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Este documento analisa a história contada pela filha da pioneira do preparo da ginga com tapioca no mercado público da praia da redinha/rn e as motivações dos consumidores habituais da preparação. A ginga com tapioca é uma combinação peculiar de peixe frito com tapioca, originária da região litorânea do rio grande do norte, e sua história é repleta de tradição e transmissão intergeracional do conhecimento culinário. Além disso, o documento explora as motivações dos consumidores, que vão desde a nostalgia à valorização dos produtos regionais e à percepção de higiene.
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Tipologia: Slides
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*Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
Rebekka Fernandes Dantas - Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFRN/Brasil). Michelle Cristine Medeiros da Silva - Doutoranda em Ciências Sociais (UFRN/Brasil). Karla Suzanne Florentino da Silva Chaves Damasceno – Professora Doutora do Curso de Graduação em Nutrição (UFRN/Brasil). Alexsandro Galeno Araújo Dantas - Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFRN/Brasil).
RESUMO
Pensamos a cozinha a partir das ideias de Claude Fischler e Claude Lévi-Strauss. O primeiro a define não como um espaço físico e sim como representações, crenças e práticas que estão associadas a ela e que compartilham os indivíduos que formam parte de uma cultura ou de um grupo no interior desta cultura. O segundo, traz uma grande contribuição ao formular as ideias de cozinha universal - o alimento, universalmente, apresenta-se em três estados principais: cru, cozido ou podre - e cozinha específica - nada é simplesmente cozido, mas o é de determinado modo dentro de cada sociedade. A partir dessas ideias de cozinha temos como objetivo analisar a história contada pela filha da pioneira do preparo da ginga com tapioca no Mercado Público da praia da Redinha/RN e conhecer as motivações dos consumidores habituais da preparação. O corpus da pesquisa foi composto por uma entrevista narrativa que conta a história da preparação e por 13 entrevistas semi-dirigidas respondidas pelos consumidores. Realizamos análise temática das entrevistas. A entrevista narrativa gerou como temas: o ofício de cozinheira, a transmissão intergeracional do conhecimento culinário e a transformação da ginga, peixe apenas biologicamente comestível, em alimento culturalmente comestível. A tradição, o alimento regional, a higiene e o sabor constituíram motivações dos consumidores. Por fim, refletimos sobre a contribuição das ideias sócioantropológicas para a nutrição.
Palavras-chave: Cozinha; cultura; ginga com tapioca.
Habitualmente a cozinha é definida simplesmente como um espaço físico ou como conjunto de ingredientes e de técnicas utilizadas na preparação da comida. Porém, também se pode entender “cozinha” num sentido diferente, mais amplo e específico como o que propõe Claude Fischler:
[...] representações, crenças e práticas que estão associadas a ela e que compartilham os indivíduos que formam parte de uma cultura ou de um grupo no interior desta cultura. Cada cultura apresenta uma cozinha específica com um conjunto de regras que atendem não só ao preparo e combinação dos alimentos, mas também à colheita e ao consumo (FISCHLER, 1995a, p. 34, tradução nossa). A alimentação humana comporta uma dimensão imaginária, simbólica e social. É um lugar comum: nutrimo-nos de nutrientes, mas também do imaginário (FISCHLER, 1995a, p. 16, tradução nossa). A cozinha, neste sentido, surge como expressão da identidade cultural.
