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Este texto discute o processo de personalização na sociedade pós-moderna, onde as fronteiras da cultura artística se deslocam e surgem novas liberdades e problemas. O indivíduo assume o centro da cena, reivindicando novas liberdades convertidas em direitos civis, políticos e sociais. A sociedade pós-moderna é marcada por self-service, o desaparecimento do imaginário rigorista e a emergência de novos valores, visando o livre desenvolvimento e a realização das aspirações subjetivas do homem contemporâneo.
Tipologia: Notas de aula
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Introdução
Toda sociedade humana está sujeita às constantes transformações. Onde está presente o homem, o contexto à sua volta se configura a partir de sua ação. Não apenas no âmbito físico, estrutural, mas principalmente naquilo que diz respeito ao que lhe é próprio, as relações. Novas formas de se relacionar despontam com o progresso, em cada descoberta, com o raiar de novos conhecimentos. No relacionamento com a natureza, com o outro, com o transcendente e consigo mesmo, o ser humano constantemente descobre e assume novos valores e novos princípios. Assim, outros são deixados de lado, superados, esquecidos. Se o que caracteriza o homem são as relações que ele estabelece, os valores que ele assume, os ideais que ele alimenta e as realizações que ele concretiza, então podemos dizer que a cada novo tempo, o ser humano se refaz, se transforma, se “atualiza”. E assim é em nosso tempo, a pós-modernidade. Partindo da pertinente reflexão de Gilles Lipovetsky, abordaremos neste primeiro capítulo a sociedade atual com sua configuração própria, conseqüência das buscas e concretizações humanas que sempre visam satisfazer os anseios do indivíduo, oferecendo-lhe meios de realização pessoal. No entanto, como veremos, esse tempo traz em si profundas lacunas, gerando um doloroso vazio existencial. Usando um termo próprio, o autor fala deste tempo como “hipermodernidade”, reconhecendo aí características marcantes que denotam a saturação e conseqüente superação da pós-modernidade. Uma saturação por excesso e por ausência ao mesmo tempo. Embora cada vez mais recheado de ofertas, o indivíduo não é capaz de realizar-se plenamente. Em suas reflexões, Lipovetsky constata que as inovações técnico- científicas, pleiteadas pelo sujeito moderno, imprimiram um ritmo acelerado nas transformações humano-sociais, evidenciando uma nova cultura, alicerçada no “processo de personalização”, que torna absoluto o sujeito humano. Paralelo a isso,
muitas práticas e atitudes próprias da modernidade sofrem substanciais transformações e os direitos subjetivos ganham mais visibilidade que os deveres diante da sociedade. Dessa forma, surge a sociedade do pós-dever, onde a liberdade de escolha ganha plena autonomia. A ética, antes fortemente marcada pelo imperativo categórico e pelo caráter religioso, aparece livre de imposições exteriores. A religião, por sua vez, historicamente fomentadora da ética, perde espaço, enquanto ganha vigor a secularização da sociedade. Em nossa reflexão, é perceptível como a ética, já desvencilhada da cultura religiosa e de todo caráter de sacrifício, não deixa de existir, mas assume uma configuração nova, centrada no “eu”. Tendo como horizonte a realização pessoal, a sociedade pós-moderna e pós-moralista vai trilhando novos caminhos, fomentando novos valores e suscitando novas relações. As inquietantes injustiças, que marcam nossa sociedade dão impressão de que a ética foi esquecida. Veremos, no entanto, que a ética continua presente, embora tenha assumido características novas. São flagrantes as manifestações e iniciativas de caráter ético por parte dos mais distintos segmentos sociais. Naturalmente, não podemos ver nisso uma autêntica renovação ética. De acordo com Lipovetsky, ganha espaço uma ética “indolor”, descomprometida e fortemente individualista. A ética torna-se um negócio interessante, principalmente em relação às iniciativas de empresas e setores do mercado obstinados pelo lucro. Abordaremos, também, outros aspectos da vida humana, onde é fomentado um minimalismo ético que não exige sacrifício, mas tranqüiliza o sujeito e alivia sua consciência. Assim são os novos tempos.
