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Características e Semelhanças nas Histórias Folclóricas 'Bicho de Palha' e 'Capa de Junco', Manuais, Projetos, Pesquisas de Cultura

Neste texto, apresentamos as características e semelhanças entre as históricas populares 'bicho de palha' e 'capa de junco'. A primeira, recolhida do folclore do rio grande do norte, brasil, por câmara cascudo, e a segunda, compilada do folclore inglês por jakobson. Ambas históricas apresentam personagens que, apesar de se disfarçarem, revelam suas verdadeiras identidades e colaboram com o 'fatum' para garantir o final feliz. Além disso, ambas contam com elementos da cultura brasileira, como a presença de um narrador minucioso e a humildade simbolizada pela palha e junco.

O que você vai aprender

  • Quais são as semelhanças entre as históricas 'Bicho de Palha' e 'Capa de Junco'?
  • Qual é a origem da história 'Bicho de Palha'?
  • Quais são os elementos da cultura brasileira presentes nas históricas 'Bicho de Palha' e 'Capa de Junco'?

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Botafogo
Botafogo 🇧🇷

4.5

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O CONTO “GATA BORRALHEIRA” EM DUAS VERSÕES POPULARES
Maria Antonia Granville (Unesp, São José do Rio Preto, SP)
Introdução
Os contos populares, também conhecidos como “contos maravilhosos” ou “de fadas”, têm
uma característica universal: estão presentes na tradição oral de todas as sociedades e grupos
étnicos e passam por adaptações determinadas por traços culturais peculiares a cada um dos
povos onde se fazem presentes.
Muitas vezes, porém,esses contos saltam fronteiras, em períodos históricos e em épocas
impossíveis de se determinar, e se aproximam de outras narrativas orais de povos que se
encontram a milhas e milhas de distância uns dos outros. A psicanálise atribui esse
fenômeno ao inconsciente coletivo. Mas este fator não faz parte desta discussão, e, sim, os
pontos de convergência e divergência entre as duas versões examinadas. Com este propósito,
apresentam-se, primeiramente, as características do conto popular “Bicho de Palha”,
recolhido por Câmara Cascudo da tradição oral do Rio Grande do Norte,
Brasil,acompanhadas de uma síntese da narrativa; e, em seguida, as da narrativa intitulada
“Capa de Junco”,compilada por Jakobson do folclore inglês,com um resumo desta. Em
seguida, apontam-se as semelhanças e diferenças entre uma e outra e, por fim, tecem-se
comentários referentes às versões analisadas.
1- Características da versão popular brasileira do conto “Gata Borralheira”, intitulada
“Bicho de Palha”, recolhida por Câmara Cascudo, 1956, da tradição oral do Rio
Grande do Norte (“apud “MACHADO, 1984: 46-48).
A versão acima identificada faz parte da tradição oral do Rio Grande do Norte e foi
compilada por Câmara Cascudo em 1956, por intermédio de sua esposa Dhalia Câmara
Cascudo, que, quando criança, costumava ouvi-la de sua babá. Trata-se, portanto, de uma
narrativa que assume o feitio de um conto infantil, transmitido por um adulto a uma criança,
provavelmente à noite, à hora de dormir, como para embalar-lhe o sono e os sonhos.
Aqui, apresenta-se, primeiramente, uma síntese do conto e, em seguida, suas principais
características.
Versão brasileira: “Bicho de Palha”(CÂMARA CASCUDO,1956,“apud” MACHADO,1984:
46-48).
BICHO DE PALHA era o apelido dado a Maria pelos criados com quem ela trabalhava no
palácio de um príncipe elegante e muito bonito. Ninguém sabia quem ela era realmente e de
onde viera e por que saíra de sua casa. Chamavam-na assim, porque ela vivia coberta por
uma capa de palha trançada, que lhe deixava à mostra somente os olhos. No palácio real, ela
limpava os aposentos e os banheiros dos criados. A jovem vivia calada, pouco conversava
com as pessoas com quem convivia. Mas amava, a distância, o príncipe. E, como era
trabalhadeira e não se importava com a vida alheia, deixavam-na ficar assim, anônima.
Mas o que ninguém sabia era que Maria, este era o verdadeiro nome de Bicho de Palha, era
filha de um rico comerciante que se casara novamente com uma viúva que também tinha
uma filha da mesma idade da enteada. E, para fugir dos maus-tratos da madrasta, a jovem
enteada resolveu fugir de casa. Antes, porém, seguindo o conselho de uma velhinha de
feições muito bondosas e serenas, com quem se encontrava sempre que ia lavar roupas no
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O CONTO “GATA BORRALHEIRA” EM DUAS VERSÕES POPULARES