Anteriormente a Fischler, Lévi-Strauss (2006) traz uma grande contribuição para um olhar antropológico em direção à cozinha ao elaborar, nas Mitológicas - obra publicada originalmente entre 1964 e 1971 - as noções de cozinha universal e de cozinha específica. O alimento, universalmente, apresenta-se em três estados principais: cru, cozido ou podre, constituindo um triângulo onde temos o cru no vértice central como polo não-marcado, e o cozido e o podre nos vértices opostos, fortemente marcados, porém em direções opostas. O cozido é uma transformação cultural do cru e o podre sua transformação natural. No entanto, para uma determinada sociedade:
(...) nada é simplesmente cozido, mas deve sê-lo de determinado modo. Tampouco existe cru em estado puro: apenas certos alimentos podem ser consumidos nesse estado e, mesmo assim, contanto que tenham sido previamente lavados, descascados e cortados, ainda que nem sempre temperados. E até as culinárias mais tolerantes em relação ao podre só o admitem como resultado de certos processos, espontâneos ou dirigidos (LÉVI-STRAUSS, 2006, p. 432)
Diante da importância cultural da preparação para a região litorânea e da escassez de pesquisas científicas que se aprofundem no tema, pretendemos analisar a preparação ginga com tapioca a partir de sua história, contada desde sua suposta idealizadora, Dona Dalila, aos seus descendentes, Dona Ivanize, em um núcleo de produção no Mercado Público da praia da Redinha em Natal-RN, identificando também as matérias-primas da preparação, o modo de fazê-la em sua origem, e por fim, conhecendo as motivações dos consumidores habituais da preparação na praia da Redinha.
O corpus da pesquisa foi composto por uma entrevista narrativa, realizada com a filha da pioneira do preparo da ginga com tapioca no Mercado da Redinha, bem como por 13 entrevistas semi-dirigidas com roteiro pré-definido aplicadas aos consumidores habituais do mesmo estabelecimento, composto por perguntas exmanentes e imanentes, que refletem os interesses do pesquisador e os temas, tópicos e relatos de acontecimentos que surgem durante a narrativa, respectivamente.
A pesquisa foi analisada pela metodologia proposta por Mayring (1983), análise temática, que de acordo com Jovchelovicth e Bauer (2002) consiste num procedimento gradual de redução do texto qualitativo em séries de paráfrases. Primeiramente, passagens inteiras são parafraseadas em sentenças sintéticas, as quais são posteriormente parafraseadas em algumas palavras-chave. A partir disto, desenvolve-se um sistema de categorias com o qual todos os textos podem ser codificados. Foram criadas categorias para cada entrevista e depois ordenadas em um sistema coerente de categorização geral para todas as entrevistas, sendo o produto final constituído por uma interpretação unida a estruturas dos informantes e do entrevistador. Salientamos que mesmo a entrevista narrativa foi analisada por análise temática, ainda que esta prática não seja habitual, visto que, as informações que buscávamos nos relato de Dona Ivanize eram de caráter pontual.
O trabalho está estruturado em quatro seções, sendo a primeira esta em que introduzimos a ideia de cozinha; “Ginga com tapioca: complexidade de sabores, complexidade de saberes” onde iremos analisar a história da preparação; “Por que a ginga com tapioca de D. Ivanize? Motivações dos consumidores” em que mostramos as motivações dos consumidores habituais da preparação na praia da Redinha; e por fim as “Considerações Finais” encerram o trabalho.
O Rio Grande do Norte limita-se ao norte e leste com o oceano Atlântico, mas apresenta 92% do seu território localizado no semi-árido do Nordeste do Brasil (MORAIS; SILVA, 2002, p. 379). E por tal motivo, e ainda de acordo com Morais e Silva (2002) as práticas alimentares potiguares distinguem-se intra-regionalmente, apesar de ser evidente a preponderância dos hábitos oriundos do sertão sobre a culinária tradicional, especialmente aquela apresentada na cidade de Natal. O hábito alimentar do habitante do litoral diversifica a cozinha regional, determinada pela disponibilidade de peixes e frutos do mar, derivados do coco e da mandioca. Daí resulta a peculiar combinação de peixe frito com tapioca, conhecida comumente nas praias norte-rio- grandenses pela denominação “ginga com tapioca”. Salientamos que o hábito de comer peixe com tapioca também está presente em outras regiões litorâneas, como no Estado da Bahia, onde a ginga é substituída por um peixe conhecido por pititinga, que, no entanto, não constitui objeto de nossa investigação.