1.1. Pós-modernidade: a Era do Vazio
Nosso tempo é resultado das significativas e profundas mudanças a que se submeteu a sociedade humana. Muitos estudiosos reconhecem a atual sociedade como uma época vazia de sentido, onde o ser humano perambula indeciso e inquieto por veredas sempre novas, sem saber para onde o conduzem. Esse vazio reflete a ausência de certezas, tão comuns em tempos anteriores. É, portanto, um vazio daquilo que o sujeito moderno estava saturado. Para Gilles Lipovetsky, esse vazio representa
“Quem continua acreditando no trabalho, quando o frenesi das férias, dos fins de semana, dos lazeres, não cessa de se desenvolver, quando a aposentadoria se torna uma aspiração de massa, um ideal? Quem continua acreditando na família quando os índices de divórcio não param de subir, quando os velhos são exilados para casas de repouso, quando os casais se tornam ‘livres’, quando o aborto, a contracepção, a esterilização se tornam legais? Quem continua acreditando no exército quando escapar do serviço militar não é uma desonra? Quem continua acreditando nas virtudes do esforço, da economia, da consciência profissional, na autoridade, nas sanções? A onda de desafeição se propaga por todo lado, despindo as instituições de sua grandiosidade e do seu poder de mobilização emocional”.^4
Embora esse retrato social possa parecer desesperador, as instituições ainda insistem na tentativa de injetar sentido e valor onde já reina um deserto apático. Com essa desmontagem dos mecanismos de legitimação pela moral, é flagrante uma considerável perda de poder pelos “donos” das sociedades e um re-arranjo das formas de controle. A desordem de pensamentos é, na realidade, uma desordem de referências, que atinge, até mesmo, a referência cardeal: o valor da pessoa humana.^5 Onde deveriam reinar princípios e valores reguladores, orientadores, inspiradores do agir humano, revela-se um vazio. Sem esses parâmetros, a esfera privada se torna determinante, e viver sem finalidades transcendentais parece algo perfeitamente possível.^6 Os grandes alcances da sociedade pós-moderna não trazem uma satisfação plena ao indivíduo de nosso tempo, mas apresentam um inevitável paradoxo: por um lado saturação de caminhos, por outro lado cada vez mais indecisão e dúvidas.
“Quanto mais a cidade desenvolve as possibilidades de encontros, mais os indivíduos se sentem sós; quanto mais as relações se tornam livres, emancipadas das antigas restrições, mais rara se torna a possibilidade de conhecer uma relação intensa. Por todo lado há solidão, vazio, dificuldade de sentir, de ser transportado para fora de si mesmo”.^7
Ante a vasta gama de possibilidades de satisfação, ganha espaço uma estratégia característica deste tempo, a sedução. Em vez de manipular e impor, é
(^4) Ibid., pp. 18-19. (^5) VALADIER, P., Moral em Desordem: um discurso em defesa do ser humano, São Paulo, Loyola, 2003, p. 158. 6 7 LIPOVETSKY, G., op. cit. p. 33. Ibid., pp. 57-58.
preciso seduzir e conquistar. Como veremos, a partir do processo de personalização, até mesmo os valores, antes impostos, agora são escolhidos.
1.1.1. Da modernidade à cultura pós-moderna
A liberdade e a democracia sempre foram características marcantes da modernidade, época em que a cultura humana sofreu profundas transformações. Como frutos de um árduo processo fundado na soberania do indivíduo e do povo, surgiram as sociedades democráticas e descortinaram-se, assim, novos caminhos para a humanidade. Amparado no valor precioso da liberdade, o homem moderno passou a rejeitar todo tipo de submissão, de hierarquias e domínio das tradições. A modernidade é uma sociedade sem fundamento divino, pura expressão da vontade dos homens, então reconhecidos como iguais.^8 Uma sociedade que acredita profundamente na ciência, e se re-inventa constantemente, de acordo com a razão humana. Segundo Lipovetsky, o endeusamento/absolutização da liberdade na modernidade não elimina por completo as marcas do rigorismo moral, do sacrifício e do determinismo que, muitas vezes, impedem a escolha pessoal.
