disse Mário Pedrosa sobre a Obra Mole : “Até que enfim pode-se chutar uma obra de arte” (PEDROSA apud MILLIET, 1992, p.86). A proposição Caminhando , de 1963, (Figura 5, p.47) pode ser construída por qualquer pessoa: é uma tira de papel, de comprimento suficiente para envolver um livro que, depois de torcida, tem suas extremidades coladas, fazendo uma fita de Moebius, forma que trabalha conceitos matemáticos como orientação, continuidade etc. Declarou certa vez Lygia Clark: “Devo também a Max Bill^17 uma boa lição. Nyomar Muniz Sodré o trouxe na minha casa e foi ele que me falou na fita de Moebius e me ensinou a fazê-la. Partindo dela, muito mais tarde, fiz a proposição ‘Caminhando’” (CLARK apud FERREIRA, 1996) 18

. A artista apropriou-se da fita e deu continuidade à problematização de dicotomias como dentro/fora, avesso/direito, antes/depois; questões que já vinham sendo esboçadas em trabalhos da fase concretista – Descoberta da linha orgânica (1954), Série: Quebra da moldura (1954), Maquetes para interior (1955), Superfícies moduladas (1955-56) e Planos em superfície modulada (1956-58) – que incorporaram o conceito de “linha orgânica” 19 (1954). Este termo foi elaborado por Lygia Clark em 1954 após notar a linha que surgia no espaço entre uma colagem e o passe-partout de mesma cor: seria a expressão da tensão entre o espaço plástico e seu entorno, o vazio-pleno.

  1. Autor da escultura Unidade Tripartida (1948-49), trabalho vencedor do prêmio da I Bienal de São Paulo, em 1951.
  2. O depoimento encontra-se no glossário de casos clínicos organizado por Gina Ferreira, intitulado Lygia Clark. Memória do corpo. O trabalho, concluído em 1996, foi resultado de um projeto do MAM do Rio de Janeiro para desidentificar os “casos clínicos” registrados por Lygia Clark durante a Estruturação do Self , a fim de que pudessem tornar-se acessíveis ao público.
  3. “The organic line does not have the touch of human hands, thus revealing a process of creation through another mind-body articulation [...] the creation of the organic line should not be underestimated. If we follow her writings in which she reveals how she arrived at this discovery, it’s interesting to see the artist’s incredible lucidity [...] to establish a continuity between the artwork and the real world, between art and life”. BASBAUM, Ricardo. Within the Organic Line and After (p. 87 - 9 9). In.: Art after conceptual art. Cambridge, MA/London: MIT Press, Vienna: Generali Foundation, 2006.

O “Caminhando”, por exemplo, só tomou seu sentido para mim quando, atravessando o campo de trem, senti cada fragmento da paisagem como uma totalidade no tempo, uma totalidade de ser , de se fazer sob meus olhos, na imanência do momento. O momento era a coisa decisiva. [...] E cada vez que a expressão “Caminhando” surge na conversa, ela suscita um verdadeiro espaço e me integra no mundo. Eu me sinto salva (CLARK, 1980, p.26). O participante da proposição deve pegar uma tesoura e cravar uma de suas pontas na superfície do papel, cortando-o continuamente no sentido do comprimento. Ao quase completar a volta, deve optar entre cortar à direita ou à esquerda do corte já feito, continuando o mesmo processo até que a fita se afine de tal modo que não é mais possível cortá-la, chegando ao fim da experiência. “O ato de se fazer, é tempo. Eu me pergunto se o absoluto não é a soma de todos os atos? Seria este espaço-tempo