As gingas são pequenos peixes que podem ser servidos junto à tapioca compondo a preparação, os mais comumente utilizados são as sardinhas, que podem ser de inúmeras espécies e têm como família mais representativa a Clupeidae, segundo Szpilman (2000). Menos comumente servido é o peixe de nome popular manjuba, da família Engraulidae e espécie Anchoviella lepidentostole, de acordo com o mesmo autor_._
Para os habitantes do litoral potiguar, o pescado se apresenta como um alimento muito importante: “O habitante dos pequenos povoados do litoral dispunha dos produtos da pesca, principal atividade econômica local – peixe, camarão, ostra, lagosta, caranguejo. O peixe estava presente em todas as refeições, inclusive café da manhã” (MORAIS; SILVA, 2002, p. 384).
Segundo Gomes (2004), os alimentos genuinamente aquáticos como peixes, crustáceos e moluscos, são alimentos tradicionalmente comidos pelos potiguares do litoral, enquanto que o potiguar do sertão seco não tinha o hábito de ter em sua dieta diária esse tipo de alimento, a não ser, esporadicamente os que habitavam às margens
Segundo Atala e Dória (2008), o componente mais importante da raiz da mandioca é a fécula (amido), também chamada de polvilho doce ou goma, a partir da qual podem ser fabricados diversos produtos como: tapioca, sagu (bolinhas de fécula) e polvilho azedo. Porém, as farinhas são a principal utilização da mandioca, tanto torrada quanto farinha de mesa e farinha d’água.
A produção da fécula ou polvilho, segundo os autores anteriormente citados, consiste na lavagem das raízes, descascamento, ralação, adição de água, extração do amido da massa por agitação manual ou mecânica, separação da massa do leite de fécula (água e amido) por filtragem, separação da água do amido por decantação ou centrifugação, secagem e acondicionamento. O polvilho azedo é obtido pela fermentação do polvilho doce, e posteriormente o é seco ao sol. A farinha de tapioca nada mais é do que a tapioca seca em tachos grandes ao fogo. A tapioca deriva do amido precipitado quando se rala e espreme a mandioca. Durante a secagem se formam pequenos grânulos irregulares de amido, que é a “farinha de tapioca” propriamente dita. Essa, uma vez umedecida e levada à frigideira ou chapa, pode ser esticada, recheada e enrolada.
Tratar, temperar os peixes com sal, espetá-los em palitos de coqueiro, colocar um pouco de farinha de mandioca para não grudar e fritá-lo em azeite de dendê. Para a tapioca, peneirar a goma, colocar sal, ralar o coco, misturá-lo à goma, colocar em uma frigideira, e por fim colocar o peixe dentro da tapioca, como um sanduíche. Este é o modo de preparo da ginga com tapioca, desde sua origem, e se perpetua até hoje, conforme nos contou D. Ivanize em entrevista.
De acordo com ela, a história dessa preparação tem início entre os anos de 1950 e 1960, quando o seu pai, Geraldo Januário, que era marchante de peixe - comprava os peixes da praia da Redinha para vendê-los tratados - decidiu comprar as gingas, os filhotes de peixe, que ficavam desperdiçados na praia.
Dessa forma, o pai de D. Ivanize comprou a ginga, tratou-a e enfiou os peixes miúdos em palitos de coqueiro, enquanto D. Dalila, sua esposa, fazia tapioca e fritava as gingas já espetadas, chamando a combinação de sanduíche da ginga com tapioca ou sanduíche de marinheiro.