Maria Antonia Granville (Unesp, São José do Rio Preto, SP)

Introdução

Os contos populares, também conhecidos como “contos maravilhosos” ou “de fadas”, têm uma característica universal: estão presentes na tradição oral de todas as sociedades e grupos étnicos e passam por adaptações determinadas por traços culturais peculiares a cada um dos povos onde se fazem presentes. Muitas vezes, porém,esses contos saltam fronteiras, em períodos históricos e em épocas impossíveis de se determinar, e se aproximam de outras narrativas orais de povos que se encontram a milhas e milhas de distância uns dos outros. A psicanálise atribui esse fenômeno ao inconsciente coletivo. Mas este fator não faz parte desta discussão, e, sim, os pontos de convergência e divergência entre as duas versões examinadas. Com este propósito, apresentam-se, primeiramente, as características do conto popular “Bicho de Palha”, recolhido por Câmara Cascudo da tradição oral do Rio Grande do Norte, Brasil,acompanhadas de uma síntese da narrativa; e, em seguida, as da narrativa intitulada “Capa de Junco”,compilada por Jakobson do folclore inglês,com um resumo desta. Em seguida, apontam-se as semelhanças e diferenças entre uma e outra e, por fim, tecem-se comentários referentes às versões analisadas.

1- Características da versão popular brasileira do conto “Gata Borralheira”, intitulada “Bicho de Palha”, recolhida por Câmara Cascudo, 1956, da tradição oral do Rio Grande do Norte (“apud “MACHADO, 1984: 46-48).

A versão acima identificada faz parte da tradição oral do Rio Grande do Norte e foi compilada por Câmara Cascudo em 1956, por intermédio de sua esposa Dhalia Câmara Cascudo, que, quando criança, costumava ouvi-la de sua babá. Trata-se, portanto, de uma narrativa que assume o feitio de um conto infantil, transmitido por um adulto a uma criança, provavelmente à noite, à hora de dormir, como para embalar-lhe o sono e os sonhos. Aqui, apresenta-se, primeiramente, uma síntese do conto e, em seguida, suas principais características.

Versão brasileira: “Bicho de Palha”(CÂMARA CASCUDO,1956,“apud” MACHADO,1984: 46-48).

BICHO DE PALHA era o apelido dado a Maria pelos criados com quem ela trabalhava no palácio de um príncipe elegante e muito bonito. Ninguém sabia quem ela era realmente e de onde viera e por que saíra de sua casa. Chamavam-na assim, porque ela vivia coberta por uma capa de palha trançada, que lhe deixava à mostra somente os olhos. No palácio real, ela limpava os aposentos e os banheiros dos criados. A jovem vivia calada, pouco conversava com as pessoas com quem convivia. Mas amava, a distância, o príncipe. E, como era trabalhadeira e não se importava com a vida alheia, deixavam-na ficar assim, anônima. Mas o que ninguém sabia era que Maria, este era o verdadeiro nome de Bicho de Palha, era filha de um rico comerciante que se casara novamente com uma viúva que também tinha uma filha da mesma idade da enteada. E, para fugir dos maus-tratos da madrasta, a jovem enteada resolveu fugir de casa. Antes, porém, seguindo o conselho de uma velhinha de feições muito bondosas e serenas, com quem se encontrava sempre que ia lavar roupas no