“A moral rigorista ocidental fazia do homem o chefe da família, a autoridade paterna, a voz incontestável, o esteio da sociedade do microcosmo do lar. A mulher vivia em situação secundária, praticamente sem direito ao prazer, ao orgasmo, à liberdade sexual e à vida profissional. Não se estava numa sociedade de escolha, mas numa teia coercitiva. Família, Igreja, Pátria, Partido e Ideologia dominavam a cena social e serviam de pastores e de sentido para a existência, obrigando a conformar-se, a tomar a forma de um mundo moralmente determinado, sexista e produtivista”.^9
De certa forma, na modernidade, a felicidade pessoal ainda está condicionada ao bom cumprimento daquilo que é estabelecido. Austeridade e dedicação são atitudes muito valorizadas no homem moderno, e o espírito sacrificial alimenta o anseio pela felicidade pessoal. No entanto, é no seio da própria modernidade que ganham voz inquietações e novas buscas que terão papel importante
(^8) Ibid., p. 66. (^9) Ibid., p. XI.
estranhos à religião.^13 Essa nova organização social enfraquece, ou faz desaparecer, certos princípios religiosos, deslocando as pessoas de seus contextos antigos e comunais. No entanto, segundo Durkheim, as formas essenciais da vida religiosa persistiriam de maneiras apropriadas à era moderna.^14 É certo que a crença no progresso não apagou por completo a crença na providência, pois no seio da própria modernidade surgiam novas formas e místicas religiosas. Proclamando a autonomia humana, a modernidade permitiu à razão instrumental ser a regra da vida, dando início a uma mudança que terminaria melancolicamente. A promessa do progresso, que enchia os olhos da modernidade, azedou.^15 Se por um lado as maravilhosas descobertas fizeram o homem moderno sonhar mais alto, por outro lado esse mesmo homem sofreu profundas desilusões. A falta de regulação convencional gerava uma sensação de incerteza, de perda de direção. Como chave da modernidade, a racionalização produziu o “desencanto do mundo”. A aparente sensação de liberdade e autonomia não eliminava as angústias geradas pela ausência de uma base normativa.
“A modernidade vive com dúvidas e contradições internas desde o começo. Não somente magia e mistério, mas também autoridade e identidade se dissipam ou difundem com o advento da modernidade. É a desilusão do mundo. A autoridade supostamente passa das bases religiosas para as científicas. O eu autônomo assume o centro da cena, reivindicando novas liberdades que seriam convertidas em direitos civis, políticos e sociais”.^16
Os valores individualistas ganham força e apontam para uma superação de toda subordinação. Assim como a revolução democrática emancipa a sociedade das forças do invisível e do universo hierárquico, o modernismo artístico liberta a arte e a literatura do culto à tradição. A arte é um aspecto de grande visibilidade na modernidade. E, embora não se dê uma ruptura absoluta, as fronteiras da cultura artística se deslocam, na lógica dos novos valores, como a liberdade, a igualdade e a revolução.^17 A arte assume uma expressão livre e desconexa de qualquer
(^13) LYON, D., op. cit., p. 57. (^14) Ibid., p. 46. (^15) Ibid., p. 57. (^16) Ibid., p. 56. (^17) LIPOVETSKY, G., op. cit. p. 75.
enquadramento. O modernismo^18 destrói as regras e convenções estilísticas, fomentando obras personalizadas, despidas de padrão. A expressão se elabora sem código preestabelecido, sem linguagem comum, de acordo com a lógica de um tempo individualista e livre.^19 Na arte moderna, tem papel importante a intervenção manipuladora do utilizador, as ressonâncias mentais do leitor ou do espectador. É preciso evitar uma interpretação unívoca. Como vemos, a modernidade não se limita às questões políticas, econômicas e tecnológicas, mas abrange os mais diversos aspectos da vida humana. Embora tenha sido o primeiro modo de organização social a alcançar uma predominância global, a modernidade suscitou preocupações desde o começo.^20 Regrada pelos mais distintos valores, e em permanentes conflitos, a modernidade começava a gerir sua própria mudança.