“E começou a enfiar, minha mãe fazendo a tapioca e fritando a ginga e colocando. Aí ‘Que é isso, D. Dalila?’ ‘Aqui é o sanduíche da ginga com tapioca.’” D.I “[...] ninguém, fazia nada com essa ginga, a não ser as pessoas mais pobres que tinham aqui, que vinha pegar algumas pra levar e as outras ficavam, enterravam e não tinha extração pra elas” D.I. Percebemos, então, que apesar de biologicamente comestível, a ginga não fazia parte do hábito das pessoas, até que o pai de D. Ivanize, operou através de um movimento ousado, uma mudança na cozinha local, de forma que hoje ela é mais consumida que outros peixes vendidos no mercado, como dito por D. Ivanize:
“[...] e a gente vem criando os filhos tudo com isso, trabalhando com ginga e tapioca, porque o outro peixe demora mais a sair e a ginga não, é direto” D.I. Portanto, assim como Claude Fischler, nos perguntamos “Por que não consumimos tudo o que é biologicamente comestível?” (FISCHLER, 1995a, p. 29, tradução nossa). Diversos outros exemplos embasam essa pergunta e são expostos por Harris (1999), como pensar na proibição do sacrifício e consumo das vacas na Índia, na religião judia que não permite o consumo de carne de porco, ou no hábito japonês de comer insetos, repugnado pelos ocidentais.
E Fischler explica isso pela ideia de ‘hábito’ do senso comum: [...] consumimos – ou não consumimos – tal ou qual espécie porque nos é imposto o ‘hábito’. Sempre foi assim. Mas, se esta proposição é verdadeira se deve a que é tautológica. O que o senso comum utiliza como explicação é precisamente o que teria que explicar (FISCHLER, 1995a, p. 33, tradução nossa). Canesqui e Garcia (2005) complementam esse pensamento afirmando que não comemos apenas quantidades de nutrientes e calorias para manter o funcionamento corporal em nível adequado, pois o comer envolve seleção, escolhas, ocasiões e rituais, imbricando-se com a sociabilidade, com ideias e significados, com as interpretações de experiências e situações. Assim, para serem comestíveis, os alimentos precisam ser elegíveis, preferidos, selecionados e preparados ou processados pela culinária, sendo tudo isto configurado como matéria cultural.
A cultura constitui, portanto, um componente intrínseco e essencial no momento de escolha do que se come e entender que comemos o que é culturalmente comestível, que faz parte do nosso hábito e atinge nosso imaginário, e não o que é
preparada? D. Ivanize relata que muitos ficam em outro boxe, mas pedem a sua ginga, por quê? Entre as respostas, encontramos a tradição, o prato regional, o sabor e a higiene.
De acordo com Fischler e Masson (2010), nos últimos tempos instaurou- se nos países desenvolvidos uma situação paradoxal. Por um lado, a abundância se instalou trazendo uma qualidade, ao menos sanitária de provisões. Contudo, surgiram novas problemas, ligados na maioria dos casos, mais aos excessos do que às carências, como por exemplo a obesidade e a insegurança em relação à enfermidades, como a doença da vaca louca.
Os alimentos tornaram-se produtos de consumo manufaturados, e aqueles que os consomem devem assumir sua condição, relativamente nova, de consumidores : com a liberdade de escolha surge também o problema da escolha propriamente dita. Se agora é preciso escolher onde antes não havia tal liberdade, como decidir? Em quais critérios apoiar-se? (FISCHLER; MASSON, 2010, p.76). O que se manifesta, então, de forma implícita ou explícita, é a autonomia individual do sujeito: idealmente, ele está informado perante as “opções” e cabe a ele ser responsável pelas escolhas que faz. (FISCHLER; MASSON, 2010, p. 86)
Fischler e Masson (2010) defendem a tese de que essa autonomia crescente é, também, portadora de anomia, compreendida como a ausência de normas e regras. Então, será que nesse estado de anomia as pessoas passam a dar prioridade à tradição por ela esvair o sentimento de insegurança? E que também por isso, as pessoas consideram que os alimentos de ontem eram melhores que hoje? É isso que mostram em sua pesquisa os autores citados.
