










Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Este documento analisa a obra de josé de anchieta, um jesuíta espanhol que viveu no brasil colonial e produziu uma obra literária singular com fins catequéticos. Ao longo de sua vida, anchieta escreveu teatro, poemas, cartas e sermões, utilizando suas habilidades literárias para ajudar a converter os indígenas ao cristianismo e a consolidar a presença portuguesa no brasil. O documento examina as características da obra de anchieta, sua relação com a literatura jesuíta e brasileira, e sua contribuição para a história do brasil.
Tipologia: Resumos
1 / 18
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
A obra de José de Anchieta ocupa uma posição curiosa diante da crítica literária brasileira. Por uns é considerado, se não fundador^1 , ao menos precursor^2 de nossa literatura. Outros sequer encontram nela qualidades literárias, apresentando-a em uma categoria de obra de catequese.^3 Há, ainda, aqueles que tomam a obra anchietana com um fervor apologético, e sobre ambos – autor e obra – escrevem motivados pela devoção ao beatinho corcós, dono de qualidades que já em vida lhe reservavam um lugar de santidade. Fato é que Anchieta produziu uma obra literária de características singulares na medida em que foi ostensivamente colocada a serviço de uma causa à qual aderira por nascimento e vocação. Neste sentido, comungo com a crítica que lê a obra anchietana em suas dimensões histórico-política, identificando o jesuíta como o fez Alfredo Bosi que o designou como nosso “primeiro intelectual militante” (Bosi, 1994, p. 93) e com José Paulo Pais que, em 1955, já designava o jesuíta como “nosso primeiro poeta político, ou interessado, ou engajado , se preferem”^4. Ainda que a finalidade da obra de Anchieta fosse prioritariamente catequética, o jesuíta soube utilizar seus dotes de literato também nos relatos feitos em suas cartas e na escrita dos sermões que pregou. Com isso, produziu
(^1) Cf diz Afrânio Coutinho: “Com a valorização da literatura jesuítica, já agora amplamente conhecida, avulta o significado da obra de Anchieta, situado o doce evangelizador do gentio, como o fundador da literatura brasileira”. COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Vol. I. 2 Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana S.A., 1968, p. 131, grifo meu. Clóvis Monteiro e Silvio Romero, ambos citados por Nelson Werneck Sodré em sua História da Literatura Brasileira, compartilham essa opinião. Diz o autor: “Clóvis Monteiro situa o problema anchietano com propriedade (...) Mas é este mesmo ensaísta que compreende a impossibilidade de fixar no canarino um início de literatura brasileira: ‘não se pode propriamente dizer que a produção literária do padre Anchieta constitua o início da literatura brasileira. Se o Brasil ainda não existia como nação, não é lícito se vá procurar nessa época a origem de sua literatura. Anchieta foi um precursor, como bem entendeu Sílvio Romero, (...)’” SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira. Seus fundamentos econômicos. 3 4ª ed. Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira. 1964, p. 81, grifo meu. Como exemplo, José Veríssimo citado por Jorge de Souza Araújo: “José Veríssimo (...) decreta não haver intuitos nem qualidades literárias na obra anchietana, feita sem unidade de estilo ou sequer de língua (...). ARAÚJO, Jorge de Souza. Pegadas na praia. A obra de Anchieta em suas 4 relações intertextuais. Editora UESC. Ilhéus. 2003, p. 203. José Paulo Pais, citado por Nelson Werneck Sodré em sua História da Literatura Brasileira. A citação completa poderá ser encontrada no texto deste capítulo, item “Inserção no mundo”.
uma obra multifacetada em gêneros, sempre mantendo o olhar firme e fixo em suas intenções últimas. A produção literária de Anchieta compreende teatro, poemas, cartas e sermões. Toda ela foi empreendida em terras brasileiras, no período entre 1553, quando aqui chegou, a 1597, quando morreu, em 9 de junho. Nos 44 anos que aqui viveu, o jesuíta nunca descansou. Seu trabalho na colônia envolvia as atividades relacionadas com a missão religiosa, o que, em tempos de estrita relação entre Coroa e Igreja, considerava também uma intensa atividade política, de desbravamento e dominação da nova terra e dos nativos aqui encontrados. A origem desta pesquisa está na pergunta “Poderíamos chamar Anchieta de escritor ou intelectual engajado, no sentido em que o termo foi apropriado no primeiro quinquênio do século XX?” Para respondê-la foi necessário lançar luzes sobre os lugares histórico, político e social ocupados pelo jesuíta e suas respectivas influências em sua obra literária. Este percurso foi fundamental para identificar o homem, o escritor, seu tempo, suas motivações, a recepção efetiva de sua obra por seus destinatários e leitores e, finalmente, o seu posicionamento em relação às causas as quais aderiu.