rio, ela fez uma capa de palha trançada, cobriu-se com ela, apanhou umas poucas roupas, fez uma trouxa com essas, pegou a varinha de condão que a bondosa senhora lhe deu, para ser usada em caso de muita necessidade, e foi-se para o outro lado da cidade, onde estava o palácio do príncipe. Como lá precisavam de alguém para limpar os aposentos e banheiros dos criados, foi logo empregada. Lá, como já se informou, ganhou o apelido de “ Bicho de Palha”. Um dia, o príncipe, que já estava em idade de casar-se, resolveu, de comum acordo com a rainha sua mãe, dar, durante três noites seguidas, um grande baile. Na última noite, escolheria, entre as jovens presentes, sua futura esposa. Assim sendo, todas as jovens do reino, sem distinção de classe social, foram convidadas. A notícia agitou todos os moradores das redondezas, principalmente as jovens casadoiras. Não foi diferente com as que trabalhavam no palácio do príncipe. Apenas Bicho de Palha mantinha-se quieta e indiferente no seu canto. O dia do grande baile chegou, com muita movimentação e expectativa por parte de todos. As outras criadas, bem antes do pôr-do-sol, já se haviam retirado para seus aposentos para se preparar para a festa. Somente Bicho de Palha ficou disponível para servir ao príncipe. Ele lhe pediu que lhe trouxesse uma bacia com água, a fim de banhar-se e vestir-se pára o baile. Mal o jovem saiu, Bicho de Palha pegou a varinha de condão que a bondosa velhinha lhe dera, quando saiu da casa do pai, e, comandando-a como a senhora lhe instruíra, pediu-lhe que lhe desse um vestido cor do campo com todas as suas flores. Bem vestida e calçada, foi ao baile em uma vistosa carruagem. Sabia que o encantamento terminaria à meia-noite em ponto. Portanto, não poderia atrasar-se para retornar aos seus aposentos. O príncipe, mal a viu, apaixonou-se, pois não havia moça mais bonita e mais bem vestida que ela. Quando ele lhe perguntou onde morava, ela lhe respondeu: “Moro na Rua das bacias”. E assim foram as outras duas noites restantes: na segunda, ao preparar-se para a festa, o príncipe pediu a Bicho de Palha que lhe levasse uma toalha, e, na terceira e última noite, um pente. E ela compareceu aos bailes, cada noite com um vestido diferente. E a cada uma dessas, o príncipe lhe perguntava novamente onde morava. E ela lhe respondia: “Moro na Rua das Toalhas” (segunda noite do baile) e “Moro na Rua dos Pentes” (terceira noite). Na terceira e última noite, atrasou-se alguns segundos para sair da festa, e, na pressa, perdeu um dos sapatinhos de cristal. Um dos criados do príncipe o achou e o levou à Sua Alteza, que imediatamente ordenou que procurasse3m a misteriosa dona dos sapatinho por todo a reino e região. Finalmente, Bicho de Palha foi encontrada exatamente no palácio do príncipe. Sua identidade foi revelada, e ela se casou com o seu amado. E a varinha de condão, cumprida sua missão, voou para o Céu, para a bondosa velhinha de feições meiga, que era Nossa Senhora, a madrinha e protetora de Maria.

Principais características do conto “Bicho de Palha, enumeradas a seguir:

1-Presença de um narrador minucioso, meticuloso, que descreve personagens, atitudes destas, cenários e situações com toda a riqueza de detalhes. Ex: Na passagem em que o Príncipe inicia a busca da misteriosa dona do sapatinho, o narrador assim nos informa: “(O Príncipe) mandou levar o sapatinho a todas as casas, calçando-o em todos os pés. Quem o usasse, perfeito, nem largo nem apertado, seria a encantadora menina do baile” (p. 47). “Os criados andaram rua acima e rua abaixo, calçando o sapatinho nos pés das moças das velhas. Nenhuma conseguia dar um passo só com ele no pé” (p. 47).

“O Príncipe precipitou-se, abraçando-a e chamando por sua mãe para que conhecesse a futura nora.” (p. 48).

Versão inglesa : CAPA DE JUNCO (JAKOBS, 2002: 57-62).