“Na modernidade, a Revolução e a luta de classes são suas peças mestras; os valores consagram a poupança, o trabalho, o esforço; a educação é autoritária e regularizadora. Contudo, a partir do final do século XIX e da era do consumismo, estabeleceram-se sistemas regidos por outro processo, maleável, plural, personalizado. Neste sentido, pode-se dizer que a fase moderna das nossas sociedades caracterizou-se pela coexistência de duas lógicas adversas com a evidente preeminência, até as décadas de 1950 e 1960, da ordem disciplinar e autoritária”.^21
À força da personalização hedonista, da preeminência de valores subjetivistas, os grandes eixos modernos foram sendo modificados e o otimismo tecnológico e científico foi perdendo força. A degradação humana e ambiental foi se
(^18) David Lyon estabelece uma distinção entre pós-modernismo e pós-modernidade. No pós- modernismo, a ênfase recai sobre o cultural, e se refere aos fenômenos culturais e intelectuais. Aí, um dos fenômenos é o abandono do ‘fundacionalismo’, onde o pós-modernismo questiona todas as premissas básicas do Iluminismo. Outro fenômeno é o colapso das hierarquias de conhecimento, de gosto e opinião e o interesse pelo local em lugar do universal. Aparece também a substituição do livro pela TV, a migração da palavra para a imagem, do discurso para a representação. Na pós-modernidade, por sua vez, a ênfase recai sobre o social, e se concentra no esgotamento da modernidade, relacionada com mudanças putativas. Significa que uma nova sociedade está surgindo, com a proeminência das novas tecnologias de informação e comunicação, bem como do consumismo. LYON, D., op. cit. pp. 16-17. 19 20 LIPOVETSKY, G., op.cit. p. 79-80. LYON, D., op. cit., p. 48. No mundo da produção, Marx encontrou capitalistas exploradores e trabalhadores alienados. Durkheim detectou uma profunda sensação de ansiedade, de incerteza com relação ao andamento das coisas. Weber temia que a racionalização talvez abatesse o espírito humano. Simmel sentiu que a sociedade de estranhos produziria novo isolamento e fragmentação social. 21 LIPOVETSKY, G., op. cit. p. 90.
Nesse sentido, o pós-modernismo não pretende a destruição das formas modernas, mas a coexistência pacífica dos estilos, paralelamente a uma sociedade onde as ideologias rígidas são rejeitadas e as instituições caminham para a opção e a participação. O indivíduo se torna flutuante e tolerante. Não há mais divórcio entre os valores da esfera artística e do cotidiano. As obrigações pré-traçadas são substituídas pela livre escolha, a rigidez da “linha certa” pelo coquetel fantasioso.^27 A cultura pós- moderna legitima a afirmação da identidade pessoal de acordo com os valores de uma sociedade personalizada, na qual o importante é ser a própria pessoa. Imbuído do espírito das sociedades abertas, o pós-modernismo aumenta as possibilidades individuais de escolhas e combinações.^28 Assim, o modelo geral da vida nas sociedades contemporâneas é marcado por uma espécie de self-service e pelo atendimento a la carte. A “era do vazio”, segundo Lipovetsky, é a consagração da possibilidade de viver sem sentido, de não crer na existência de um único e categórico sentido, mas de apostar na construção permanente de sentidos múltiplos, provisórios, individuais, grupais ou fictícios.^29 A pós-modernidade é uma sociedade do presente, sem amarras, livre e constantemente renovada, sujeita à moda da eterna juventude. A partir de um eficaz processo de personalização, o indivíduo não é mais meio para uma finalidade exterior, mas é considerado, e se considera, como finalidade última.
1.1.2. O processo de personalização
O homem é sempre expressão do contexto e do tempo em que vive. E a sociedade, por sua vez, é expressão do homem de seu tempo. Com base na democracia e na liberdade, a modernidade fomentou a industrialização e o crescente consumismo. Embora novas questões entrem em cena, com o advento da pós- modernidade, os fundamentos de liberdade e democracia são preservados e fortalecidos ainda mais. Em muitos aspectos há continuidade e aprofundamento, em outros, uma certa ruptura, como é o caso do modelo de socialização disciplinar. Alimentado por um constante progresso tecnológico, o consumismo cresce e assume
(^27) Ibid., 99. (^28) Ibidem. (^29) Ibid., XII.
um papel de grande importância na sociedade pós-moderna. Segundo Lipovetsky, tudo isso a partir de uma lógica que remodela continuamente, e em profundidade, o conjunto dos setores da vida social, o “processo de personalização”.