O homem e a história
Os primeiros relatos sobre a vida e obra de Anchieta datam dos séculos XVI e XVII^5. Quando chegou ao Brasil em 1553, o jesuíta tinha 19 anos de idade e era noviço da Companhia de Jesus. Vinha de Coimbra, onde se encontrava enfermo; acreditava-se que os ares da colônia poderiam lhe restituir a saúde – o que de fato aconteceu. Desembarcou em Salvador e de lá seguiu para São Vicente designado para trabalhar diretamente com o Pe. Manuel da Nóbrega, então Superior Provincial. Inicialmente, foi o responsável pela escrita das cartas da Província, mas logo também se ocupou de outros tantos trabalhos necessários à colonização da nova terra, destacando-se a evangelização dos índios. Foi a partir
(^5) A primeira biografia de Anchieta foi escrita por Quirício Caxa, SJ, ainda em 1597.
desqualificados, assoldados de donatários, capitães-mores e conquistadores, tratantes ávidos de novas mercancias, clérigos de nenhuma virtude, gente suspeita à política da metrópole, além de homiziados, degradados, eram, em sua maioria os componentes da sociedade portuguesa para aqui transplantados. (Veríssimo, 1963, p. 24)
Além dessas características, o colono estava interessado em seu próprio enriquecimento, o que agravava um quadro social onde a atividade intelectual era praticamente inexistente. Efetivamente, um movimento intelectual – ainda que precário, se consideramos a situação de uma colônia à qual não chegavam livros, nem para onde vinham pensadores ilustres – só foi iniciado com a chegada dos padres jesuítas. Diz Nelson Werneck Sodré:
Pela sua formação e pela finalidade de seu mister, os padres [jesuítas] eram dotados de indiscutíveis condições intelectuais, que empregavam, na medida do possível, na tarefa da catequese. (Sodré, 1964, p. 56)
Mas, o que dizer sobre os índios? Primeiros habitantes da terra, os índios que aqui viviam em um estágio tribal primitivo, possuíam práticas culturais e religiosas próprias. Se, em um primeiro momento, a tudo diziam “sim sem grande resistência”^7 , rapidamente viram-se confrontados com os colonizadores por sua busca incessante em fazê-los escravos^8. É a partir dessa luta contra a escravização que explodirão os primeiros conflitos. Para dirimi-los, chega ao Brasil, em 1549, a expedição de Tomé de Souza e com ele os primeiros jesuítas. Naquele momento, a perspectiva da Coroa era a de que com o amansamento dos rebeldes a partir da imposição de uma nova fé (e com ela uma nova ordem moral), seria possível retomar os projetos econômicos para a Colônia. No instigante livro Os Brasis de Uruçumirim , de Edson Monteiro, apresentado por ele mesmo como uma “prosa histórica”, encontra-se uma citação elucidativa a esse momento particular:
A Companhia de Jesus, como um exército sem armas brancas ou de fogo, deveria constituir “missões” – os seus quartéis – desenvolver “pregações” – sua instrução
(^7) V. a esse respeito TAPIA, Extremera N., “Anchieta e Nóbrega: Jesuítas fazendo a história do Brasil”, in BINGEMER, M.C., MAC DOWELL, J.A., NEUTZLING, I. (org). A Globalização e os Jesuítas. Origens História e Impactos. Vol. I. São Paulo. Edições Loyola. 2007, p. 213- 8 265. A prática da escravidão era comum em Portugal, dadas as experiências anteriores da Metrópole nas ilhas do Atlântico e na África. Portanto, escravizar índios não trazia aos portugueses nenhuma inquietação de ordem moral. Era apenas prática comum.
disciplinar – e fundar unidades de ensino – suas escolas de formação a serviço do catolicismo. A função política da Companhia de Jesus surgirá naturalmente quando os reinados fiéis à Igreja, desejosos da manutenção dos seus recursos e domínios, apelarão para o papado, dando-lhe a oportunidade de expansão da fé que prega, ao mesmo tempo em que tentarão, por contrapartida, o amansamento das feras brancas e nativas dos rincões descobertos e conquistados. (...) (monteiro, 2000, p.