Síntese da narrativa :

CAPA DE JUNCO era uma jovem assim chamada assim pelos criados de um moço muito rico, em cuja mansão ela trabalhava como ajudante de cozinha. A moça ganhara esse apelido dos seus colegas, porque ela sempre se vestia com uma capa de junco trançado, que lhe deixava à mostra apenas os olhos. O que ninguém sabia, porém, é que Capa de Junco era filha de um senhor muito rico,que morava com suas três herdeiras em um dos países vizinhos. Amava a todas, mas sua preferida era a terceira, o que provocava o ciúme da mais velha e o da segunda. Certo dia,porém, Cordélia, este era o nome de batismo de Capa de Junco, foi expulsa de casa pelo próprio pai, que a julgara desnaturada e sem coração, quando ele, querendo dividir seus bens entre suas três filhas e desejando deixar a maior parte àquela que o amasse mais que as duas outras, fez a cada uma delas esta pergunta : “O quanto você gosta de mim, minha querida? Como Cordélia lhe respondeu que o amava tanto como a carne fresca ama o sal, o ancião sentiu-se injuriado e desprezado pela caçula e, amaldiçoando-a, colocou-a dali para fora.. E assim, muito triste e lamentando o modo como o pai interpretara mal suas palavras, a jovem saiu da casa paterna, trajando três dos seus vestidos mais belos, um sobre o outro, e com suas jóias mais valiosas, mas tendo o cuidado de cobrir-se com uma capa feita de junco trançado, para não chamar a atenção das pessoas e para não ser reconhecida por ninguém. E assim estranhamente vestida e disfarçada foi até um dos reinos vizinhos, onde logo arrumou serviço como ajudante de cozinha em uma mansão de um rico senhor, pai de um rapaz muito bonito e garboso, já em idade de casar-se. Ali, ela foi aceita como empregada doméstica e ficou encarregada de lavar as panelas e arear as caçarolas que a cozinheira usava para preparar as refeições. Lá na cozinha, das janelas que davam para o pátio da esplendorosa mansão, via o jovem seu patrão, que não lhe dava a mínima atenção. Ela era somente uma das suas criadas. Mas Capa de Junco, como ali ela era chamada, aos poucos, foi-se apaixonando pelo jovem rico. Mas permanecia no seu lugar, sem revelar a ninguém sua verdadeira identidade. Um dia, a mãe do rapaz decidiu dar uma festa na mansão. Seriam três dias de danças e banquetes. Todos os reis e pessoas influentes daquela localidade e dos países vizinhos foram convidados. O jovem, que já estava em idade de casar-se, deveria escolher, entre as moças presentes, sua futura esposa. Toda a mansão se movimentou para a grande festa. Capa de Junco trabalhou muito, ao lado da cozinheira, durante todos os preparativos para os três dias de baile. Mas havia decido participar das festas. Assim, quando, na primeira noite de baile, terminou suas tarefas na cozinha, rapidamente se dirigiu aos seus aposentos, banhou-se e escolheu um dos vestidos que levara quando deixou a casa paterna. Com ele, com algumas de suas jóias e com um diadema nos cabelos, ninguém a reconheceria como Capa de Junco. Logo que chegou ao baile, atraiu a atenção do jovem patrão, que somente com ela dançou a noite toda. O rapaz estava encantado com a misteriosa dama que, antes da última badalada da meia-noite, desapareceu como que por encanto. Inutilmente o jovem procurou, por sua cidade e pelas demais, circunvizinhas, pela encantadora jovem com quem dançara na noite anterior. Por melhor que a descrevesse, ninguém sabia dar-lhe notícias a esse respeito.