“O processo de personalização procede de uma perspectiva comparativa e histórica, determina a linha diretiva, o senso do novo, o tipo de organização e de controle social que nos liberta da ordem disciplinar-revolucionária-convencional que prevaleceu até o decorrer da década de 1950. Ruptura com a fase inaugural das sociedades modernas, democráticas-disciplinares, universalistas-rigoristas, ideológicas-coercitivas, este é o sentido do processo de personalização”.^30
Esse processo assume, em certo sentido, um papel libertário em relação à modernidade. O individualismo ganha asas e se torna soberano, expressão de um sujeito voltado para a escolha permanente, alérgico ao autoritarismo e à violência, tolerante e ávido de mudanças freqüentes. Essa mutação histórica revela a emergência de um modo de socialização e de individualização inéditos. Como expressão de uma sociedade flexível, baseada na informação e no estímulo das necessidades, inaugura- se uma nova fase do individualismo.
“O universo dos objetos, das imagens e da informação, bem como os valores hedonistas, permissivos e psicológicos que estão ligados a ele, geram, simultaneamente uma nova forma de controle dos comportamentos, uma diversificação incomparável nos modos de vida, uma flutuação sistemática da esfera privada, das crenças e dos modos de agir; em outras palavras, uma nova fase na história do individualismo ocidental”.^31
Com o processo de personalização se dá uma revolução permanente do cotidiano e do próprio indivíduo. Instaura-se um novo modo de a sociedade se organizar e se orientar, bem como um novo modo de gerenciar os comportamentos. O imaginário rigorista vai desaparecendo, e novos valores aparecem, visando o livre desenvolvimento e a realização das aspirações subjetivas do homem contemporâneo. A esfera privada ganha soberania e o ideal moderno de subordinação do indivíduo a regras racionais coletivas é pulverizado. Ganha valor absoluto a realização pessoal, e o “eu” se torna parâmetro para todo agir humano. É o reinado do indivíduo! O direito de ser absolutamente si mesmo, aproveitando a vida ao máximo é uma manifestação
(^30) Ibid., XVI. (^31) Ibid., XV.
influiu no surgimento do indivíduo autônomo, livre de todas as cargas tradicionais”.^36
Existindo unicamente para si mesmo e conduzido pela lógica do mercado, o indivíduo se aprofunda cada vez mais na busca de seus interesses particulares, uma busca que parece legítima e justa. O “é preciso ser absolutamente moderno” foi substituído pela palavra de ordem pós-moderna e narcísica “é preciso ser absolutamente si mesmo”.^37 A moda assume uma face visivelmente pós-moderna, subjetivando os gostos e costumes, e afirmando a supremacia do individual sobre o coletivo. Sua difusão dá impulso à pós-modernidade.
“Afora o desenvolvimento da autonomia que ela alicerça, a moda desempenhou igualmente papel fundamental no momento da inflexão da modernidade num sentido pós-moderno. Isso porque é com a extensão da lógica da moda ao conjunto do corpo social (quando a sociedade inteira se reestrutura segundo a lógica da sedução, da renovação permanente e da diferenciação marginal) que emerge o mundo pós-moderno. É a era da moda extrema, em que a sociedade burocrática e democrática se submete aos três componentes essenciais (efêmero, sedução, diferenciação marginal) da forma-moda e se apresenta como sociedade superficial e frívola, que impõe a normatividade não mais pela disciplina, mas pela escolha e pela espetacularidade”.^38
A moda se destaca como vetor fundamental na superação da modernidade, visto que a sociedade se submete à sua força sedutora. As diferenças individuais se multiplicam, a esfera da autonomia subjetiva se amplia e efetiva-se uma sociedade centralizada no pessoal, enquanto os princípios sociais reguladores se esvaziam e os modos de vida tradicionais se dissolvem. A liberdade de ação é uma prioridade absoluta, um direito de todos.^39 Como nos lembra Lipovetsky, o homem pós-moderno tolera mais as desigualdades sociais do que as ações que ferem a liberdade individual.