Cinco anos após a chegada de Tomé de Souza – com o qual viera o Pe. Manoel da Nóbrega, primeiro provincial do Brasil e exímio articulador político – chegava Anchieta. Vivendo no século XVI, período ainda marcado pelo Cristianismo medieval ibérico e, inserido em uma instituição religiosa com a envergadura da Companhia de Jesus, que no Brasil colônia representava a fonte do pensamento intelectual, Anchieta vai deixar transparecer em sua obra a dualidade que experimentava em si mesmo. Alfredo Bosi, em seu ensaio “Anchieta ou As Flechas Opostas do Sagrado”, publicado em Dialética da Colonização , alude exatamente a essa situação, dizendo sobre o jesuíta:
O caso de Anchieta parece exemplar (...). O fato de ter vivido inspirado pela sua inegável boa-fé de apóstolo apenas torna mais dramática a constatação desta quase-fatalidade que divide o letrado colonizador em um código para uso próprio (ou de seus pares) [o autor refere-se aqui à poesia anchietana] e um código para uso do povo [refere-se aqui ao teatro]. Lá o símbolo e a efusão da subjetividade; aqui, o didatismo alegórico rígido, autoritário. Lá a mística da devotio moderna ; aqui a moral do terror das missões. (...) (Bosi,1994, p. 93)
Diante desse quadro, Anchieta irá se destacar como um intelectual capaz de produzir uma obra que concentra as intenções da colonização e, ao mesmo tempo, os arroubos apaixonados do missionário. Mas, o aspecto que parece ser o mais importante foi o de ter conquistado um público para sua obra, o que lhe conferia o status privilegiado, que lhe possibilitava a transformação da mentalidade instalada até então. Em sua produção literária encontramos, além de flagrantes da vida no Brasil em seus primeiros momentos, relatos impregnados de poesia e fervor devocional. Contudo, lá também estão ironia, desqualificação e desprezo para com a cultura indígena e com os vícios dos colonos. Mesmo que não tenha tido a eloquência que, anos mais tarde, seu irmão de Ordem Antônio Vieira demonstraria, a apresentação de seus autos eram ocasiões de acontecimento
indígenas e brancos que, à distância da Coroa prejudicavam com suas atitudes os interesses do dominador” (Monteiro, 2000, p.21, grifos do autor). Desta forma, o que Anchieta encontrou quando aqui aportou, foi uma sociedade marcada por conflitos, pelo medo do desconhecido, pela devassidão moral e pela violência. Por isso, sua obra será marcada pela aproximação de elementos religiosos das duas diferentes culturas aliados aos fatos da vida social cotidiana. Além disso, nela também são perceptíveis a preocupação com seus destinatários ou leitores, o emprego do lúdico, a utilização de uma pedagogia pastoral (em seu sentido catequético) e a forma peculiar de relatar e documentar acontecimentos conferindo-lhes grandiosidade. O jesuíta, contudo, excedia e fazia tudo isso em um exercício permanente de justificação do processo colonizador. O Capítulo 3 trata da análise da obra literária anchietana, apresentada através dos diversos gêneros que o padre produziu. Seu enfoque principal está voltado mais para a contribuição desta obra ao processo de colonização que as suas dimensões estética e linguística. Esta visada é o que permite a abertura de caminhos para encontrar respostas para a questão original deste estudo, ou seja a possibilidade de se analisar a perspectiva de engajamento da obra de Anchieta e de sua atuação como um intelectual de seu tempo.