Nas duas noites seguintes, os fatos sucederam-se como os do primeiro baile: Capa de Junco esperou todos se dirigirem ao salão de festas e, ficando sozinha, foi para os seus aposentos onde se arrumou e dirigiu-se, em seguida, para o salão. Como sempre, esteve deslumbrante! Na última contradança do terceiro e último baile programado, o jovem deu-lhe de presente um anel de brilhantes e lhe disse que “ morreria se não a visse novamente”(op.cit.,p.59). Em vão o rapaz procurou, no dia seguinte, pela misteriosa jovem, mas nem sinal! Ninguém sabia quem era e nem onde morava. Amargurado, o jovem, pouco a pouco, foi-se deixando abater até cair enfermo. Seu pai e seus amigos mais íntimos faziam de tudo para erguer-lhe o ânimo,porém inutilmente. Nada conseguia devolver-lhe a vontade de viver. E o rapaz se tornava, a cada dia, mais deprimido. Um dia pediu que a cozinheira preparasse um mingau para o filho que se encontrava bastante debilitado. Capa de Junco, que estava na cozinha, ouviu o pedido e insistiu com a cozinheira para que a deixasse fazê-lo. Após muito insistir, conseguiu autorização para prepará-lo. Ao colocá-lo no prato, porém, deixou cair o anel de brilhantes que o jovem lhe dera. Quando o rapaz foi comer o mingau, engasgou-se com o anel. Logo reconheceu-o como o que havia dado à misteriosa jovem por quem se apaixonara. Ordenou, então, que chamassem a cozinheira, e esta, com medo de ser castigada, contou-lhe que o mingau fora feito por Capa de Junco, a moça que a ajudava na cozinha. Radiante, o rapaz mandou que Capa de Junco viesse à sua presença. Ela atendeu ao chamado, mas, antes, vestiu-se como na terceira noite de baile e colocou a capa por cima. Na presença do rapaz e da mãe dele, esclareceu-lhes quase tudo, menos o nome de seu pai. Foi marcado, então, o dia do casamento. Todos os nobres e pessoas abastadas das cidades vizinhas foram convidados. Também o pai de Capa de Junco. Chegou o dia das bodas. Por solicitação de Capa de Junco, as carnes que seriam servidas durante o banquete não foram temperadas com sal. A cozinheira estranhou muito esse pedido e esse costume, mas, como, dali para frente, Capa de Junco seria sua patroa, calou-se e fez como ela lhe pedira. Durante o banquete, ao serem servidas as carnes, ninguém conseguia comê-las: estavam insípidas, sem sabor. Muito aborrecido, o rapaz e o pai dele queriam castigar a cozinheira, mas Capa de Junco assumiu a culpa e confessou que a empregada assim agira por ordem dela. Enquanto falava, lágrimas rolavam dos olhos daquele que era seu pai. Quando o rapaz perguntou ao rico senhor por que chorava tanto, ele lhe respondeu que era de saudade e remorso pela que fizera à sua filha caçula. Ele a expulsara de casa, porque ela lhe respondera que o amava tanto quanto a carne fresca ama ao sal. E ele, julgando-a ingrata e sem amor filial no coração, cometera o erro de mandá-la embora.Somente agora compreendia o significado daquela comparação feita pela filha, mas, tarde demais, porque, talvez, ela já estivesse morta(cf. op.cit.,p.61-62). Capa de Junco, então, penalizada com o sofrimento do pai, abraçou-o e revelou ser a filha que ele julgava ter perdido. Perdoou-o, e todos foram felizes para sempre.

Características do conto:

1- Narrativa semelhante à do Rei Lear (Shakespeare, 1605-1606),soberano bretão, envolvendo suas três filhas,cujo amor por ele o Monarca põe à prova com esta pergunta dirigida a cada uma delas,particularmente : “O quanto você gosta de mim, minha querida?”. O conto “Capa de Junco” enfatiza, assim, a fidelidade do amor filial (o da terceira filha do Rei,Cordélia), capaz de suportar o ciúme doentio das irmãs, o que a fez sair de casa disfarçada com uma capa de junco,e, ainda,as provações e os serviços mais humildes, tudo