“O processo de personalização engendrou uma explosão de reivindicações de liberdade que se manifesta em todos os domínios: na vida sexual e na familiar, no vestuário, na dança, nas atividades corporais e artísticas, na comunicação e no
(^36) LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio , p.162. (^37) Ibid., p.101. (^38) LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos , p.19. (^39) TOCQUEVILLE, de A., De la démocratie en Amérique, Oeuvres completes. Paris, Gallimard, t. I, vol. II, p. 101-104. Apud LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio , p.92: “Face à afirmação de Tocqueville de que os povos democráticos demonstravam ‘um amor mais ardente e mais durável pela igualdade do que pela liberdade’”.
ensino, na paixão pelo lazer e pelo aumento do tempo livre, nas terapias novas que têm por finalidade a libertação do eu”.^40
Há também outros valores que são de importância fundamental para a sociedade pós-moderna. Muitos grupos e segmentos sociais lutam por justiça, igualdade e reconhecimento social. No entanto, segundo ele, essas reivindicações ganham força e adesão em razão do desejo de viver com mais liberdade. O ideal da autonomia individual é o grande protagonista da pós-modernidade. Tem aceitação crescente, por exemplo, a livre utilização do corpo. 41 É deslocado par ao indivíduo o direito de gerir e administrar a si mesmo.
“A cultura da obrigação moral foi suplantada pela da gestão integral de si mesmo; o reino do pragmatismo individualista ocupou o lugar do idealismo categórico; os critérios do respeito por si mesmo diluíram-se no ciclo estável e indefinido da personalização, do psicologismo, da operacionalização. O processo pós-moralista transformou os deveres em relação a si mesmo em direitos subjetivos, e as máximas obrigatórias da virtude em livres opções e conselhos operacionais, a fim de obter o máximo de bem-estar das pessoas”.^42
Pela busca do bem-estar e da realização pessoal vale qualquer esforço. O sacrifício, que na modernidade estava voltado para fora (família, estado, religião, partido), na pós-modernidade volta-se para o próprio sujeito. Centrado em si mesmo, o indivíduo evita o confronto e assume uma atitude de indiferença e desinteresse pelo outro. O homem pós-moderno tem repulsa à violência. Se a educação disciplinar não conseguiu realizar a pacificação dos comportamentos, a lógica da personalização conseguiu.^43 Essa pacificação, no entanto, se dá mais pela valorização de si mesmo do que pela eliminação do outro.
“Cada vez mais voltados para as preocupações particulares, os indivíduos se pacificam não por ética, mas, sim, por hiperabsorção individualista: nas sociedades que impulsionam o bem-estar e a realização de si mesmo, os indivíduos têm mais desejo de encontrar a si mesmos, de se auscultar, de se
(^40) LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio , p. 92. (^41) LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-Moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos 42 , São Paulo, Manole, 2005, p. 70. 43 Ibid., 61. LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio , p.169.
modernidade, que caracterizam o indivíduo flexível em busca de si mesmo. O ressurgimento das espiritualidades e esoterismos aumenta o leque de escolhas e possibilidades da vida privada.^48 A expressão religiosa faz parte do coquetel individualista oferecido pelo processo de personalização. Em outra importante dimensão da sociedade humana, a arte, se dá o que Lipovetsky denomina “personalização da cultura”. Sem parâmetros definidos, e expressando-se à sua maneira, todos podem ser artistas. É a ordem personalizada da cultura, a eclosão de uma expressão artística de massa, em que povo se torna artista.