Também nas nossas entrevistas o futuro parece estar na nostalgia, sendo observado que a tradição da preparação é uma das motivações para os consumidores preferirem a ginga com tapioca feita no boxe de D. Ivanize, por essa ter sido a pioneira, e, portanto a que tem mais tradição no preparo, como é visto nas falas dos consumidores ao serem perguntados por que preferiam a barraca de D. Ivanize:
“Porque a da D. I, primeiro que eu conheço ela e segundo porque tem toda uma tradição, né? Na família dela, já é uma coisa bem reconhecida.” C.F.L; sexo masculino; 40 anos; funcionário público.
“Porque é uma tradição, certo? Uma tradição já aqui da Redinha.” J.C.N; sexo masculino; 67 anos; aposentado. “Porque eu já frequento há quarenta anos, há vinte e cinco anos essa barraca, e é a mesma pessoa. [...] aí é uma tradição de muitos anos e isso não pode morrer de jeito nenhum.” N.M.F.J; sexo masculino, 65 anos, médico. Mais que um objeto, fruto do trabalho humano, o alimento tradicional contém não apenas a história da pessoa que o produziu, mas também a tradição de várias gerações, bem como as especificidades históricas de determinado local e de uma cultura (ZUIN, 2009a, p. 99).
“Ai, é, bastante prazeroso, né? Porque a ginga e a tapioca, a gente observa que é bem tradicional, né? Quanto ao mercado e quanto assim... da beira da praia, né?.” A.N. Sexo feminino; 39 anos; professora. “Eu me sinto à vontade. À vontade que é muito bom comer uma ginga com tapioca, principalmente aqui na beira de uma praia, não é?” A.L.S.R; sexo masculino; 46 anos; militar. “Aqui é diferente de você comer em casa. Não sei porque, deve ser o gosto da praia” J.A.S Sexo feminino; 43 anos; comerciante. Nessas narrativas verificamos que essa tradição está ligada ao sabor apreciado por essas pessoas, no entanto, elas não sabem explicar muito bem o motivo de preferirem aquele alimento, constituindo algo subjetivo, como um comfort food , uma memória que parece incluir, além das sensações gustativas, olfativas e visuais do alimento, o ambiente em que ele é servido, a praia.
O Comfort Food vai em busca das preparações e produtos do cotidiano, mas que proporcionam conforto e lembranças de tempos e pessoas queridas. E são justamente as comidas que não se esquece em um determinado momento da vida, que os movimentos das cozinhas regionais, vêm tentando resgatar como patrimônio e como incentivador de produtos turísticos. É a valorização dos produtos regionais na sua forma de fazer, plantar e registrar momentos independentes de corrente culinária (JAROCKI, 2009, p. 330). Pedro Nava em sua obra Baú de Ossos ilustra a batida da sua avó como um Comfort Food , ao mesmo tempo em que cita as madeleines de Marcel Proust, um exemplo típico desse tipo de alimento.
Se a batida do Ceará é uma rapadura diferente, a batida de minha avó Nanoca é para mim coisa à parte e funciona no meu sistema de paladar e evocação, talqualmente a Madeleine de tante Léonie. Cheiro de mato, ar de chuva, ranger de porta, farfalhar de galhos ao vento noturno, chiar de resina a lenha dos fogões, gosto d’água de moringa
Por fim, encontramos o higiênico como motivação dos consumidores, às vezes associado ao frescor, ao discurso higiênico-sanitário, em comparação aos ambulantes que também vendem a preparação na praia. Exemplos disso, vemos nos fragmentos de entrevistas abaixo.
“E... e também vejo essa barraca aqui, como frequento há muito tempo, eu sempre observo as questões de higiene, e realmente são muito boas”. N.M.F.L. Sexo masculino; 65 anos; médico. “A gente se sentiu atraída pela higiene, não foi mãe? A gente viu que o peixe estava fresco, o atendimento é muito bom... Foi isso.” M.N.S.S. Sexo feminino; 30 anos; assistente administrativa. “Com certeza é melhor você comer porque você sabe que é novinha, é feita na hora, do que você comprar nos ambulantes que você não sabe a qualidade.” C.F.L. Sexo masculino; 40 anos; funcionário público. No discurso higiênico-sanitarista, vê-se a preocupação com a higiene e a pureza tomando formas excessivas, o que é exemplificado pelo consumo massivo de signos e de pureza.