Cartas
O primeiro trabalho de Anchieta nas novas terras foi o de epistológrafo da Província. Reunida, a correspondência ativa e passiva do jesuíta compõe um total de 63 cartas, escritas entre 1553 e 1596. São textos que tratam de diferentes assuntos: relatos de êxitos e fracassos, trabalhos empreendidos, necessidades, o desenvolvimento da colônia, a expansão portuguesa, conquistas... Em comum, a percepção das mãos de Deus e da Virgem Maria que os guiava: marcas da fé e da obediência à Igreja e a El-Rei. As cartas de Anchieta constituem um documental importante e imprescindível para o resgate da História do Brasil, sendo possível conhecer através delas fatos como as fundações do Rio de Janeiro e São Paulo,
desfechos de conflitos e outros empreendimentos políticos e apostólicos cujos efeitos ainda hoje subsistem em diferentes localidades brasileiras. Em particular, contém as marcas da escrita epistolar anchietana, que entremeia relatos e observações absolutamente documentais, com indícios de uma experiência pessoal daquilo que a princípio poderia ser tratado com distanciamento científico ou protocolar, e não o é. É comum encontrarmos em suas linhas, um Anchieta maravilhado com a beleza natural da terra ou encantado com os pequenos prodígios que conquista. Em contrapartida, pouco revelam sobre sua pessoa. O homem José dilui-se nos deveres que cumpre para a congregação da qual faz parte, mostrando-se apenas naquelas linhas mais poéticas. Pouco menciona sobre suas dores ou conflitos interiores e também pouco revela sobre a intimidadesde seu dia-a-dia. Ainda assim, é possível extrair daquelas pontos específicos que testemunham o grau de envolvimento político entre a Companhia de Jesus e a Coroa e outros que indicam a transformação sofrida por Anchieta ao longo de sua vida, em seu modo de ver e perceber o povo indígena. É sobre esses dois aspectos que me deterei na análise de sua epistolografia que apresento no Capítulo 3.
Sermões
O volume que reúne os sermões anchietanos informa um total de 20 textos, entre sermões, exortações e panegíricos. Contudo, nem todos foram recuperados. Em muitos casos resta apenas a respectiva notícia, extraída das crônicas da Companhia de Jesus. O primeiro sermão pregado por Anchieta, já sacerdote, teria sido o datado de 25 de janeiro de 1568, em Piratininga, na festa da Conversão de São Paulo. A ele é atribuída a conversão de João Ramalho, importante inimigo do Governador Geral e dos jesuítas^10.
(^10) Sobre isso cito o Pe. Helio Viotti, na Introdução comentada que faz ao livro dos Sermões , da coleção das Obras Completas de Anchieta, que relata: “O sermão de Anchieta [Sermão da Conversão de São Paulo, em 25 de janeiro de 1568] (...) despertou, sem dúvida gerais comentários.
A poesia
Anchieta escreveu poemas em português, espanhol e tupi, provavelmente todos produzidos entre 1563 e 1595. Sobre eles, cito Jorge de Souza Araújo:
Anchieta dramatizava e liricizava elementos de uma poética para os nunca- iniciados de uma América exótica e colonos rudes, cuja assimilação, precaríssima, no entanto persistia em cativar para os objetivos da catequese e do projeto colonizador. Por esse motivo, o léxico anchietano é limitado às usanças do vocabulário cotidiano que aos poucos todos assimilam, enquanto que a sintaxe se reduzirá a expressões convencionais da fala simples e espontânea. (Araújo, 2003, p. 282)
Trata-se, portanto, de uma poesia simples, sem pretensões maiores que as de difundir a fé e fixá-la através de um ritmo próprio. As composições eram declamadas durante atos litúrgicos ou religiosos e, assim, ia inculcando no povo as histórias de santos, o fervor devocional e outros valores da fé católica. Destaca-se, também, a produção de dois poemas épicos, ambos escritos em latim: De Gestis Mendi de Saa (Os feitos de Mem de Sá) e De Beata Virgini dei Matre Maria (Poema da Virgem). O primeiro foi escrito em homenagem ao Governador Geral Mem de Sá e teria sido enviado diretamente ao Governador, como prova de afeição da Companhia; e, não teve qualquer impacto sobre o empreendimento catequético.O outro conta a vida e as glórias da Virgem Maria, devoção especial de Anchieta. Foi composto durante o período em que ficou refém dos índios tamoios, em Iperoig. Também pouco impacto catequético produziu este poema, apesar de possibilitar leituras peculiares, em que sobressaem desde o forte caráter exegético-litúrgico até o biográfico. A poesia anchietana foi aqui estudada a partir de uma visão menos estética ou linguística e mais voltada para o que ela ofereceu de possibilidades de transmissão da fé e dos simbolismos cristãos, avaliando-se, também, a sua recepção e o impacto sobre o povo.