  • onde o tempo, caminhando, se faz e refaz continuamente? Nasceria dele mesmo esse tempo absoluto” (CLARK, 1980, p.24). Lygia reconheceu a permanência da dualidade sujeito-objeto nos Bichos quando os comparou com o Caminhando , que teria conseguido eliminar por completo a polaridade: “De saída, o Caminhando é apenas uma potencialidade. Vocês e ele formarão uma realidade única, total, existencial” (CLARK, 1980, p.26). O gesto de cortar o Caminhando deve ser gratuito, a ação é propositalmente vazia de sentido para que o participante crie um sentido para si. Por isso, para Lygia, não bastava haver a participação do espectador para se operar uma mudança na arte contemporânea, era preciso ser a proposição um mero “trampolim”, a fim de que cada um “dê um sentido a seu gesto e que seu ato seja nutrido por um pensamento: a ocorrência do jogo coloca em evidência sua liberdade de ação” (CLARK, 1980, p.28). Segundo Lygia, é atribuída “uma importância absoluta ao ato imanente realizado pelo participante”, são permitidos “a escolha, o imprevisível, a transformação de uma virtualidade em um empreendimento concreto”. O sentido da experiência está no ato de realizá-la, a obra é a realidade de uma imanência que “se revela em sua totalidade durante o tempo de expressão do espectador-autor” (CLARK, 1980, p.25 et. seq.). A forma da fita de Moebius possibilitaria vivenciar a totalidade espacial e temporal, pois o avesso é também o direito, o espaço e o tempo experimentados são contínuos.

comportamento , diz identificar no ateliê de Mondrian em Nova Iorque e no Merzbau de Schwitters, tentativas de se levar a um “comportamento estético da vida” através de um “recinto-obra”, deslocando a fruição de obras para fora de museus e galerias, espaços acusados de trair “a intenção renovadora do artista”. Agora, com o tempo das novas experiências, outro problema bem mais grave aparece: o do recinto-obra, indeslocável pela sua natureza, ou seja, o lugar-recinto- contexto-obra, aberto à participação, cujos significados são acrescentados pela participação individual nesse coletivo. Já se vê a velha sala de museu, eclética, dando para outra onde se exibe outra “obra completa” etc., não dá mais pé (OITICICA, 1986 p.119). Helio Oiticica, com seu conceito de Crelazer – segundo Guy Brett um neologismo que “combina criação, crescimento, lazer, prazer e, talvez, crioulo” 23

  • , um “lazer usado como ativante não repressivo” (OITICICA, 1986, p.120), convidava o participante a realizar criativamente experiências dentro de um espaço mítico, como um pequeno deslocamento, um “shift” na opressão do mundo, como na proposição Éden (1969), chamada pelo artista de “ campus experimental”. Os diferentes núcleos, – ou “ninhos” – que compunham o Éden , convidariam o participante a um “estado comportamental”, a partir do qual poderia se abrir a um processo de transformações; para Helio Oiticica, esses pequenos espaços dentro do ambiente teriam forçado um limite, mostrando ... […] a necessidade de desenvolver cada vez mais algo que fosse extra-exposição, extra- obra, mais do que o objeto participante, um contexto para o comportamento, para a vida; os ninhos propõem uma idéia de multiplicação, reprodução, crescimento para a de comunidade (OITICICA, 1970)^24. Em carta a Neville d’Almeida, de 1973, Oiticica trata daquilo que chama de experiência-limite na relação arte/antiarte provocada pelo experimentalismo brasileiro. Helio Oiticica elege a (fase) Nostalgia do Corpo , de Lygia Clark, o Ovo , de Lygia Pape, e seus próprios trabalhos, como exemplos dessa tensão, ainda que guardadas nuances entre eles: a referida fase de Clark seria a face mais “positiva” dessa experiência-limite; o Ovo de Pape trabalharia na contradição entre produção e negação; enquanto que Oiticica se reconhece como aquele que
  1. BRETT, Guy. Brasil experimental. Arte/vida: proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2005 (p.46).
  2. Programa Helio Oiticica do site Itaú Cultural. Texto Experiência Londrina: Subterrânea , de 27 de janeiro de
    http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_links&cd_ver bete=2020&cd_idioma=28555&cd_item=0000. Acessado em 30 de maio de 2008.