[...] como a cor branca (pão branco, açúcar branco, vitela branca, decoração branca das tendas de alimentação modernas, as cozinhas- laboratório, blusas brancas do pessoal dos supermercados, etc.), o uso extenso do celofane e do envasado em matéria plástica. A generalização dos procedimentos de conservação e higiene e a obsessão bacteriológica, ao esterilizar os alimentos, parece ter esterilizado também seus sabores; as embalagens plásticas e o celofane instalaram nos alimentos uma “no man’s land” asséptica, que os separa ainda mais, tanto de suas origens, como de seu consumidor (FISCHLER, 1995b, p. 370, tradução nossa). No entanto, nos parece que os consumidores também apresentam uma conotação de higiene que se aproxima da ideia de pureza como ordem, explicada por Mary Douglas, uma vez que o ambiente em que a ginga com tapioca é preparada e servida não está em total conformidade com o que a vigilância sanitária preconiza como higiênico.
A higiene, ao contrário, mostra-se como um excelente caminho, desde que o sigamos com algum conhecimento de nós próprios. Tal como a conhecemos, a impureza é essencialmente desordem. A impureza absoluta só existe aos olhos do observador. Se nos esquivamos dela, não é por causa de um medo cobarde nem de um receio ou de um terror sagrado que sintamos. As ideias que temos da doença também não dão conta da variedade das nossas reações de purificação ou de evitamento da impureza. A impureza é uma ofensa contra a ordem. Eliminando-a, não fazemos um gesto negativo; pelo contrário,
esforçamo-nos positivamente por organizar o nosso meio (DOUGLAS, 1900, p. 6-7). Vemos, portanto, que as motivações dos consumidores geram questões complexas em torno da alimentação com aspectos biopsicossociais com uma pluralidade de sentidos, significados e símbolos influenciadores na elegibilidade do alimento que será consumido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A cozinha, pensada no seu sentido mais amplo, é um instrumento de identidade cultural, revelando muito sobre uma sociedade e até mesmo sobre um grupo inserido nela. É um espaço imaginário composto por alimentos, ingredientes, modos de preparo, comportamentos.
Aqui, tivemos o intuito de analisar a ginga com tapioca, preparação que revela muito sobre a cozinha potiguar. Esta tem no litoral o hábito de consumo do peixe, da tapioca, do coco e do azeite de dendê, que combinados formam a preparação, perpetuada pela família de D. Ivanize e criada, segundo a mesma, por seu pai. Ele teve a ideia de utilizar para o consumo os peixes pequenos que ficavam na beira do mar e que eram consumidos apenas pelas pessoas mais pobres. Ao espetar os peixes em palitos de coqueiro e servi-los junto à tapioca, os transformou, ousadamente, em alimentos culturalmente comestíveis e criou um prato que diversifica a cozinha do litoral. Isto ocorreu há pelo menos 50 anos e desde então a família cativa fregueses, que atualmente, de acordo com as entrevistas realizadas, parecem consumir a preparação pela tradição, por ser um prato regional, por ter um bom sabor e por se sentirem bem no ambiente em que ela é servida, bem como pela higiene (nos seus sentidos simbólico e higiênico- sanitário).
Diante dessas reflexões acerca da alimentação humana, tendo como ponto de partida uma preparação típica da cozinha do litoral potiguar, julgamos extremamente importante utilizar as ideias de caráter sócioantropológico, os aspectos subjetivos e culturais, para entendermos a alimentação e assim, pensarmos uma Nutrição que não visa apenas os nutrientes, mas também os simbolismos e as questões sociais e contemporâneas que perpassam o ato de comer.
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