“Enquanto a arte oficial é levada pelo processo de personalização e de democratização, a aspiração dos indivíduos à criação artística não cessa de crescer: o pós-modernismo não significa apenas o declínio vanguardista, como também, e ao mesmo tempo, a disseminação e multiplicação dos centros e das vontades artísticas. Proliferação dos grupos de teatro amador, dos grupos de música rock ou pop, paixão pela fotografia e pelo vídeo, entusiasmo pela dança, pelas profissões artísticas e artesanais, pelo estudo de um instrumento, pela escrita; essa bulimia só se iguala à do esporte e das viagens.”^49
No embalo das significativas transformações no campo artístico, a criação revolucionária, do modernismo, dá lugar a uma fase de expressão livre, do pós- modernismo. A personalidade narcísica, ávida de expressão de si mesma, de criatividade, colabora para a democratização espontânea e real das práticas artísticas.^50 Parece-nos evidente, assim, que a cultura de massa é também expressão do processo de personalização. No âmbito sócio-político, por sua vez, a lógica da personalização reforça a demanda de liberdade, de escolha e de pluralidade, e gerencia um indivíduo aberto às diferenças. Em paralelo com o crescimento do narcisismo, predomina a legitimidade democrática. Pelo fato de os indivíduos se absorverem na esfera privada não significa que eles se desinteressem pelo sistema político.^51 Sua indiferença não é pela democracia, mas é desafeição emocional dos grandes referenciais ideológicos, é rejeição de um Estado distante e burocrático.
(^48) Ibid., pp. 95-96. (^49) Ibid., p. 101. (^50) Ibid., p. 102. (^51) Ibid., p. 105.
“A crise do Estado-Providência é um meio de disseminar e multiplicar as responsabilidades sociais, meio de reforçar o papel das associações, das cooperativas, das coletividades locais, meio de reduzir a altura hierárquica que separa o Estado da sociedade. Um meio de adaptar o Estado à sociedade pós- moderna norteada pelo culto à liberdade individual, à proximidade, à diversidade. O caminho se abre para que o Estado entre no ciclo da personalização, coloque- se em harmonia com uma sociedade móbil e aberta, recusando as inflexibilidades burocráticas e o distanciamento político”.^52
O crescimento dessas forças sociais fortalece a tendência pós-moderna de privilegiar a liberdade em relação ao igualitarismo uniforme. Quer-se menos relação vertical e paternalismo entre Estado e sociedade, menos regime único, e mais iniciativas, diversidade e responsabilidade na sociedade e nos indivíduos. Não podemos negar que o processo de personalização é responsável por muitas das contradições da sociedade pós-moderna, dinamizando a coexistência suave das antinomias: por um lado rejeita regras e imposições modernas e por outro lado impõem “regras” que assumem caráter social determinista; por um lado suaviza os costumes da maioria e por outro endurece as condutas criminosas, favorecendo o surgimento de ações bárbaras e estimulando a escalada aos extremos no uso da violência. Em muitos aspectos, o processo de personalização redefine a sociedade, dando uma importante contribuição para a efetivação da sociedade pós-moderna. Seu desenvolvimento, elevado ao extremo, configura aquilo que Lipovetsky denomina “hipermodernidade”.
1.1.3. A hipermodernidade
Neste item abordaremos alguns aspectos relevantes da hipermodernidade, como definição própria de Lipovetsky a respeito da sociedade atual, onde tudo se passa como se tivéssemos ido da era do pós para a era do hiper. As principais características da pós-modernidade, que suscitaram uma profunda reorganização no funcionamento das sociedades democráticas, agora se acentuam mais ainda. Dentre os aspectos que o autor aponta, destacam-se a expansão em larga escala do consumismo e da comunicação de massa, o enfraquecimento das normas autoritárias
(^52) Ibid., p. 110.