trabalha na “experimentalidade de ordem negativa” (OITICICA, 1973), por dar maior importância ao comportamento (na vida) do participante do que a qualquer evidência material que resultasse de suas propostas. Ainda que essa tentativa de classificação seja discutível e mereça maior atenção, o conceito de experiência- limite trazido por Helio Oiticica nos ajuda a compreender melhor alguns problemas levantados com o Caminhando em 1963. [...] um tipo de experiência q se coloca nos limites de um tipo de produção positiva e de negação de produção: q não quer ser obra mas q quer manifestar-se no tempo e no espaço e q por isso mesmo é contradição e limite: um tempo parado de experimentalidade pura: quero q esses documentos sejam como q uma justaposição de experiências diversas desde as q são positivas (como sentido de produção), as q são limite, e as q são negativas (como produção de obra): cheguei à conclusão q experimentalidade como atividade (q seria a única licita e de ter razão de ser, já que “arte” de produção de obras faliu) pode ser tão experimental numa como noutra dessas três condições (OITICICA, 1973).^25 1. Nostalgia do corpo Na fase sensorial do meu trabalho, que denominei “nostalgia do corpo”, o objeto ainda era um meio indispensável entre a sensação e o participante. O homem encontra seu próprio corpo através de sensações táteis realizadas em objetos exteriores a si. (CLARK apud MILLIET, 1992, p.123). Em Nostalgia do corpo , Lygia Clark cria objetos que funcionam como entidades vivas, como partes de um corpo que manipulamos e reconhecemos. Aqui as propostas caracterizam-se pelo convite a experiências individuais, em contraste com os diálogos interpessoais que se darão na fase posterior, A casa é o corpo. Pedra e ar , de 1966, (Figura 6, p.48) foi a primeira proposição da série Nostalgia do corpo. Lygia Clark havia retirado o plástico que envolvia sua mão engessada e o enchera de ar. Depois o fechou com um elástico e colocou sobre essa “bolsa de ar” uma pedrinha. Lygia pressionava a bolsa com as duas mãos, fazendo a pedrinha subir e descer, procurando manter o conjunto em equilíbrio para não derrubar a pedra. O equilíbrio é encontrado na tensão, e qualquer

  1. Trecho de carta a Neville d’Almeida em julho de 1973. Ver site Itaú Cultural, Neville meu amor – NEW YORK, julho de 1973. Grifo do autor.

participante. Em Desenhe com o dedo (Figura 9, p.4 9 ), um envelope de plástico (20cm x 30cm) contendo água possibilita uma série de desenhos à medida que o participante passa seu dedo sobre a superfície. Água e conchas (Figura 10, p.4 8 ) é uma proposição feita de uma bolsa de plástico com água e conchas em seu interior. Um elástico colocado no meio da bolsa a comprime, mas permite a passagem do conteúdo de um lado para outro. O uso de materiais encontrados no entorno para construir objetos de fácil confecção e de manipulação aparentemente singela, como nas três proposições acima descritas, indicam que é possível vivenciar a plenitude do gesto gratuito, basta que sejamos atores, que não ajamos apenas em resposta a estímulos externos. Podemos “estar no mundo” de forma consciente, nos conectar a ele pela experiência sensível da carne. É precariamente que vivemos o absoluto. Por mais que se leia uma grande obra ou maravilhe-se com uma pintura, por mais que tais obras nos transformem, sempre estaremos diante do resultado do virtuosismo e do momento absoluto de outrem. Somos agora aproximados do fazer. Nossas mãos, esquecidas pelo trabalho alienado, são convocadas novamente para o tal “recruzamento” de que falara Merleau-Ponty, que se dá entre nós e o mundo da vida. Somos despertados para a realização nossas próprias proposições. Seria raportá-lo no que há de mais imediato, fazendo-o sentir que ele escolhe e acontece a cada minuto. A priori não há nada em nome de Deus, em nome de normas sociais, em nome de julgamentos futuros: ele é o grande solitário na escala do humano, e é ele e está nele, todas as possibilidades do ser-sendo (CLARK, 1997, p.159 et. seq.). A experiência Respire comigo, de 1966, (Figura 11, p.50) é talvez, dentre todas as outras situadas nesse período, a que faz mais óbvia referência ao corpo; referência essa que não se faz pela forma, mas pelo movimento e pelo som gerado. Respire comigo é um tubo sanfonado de borracha, desses utilizados por mergulhadores, que tem suas extremidades unidas – pressionando um extremo para dentro do outro – , formando um anel. Como se esperasse a ação do outro para existir como entidade viva, o objeto revela seu anseio no próprio nome; o participante dá vida ao objeto estendendo-o e comprimindo-o repetidamente, sua atenção transita entre o dentro e o fora, coordenando seu ritmo com o ritmo do outro. Um pólo possibilita seu oposto; na tensão e na impermanência da inspiração/respiração, o sujeito conecta-se com o “não-eu”.