O teatro
É atribuída a Anchieta a autoria de 12 autos teatrais. O primeiro escrito em 1561, a pedido do Pe. Manuel da Nóbrega, intitulado “Na festa do Natal” ou, como ficou mais conhecido, “Auto da pregação universal” foi representado por toda a costa, durante anos. O último, “Na visitação de Santa Isabel”, foi composto para a abertura da Santa Casa de Misericórdia de Vila Velha, Espírito Santo, ocorrida em 02 de julho de 1597. O jesuíta já era falecido quando esta peça foi apresentada. Anchieta escrevia conforme o auditório a que se destinava: se este era restrito aos colégios, escrevia em latim ou em espanhol; se ganhava as ruas, utilizava o português e o tupi. Além disso, os autos possuíam uma estrutura particular, praticamente repetida em todos eles: cinco atos, divididos “em saudação, diálogo no adro da igreja, desenvolvimento do diálogo, dança e despedida” (Cardoso in Anchieta, 1977, p. 235). Essa estrutura era extraída de diversas cerimônias indígenas, que costumavam celebrar a chegada de personalidades em suas aldeias. Porém, possui uma característica repetitiva e oral, bastante útil quando se trata de “incutir e reforçar idéias como a fé em Cristo e o temor de Deus” (Mindlin, 1997, p. 34). Anchieta produziu, enfim, um conjunto de autos cuja intenção nunca foi artística, mas que excedeu em termos catequéticos, revelando-se como um método adaptado às exigências de seu público, com uma incrível capacidade de produção de sentido e presença e, sobretudo, dotado de uma estrutura harmônica e clara que não deixava dúvidas sobre qual era a mensagem que transmitia. O teatro de Anchieta foi analisado a partir de uma leitura que perpassa sua capacidade de produzir sentido e presença. Assim, pretendo avaliar a sua recepção na perspectiva de ter sido um efetivo instrumento de estabilização, questionamento e mudança qualitativa das estruturas sociais vigentes.^12
(^12) Cf. GUMBRECHT, Hans Ulrich. “Consequências da estética da recepção. Um início postergado”. In: ROCHA, João (org.) Corpo e forma: ensaios para uma crítica não hermenêutica. Rio de Janeiro: EduErj, 1998, p. 42.
o conceito que cunhou continha variáveis que aproximavam a literatura – ou o processo da escrita literária – a uma ação de combate ou resistência à violência imputada ao povo pela guerra. Mais, em plena era de partição do mundo em capitalismo e socialismo, a ideia de engajamento foi paulatinamente aproximada de uma obrigatória adesão político-partidária; ação que anos mais tarde seu próprio autor refutaria. Desse modo, muitos dos que se debruçaram ao longo dos anos sobre o ensaio de Jean-Paul Sartre, o acusam de atrelar o conceito de engajamento à política ou, ainda, a uma filiação partidária. Ele, porém, insistia que a política e a arte eram modos distintos de engajamento, ainda que não necessariamente excludentes. Em uma entrevista, o filósofo diz que o engajamento é uma maneira de dar um sentido à própria existência humana e, portanto, a manifestação artística é em si um engajamento. O engajamento político viria depois, quando da interpretação da arte, quando se puder atribuir àquela um ou outro valor que lhe determine o modo e o porquê de sua concepção.^14 O desafio de tentar encontrar em Anchieta pistas de uma escrita engajada é antes de tudo temporal. É necessário lançar uma visão trans-histórica e sobre ela ter, necessariamente, um olhar enviesado, constituído por “uma certa experiência de literatura e uma certa visão de sua história” , (Denis, 2002, p. 26) que o autor mesmo, sem dúvida, não possuía, mas que hoje é constitutiva de sua imagem. É certo também que a obra literária de Anchieta nada tem a ver com uma literatura de combate ou de resistência; tampouco é possível falar de filiação partidária nas condições políticas de sua época. O que chama a atenção para essa possibilidade de leitura em Anchieta é que sua escrita é fundamentalmente intencional. Esta intencionalidade pode ser observada sob três aspectos: o primeiro, e mais ingênuo, o de uma perspectiva apostólica onde se poderia inferir que, na medida em que desejava a conversão do índio e do colono, Anchieta tinha a intenção evangélica de instauração de um novo mundo, pautado pelos valores da justiça e da equanimidade. A ingenuidade desta proposição está no conhecimento histórico do processo colonizador, violento por si só, descolado de qualquer ato
(^14) Essa entrevista foi concedida a M. Sicar e publicada em Essais sur Sartre. Paris. Ed. Galilée,