“Dizei-me, minhas filhas, desde agora, desejamos despojar-nos ao mesmo tempo da autoridade, dos interesses territoriais e cuidados com o governo, qual de vós, repito, gostais de nós? Que nossa generosidade se estenda para aquela cujos sentimentos naturais mereçam maior recompensa.” (Rei Lear, Cena I: 30). O objeto condutor do jovem/príncipe à heroína difere entre as versões: na brasileira, é o sapatinho; na inglesa, o anel. Aliás, o anel aparece também na versão sergipana de “Gata Borralheira”, recolhida por Sílvio Romero (1883); Na versão brasileira, ocorre, ainda, a intervenção de uma entidade dotada de poderes sobrenaturais, como o é a “Velhinha de feições serenas e muito boa” que aconselha Bicho de Palha” e lhe dá a varinha de condão para que ela a use somente em “caso de necessidade e precisão”. Na inglesa, não aparece entidade dotada de poderes encantatórios” Outro diferencial a ser apontado é a “Prova de amor filial” exigida pelo pai de Capa de Junco (versão inglesa), e a inexistência dessa em “Bicho de Palha”, versão brasileira. Outra diferença é a da presença paterna mais presente em “Capa de Junco”, e a de um pai mais ausente em “Bicho de Palha”. Em “Capa de Junco”, o Rei não se casa novamente, externando, assim, uma fidelidade incondicional à sua família (limitada às suas três filhas), ao passo que em “Bicho de Palha”, sim. O pai dela, próspero comerciante, contrai novas núpcias. Ainda se destaca como diferencial a participação do pai de Capa de Junco no casamento dela e a ausência ou não-participação do pai de Bicho de Palha do casamento da filha com o Príncipe.

4-Comentários finais:

As duas versões populares dos denominados contos de fadas ou infantis, de que “Gata Borralheira” é um exemplo, permitem ao leitor constatar que existem elementos comuns que aproximam umas das outras essas versões cultivadas pela tradição oral de diferentes povos ou etnias, o que faz supor um inconsciente coletivo em que elementos ou traços semelhantes presentes nesses modos de narrar subjazem, independentemente do espaço geográfico, da língua e cultura que lhes deu forma. Como esses ultrapassaram fronteiras e como chegaram até aqui, não se sabe. Sabe-se apenas que a cultura peculiar de cada povo acrescentou-lhe novos ingredientes, deu-lhe sua marca característica ou peculiar e que continuam a encantar gerações sucessivas de crianças e adultos. No caso específico das versões brasileira e inglesa de “Gata Borralheira”, aqui apresentadas, verifica-se que os conceitos de humildade, submissão, resignação e amor filial nelas trabalhados refletem os valores que cada uma dessas sociedades considerava importante, em determinado momento histórico-cultural vivenciado por elas. Espelham, também, usos e costumes próprios de cada uma. Na brasileira, como já se colocou, transparece o gosto pela narrativa longa e detalhada, entretecida pelo misterioso (a verdadeira identidade da “Velhinha de feições bondosas e meigas”, por exemplo, somente é revelada no final da narrativa), ou pelo enigmático (como em “Moro na Rua das Bacias”), com ênfase na recompensa final (o casamento com o príncipe) concedida àquelas que forem bondosas, humildes, submissas como a heroína Maria. Na inglesa, ressalta-se a saga de Cordélia, a filha mais nova de um rico e gentil homem( talvez, um nobre bretão), que coloca à prova o amor de suas herdeiras por ele. Nesta, muito mais que a recompensa final,o casamento com um belo rapaz, enfatiza-se o amor filial e incondicional de uma filha a seu pai. Mas, entre todas as características ou propriedades narrativas que lhes são peculiares e típicas, ressalta-se, em ambos os contos, a sagacidade e presença de espírito das protagonistas, ao colaborarem com a trama e ao trabalharem em seu próprio favor. Não são personagens passivas. Ambas colaboram para um final feliz.

Referências bibliográficas:

JAKOBS, Joseph. Contos de fadas ingleses. Tradução Inês A. Lohbauer. São Paulo: Landy, 2002, 57-62. CÂMARA CASCUDO, Luís da. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Ed. Itatiaia e Ed. da USP, 1994. ___. Literatura oral no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia/São Paulo: Ed. da USP, 1984 (Reconquista do Brasil: nova série, 84). MACHADO, Irene A. Literatura e redação. São Paulo: Scipione, 1994, p. 46-48.