[...] assim, a primeira vez que escutei esse sopro [...], a consciência de minha respiração me deixou angustiada por várias horas, e ao mesmo tempo parecia que nascia uma energia desconhecida em mim (CLARK, 1997, p.188). Nas experiências abertas propostas por Lygia Clark, que farão parte de sua poética até a Estruturação do Self , percebe-se uma preocupação com homem moderno privado de expressividade (criativa), seja pelo embotamento causado pelo trabalho que aliena, seja por ver-se impelido a adotar uma imagem fixa e “reconfortante” de si mesmo dentro da sociedade; o jogo de intersubjetividade provocado por tais experiências, que pretendem fundir arte e vida com a valorização de gestos do cotidiano – colaborando para a dissolução da fronteira entre desejo e trabalho, de que trataremos mais tarde – poderiam servir como exercício de novas possibilidades de comportamento, desencadear processos de singularização. Através da recuperação da significação de seu gesto ordinário, o participante teria a chance de se reelaborar como sujeito. [...] através da proposição, deve haver um pensamento, e quando o espectador expressa essa proposição, ele na realidade está juntando a característica de uma obra de arte de todos os tempos: pensamento e expressão. E para mim tudo está ligado. Desde a opção, o ato, a imanência como meio de comunicação, A falta de qualquer mito exterior ao homem que o satisfaça e ainda, na minha fantasia, se ligando com o anti-universo onde as coisas estariam lá porque está acontecendo agora. [...] A verdadeira participação é aberta e nunca poderemos saber o que damos ao espectador-autor (CLARK, 1996, p.84). 1. A casa é o corpo [...] Para mim, o objeto, desde o Caminhando , perdeu seu significado, e se ainda o utilizo é para que ele seja o mediador para a participação. As luvas sensoriais, por exemplo, é ( sic ) para dar a medida do ato e também o milagre do gesto na sua espontaneidade que parece esquecida. Em tudo que faço há realmente necessidade do corpo humano, para que ele se expresse ou para revelá-lo como se fosse uma experiência primeira (CLARK, 1996, p.61). Em A casa é o corpo , o participante passa a interagir com outras pessoas através dos objetos, podendo inclusive incorporar a criatividade do outro. Na série Roupa- corpo-roupa composta pelos trabalhos O eu e o tu e Cesariana (Figuras 12 e 13,