“Instalaram-se sociedades reestruturadas pela lógica e pela própria temporalidade da moda; em outras palavras, um presente que substitui a ação coletiva pelas felicidades privadas, a tradição pelo movimento, as esperanças do futuro pelo êxtase do presente sempre novo. Nasce toda uma cultura hedonista e psicologista que incita à satisfação imediata das necessidades, estimula a urgência dos prazeres, enaltece o florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do bem- estar, do conforto e do lazer”.^57
Essa consagração social do presente não se instaura pela falta de perspectiva de futuro ou pelo enfraquecimento da esperança, mas pelo excesso, pela saturação de ofertas e opções. Em busca de satisfação a todo momento, o sujeito assume a cultura do “tudo já”, sacralizando o gozo sem proibições. As religiões portadoras de esperanças futuristas perderam muito de seu vigor, e a obsessão com o tempo não se restringe à esfera do trabalho, agora submetido aos critérios de produtividade, mas abrange todos os aspectos da vida. O ritmo frenético predomina nas empresas, movidas pela concorrência globalizada e pelas exigências de curto prazo. É o reinado da urgência e da competição, que enlouquece o homem hipermoderno e o faz priorizar o urgente à custa do importante, a ação imediata à custa da reflexão, o acessório à custa do essencial.^58 Essa corrida contra o tempo atinge a todos, criando uma atmosfera de dramatização, de estresse permanente, bem como um conjunto de novas doenças e distúrbios psicossomáticos. Numa época de “agenda lotada”, a falta de dinheiro motiva menos queixa do que a falta de tempo. Os horários de trabalho, de estudo, férias, lazer, antes rígidos, se tornam flexíveis e podem ser negociados e ajustados aos interesses e necessidades individuais. Naturalmente, apesar dessa consagração do presente, nossa época não se restringe a um presente trancado em si mesmo, mas alimenta certa preocupação com o que está por vir.
“Nenhuma ‘destemporalização’ do homem: o indivíduo hipermoderno continua sendo um indivíduo para o futuro, um futuro conjugado na primeira pessoa. Outros fenômenos revelam os limites da cultura presentista. Ao mesmo tempo que a cultura liberacionista está fora de moda, manifestam-se numerosas formas de valorização do duradouro. Ainda que as uniões sejam mais frágeis e mais precárias, nossa época, apesar de tudo, testemunha a persistência da instituição
(^57) Ibid., pp. 60-61. (^58) Ibid., p.77.
do matrimônio, a revalorização da fidelidade, a vontade de contar com relações estáveis na vida amorosa. (...) A sociedade hipermoderna dá nova vida à exigência de permanência como contrapeso ao reinado do efêmero, tão causador de ansiedades”.^59
O homem hipermoderno não deixa de se preocupar com o futuro, e a fé no progresso não foi substituída pela desesperança ou pelo niilismo, mas por uma confiança instável e oscilante, em função das circunstâncias.^60 Embora tenha diminuído, o otimismo face ao futuro não está morto. Educação e saúde são aspectos que estão sempre em pauta. Muito cedo os jovens se mostram apreensivos com a escolha de instrução e profissão. Os pais, por sua vez, assimilaram as ameaças ligadas às desregulamentações hipermodernas e reconhecem que o prioritário é a formação com vistas ao futuro.^61 O que todos querem com a educação é “ser alguém na vida”, garantindo uma velhice tranqüila. Nesse intuito de viver mais e melhor, a saúde se torna uma preocupação onipresente para um número crescente de indivíduos de todas as idades. Assim, os ideais hedonistas foram suplantados pela ideologia da saúde e da longevidade. Em nome destas, os indivíduos renunciam maciçamente às satisfações imediatas, corrigindo e reorientando seus comportamentos cotidianos.^62 Sacrifícios, dietas, mudanças de atitudes e hábitos não visam satisfações imediatas, mas garantir uma vida mais saudável e longa. A própria medicina, na hipermodernidade, reorienta seu campo de ação, estimulando o monitoramento, os exames, a vigilância higienista, a modificação de estilos de vida. No entanto, essa obsessão narcísica com a saúde e a longevidade, embora esteja voltada ao futuro, visa estender ao máximo o presente. Se podemos dizer que nossa cultura não abriu mão do futuro, também devemos reconhecer uma latente valorização do passado, fenômeno mais hipermoderno que pós-moderno. Na onda do retrô, o antigo é venerado e o passado adquire dignidade. Ganha força um frenesi histórico-patrimonial com a proliferação de museus, restaurações, turismo cultural, obsessão comemorativa.
(^59) Ibid., p. 74. (^60) Ibid., p. 70. (^61) Ibid., p. 72. (^62) Ibid., pp. 72-73.