que reconhecesse no povo nativo uma possível articulação social, política ou religiosa. Uma segunda via seria imaginar que, sendo Anchieta jesuíta e, portanto, praticante de uma espiritualidade especial no seio da Igreja Católica, consolidada na prática dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, fontes de uma experiência libertadora e restauradora da dignidade da relação homem-Deus, teria ele a intenção de levar os Exercícios aos índios e colonos, públicos de sua catequese e assim libertá-la do jugo dominador. Isso, contudo, é inviável, dada a necessidade de um apuro intelectual suficiente ao entendimento do processo dos Exercícios, que aqueles possíveis destinatários certamente não possuíam. Os jesuítas realmente construíram uma elite em seus colégios, nos quais a prática pedagógica adotada permitia a identificação e condução dos melhores para suas fileiras onde, aí sim, era possível propor tal prática. Mas, Anchieta não foi propriamente um “pregador” de Exercícios Espirituais. Porém, conhecia profundamente sua dinâmica e usou exaustivamente aspectos específicos deles em sua produção literária e isso é de fácil identificação. E, em terceiro, e esta é a via na qual mais me deterei, é que a literatura produzida por Anchieta vem justamente na contramão daquilo que poderia ser imaginado como resistência à violência da colonização. Sua obra está indissoluvelmente ligada ao discurso violento do colonizador e claramente pretende justificá-lo. Porém, haveria modo de ser diferente? Vejamos... José de Anchieta era espanhol de nascimento, teve uma formação acadêmica portuguesa e tornou-se jesuíta por vocação. Sabia bem que representava o colonizador e nunca se eximiu desse papel, que se aos olhos de hoje significa dominação, aculturação e soterramento das culturas primitivas do Brasil, à sua época é impossível de assim ser percebido. Sua visão de mundo, portanto, contempla todos esses aspectos, sendo-lhe impossível pensar sobre ele (mundo) de outra forma. Lembremo-nos de que estamos no século XVI, sem o instrumental das ciências sociais e humanas nos moldes contemporâneos e, sobretudo, em uma época de descobertas e conquistas, onde o ufanismo religioso e monárquico imperavam.
cenário político e intelectual de sua época. No episódio da Guerra dos Tamoios, por exemplo, foi atuante e peça chave para a consolidação da trégua e a fixação definitiva dos portugueses no Rio de Janeiro. Desejaria a paz? Sem dúvida; mas desejava também o fim do comércio de escravos índios praticado por João Ramalho e que solapava os interesses da Coroa – talvez o único motivo para a guerra. Por outro lado, os sacerdotes que aqui viviam – e os jesuítas em particular
sua época e responsável por relatar à Europa o que aqui acontecia, ele vai transpor os limites da Colônia, construindo na Metrópole um entendimento sobre as coisas aqui acontecidas: relatos de heroísmo, de fé, de conquistas, utilizando para tanto a sua expressão poética pessoal e a íntima relação entre Coroa e Igreja. Em suas cartas e sermões mostra como uma podia justificar as ações da outra; revela algumas argumentações que se chocam com a pureza dos ensinamentos do mesmo Evangelho que pregava e oferece às gerações futuras um retrato da Igreja e da Monarquia daquele século XVI. A leitura da obra anchietana tendo como pano de fundo as perspectivas de seu engajamento está colocada no Capítulo III desta dissertação. Por fim, a paulatina descoberta da riqueza cultural dos indígenas – seus principais informantes nos relatos que escreveu sobre a terra – e os anos de convívio com aqueles povos, que fizeram brotar em seu coração uma autêntica amizade, não foram suficientes para o empreendimento de uma obra que denunciasse a violência com que o processo colonizador atuou sobre aqueles. A leitura de sua correspondência vai revelar, ainda que de forma muito tênue, uma transformação em sua personalidade que aos poucos se desencanta com o processo de colonização e abre espaço para a adesão definitiva à causa indígena. Se inicia sua tarefa de epistológrafo comparando os índios a bestas e feras, às quais só a espada amansaria, terminará afirmando preferi-los aos portugueses. Luis Palacin no prefácio que faz ao livro de Maria Dulce Mindlin, José de Anchieta: No Limiar da Santidade^16 , destaca as transformações de Anchieta em relação à sua própria compreensão dos índios e dos colonos, e termina dizendo:
Esta foi a evolução de Anchieta com respeito aos índios: sempre dedicação, mas evoluindo do orgulho da superioridade da própria cultura, até a vida na simples amizade. (Palacin apud Mindlin, 1997, s/p)
Ainda assim, porém, sua literatura não foi capaz de transformar – ou ao menos denunciar ou combater – a dura realidade do processo colonizador, ao contrário de sua atuação apostólica que o colocou definitivamente unido à causa
(^16) MINDLIN, Dulce Maria Viana. José de Anchieta: no limiar da santidade. Editora Kelps: Goiânia, 1997.