mesma sensação do artista quando ele ainda fazia uma obra que lhe acrescentava algo novo à sua estrutura? (CLARK, 1997, p. 219 et. seq.). Segundo Lygia Clark, as Máscaras sensoriais , de 1967, (Figura 14, p.52) seriam um meio de fazer o homem encontrar o fantástico dentro de si, pois ficava alheio ao mundo de que há pouco fazia parte. Pelo tato, sons e odores, o participante poderia ser levado “a um estado equivalente ao da droga” (CLARK, 1967, p.219), ao perder contato com a realidade externa. Feitas de tecido, as Máscaras sensoriais cobriam toda a cabeça, eram de diferentes cores (verde, rosa, azul, púrpura, cereja, branco e preto) e davam aos participantes um aspecto monstruoso. Eles tinham ouvidos e olhos tapados – por dispositivos que variavam de máscara para máscara, alterando a audição e a visão – e uma espécie de bico, que abrigava diferentes substâncias, como ervas aromáticas, para o estímulo olfativo. Esses objetos plurisensoriais, tanto podiam proporcionar momentos de integração com o mundo exterior, como “uma interiorização que chega ao isolamento absoluto” (CLARK, 1997, p.221). As máscaras permitem habitar um espaço intermediário entre o real e a fantasia, entre o exterior e o interior^27 : a artista utiliza o corpo para acessar a subjetividade do participante, que deve se readaptar à sua nova condição corporal/perceptiva; ele é levado a rever gestos, postura, maneira de andar e se comportar, a partir de uma simples intervenção no seu modo de estar fisicamente no mundo. As proposições Óculos e Diálogo: óculos , de 1968, (Figuras 15 e 16, p.52) são variações uma da outra e também funcionam como dispositivos que alteram as referências – aqui predominantemente visuais – que nos servem de apoio. A primeira proposição é para ser utilizada por uma só pessoa e, a segunda, como o próprio nome diz, estabelece um diálogo entre participantes e as imagens percebidas. Esses objetos são feitos a partir de óculos de mergulho que se conectam a lentes por uma sanfona de metal. A articulação das lentes feitas de espelho (com 5 cm de diâmetro), promove diversos pontos de vista, fragmentando a percepção visual do participante. Em Luvas sensoriais (Figura 17, p.53) o participante veste luvas de diferentes materiais tamanhos e com cada uma segura bolas de diferentes

  1. A experiência olfativa me transportou para outros lugares, lugares que percebi como um bicho à espreita, escondido. Se está dentro com o olhar para fora, tentando decifrar aquilo que a nova visão consegue captar.

dimensões e materiais variados. Depois de realizar as combinações possíveis entre as luvas e as bolas, deve-se fazer o mesmo com as mãos nuas, para que se redescubra o tato: “Esse ‘renascimento’ do tato é sentido com muita alegria, como se a pessoa estivesse ‘vivendo novamente’ a descoberta do próprio tato” (CLARK apud MILLIET, 1992, p.113). A casa é o corpo (Figura 18, p.53) foi uma instalação realizada em 1968, uma espécie de labirinto, formado pelos ambientes intitulados: penetração , ovulação , germinação e expulsão. Lygia Clark pretendia oferecer ao participante a experiência de estar dentro do próprio corpo. Dada a configuração de sua estrutura brevemente descrita a seguir, a passagem por tal recinto multisensorial parece simbolizar a exigência de uma recomposição / adaptação de si mesmo a partir de uma experiência com o ambiente. O participante entrava nessa estrutura de 8 metros de extensão, forrada por um tecido preto que dificultava a entrada de luz, e transitava por seus compartimentos. Na entrada, assim como entre os ambientes, havia tiras de elástico tencionadas que precisavam ser empurradas para o visitante passar, como um hímen complacente. Na primeira etapa, penetração , o chão de tecido – uma lona estendida um pouco acima do chão – e o ambiente escuro – uma cabine de madeira e tecido que cedia com o toque – davam uma sensação de desequilíbrio. Em seguida, passava pela ovulação , um outro compartimento com as mesmas características, mas repleto de balões coloridos, que eram movidos de lugar quando o participante passava por eles. Após sair da ovulação , entrava num espaço aberto, separado do exterior apenas pelo tecido, chamado germinação , onde havia uma enorme tenda transparente em forma de gota. Por último, o participante penetrava em expulsão , fechada como o primeiro compartimento, mas cheia bolinhas de vinil no chão e de “pêlos” pendentes do teto, inicialmente finos, mas que acabavam grossos quando próximo à saída. Após sair da estrutura, o participante se vê diante de um espelho que deforma seu corpo, num ambiente completamente iluminado. Disse Guy Brett: “Lygia Clark está sempre fazendo voltar às origens sua percepção sobre o aspecto exterior das coisas, de modo que você tome consciência de seu próprio corpo” (BRETT, 1986, p.121) 28 .

  1. Extraído de OITICICA, Helio. Aspiro ao grande labirinto , 1986.