Docsity
Docsity

Prepare for your exams
Prepare for your exams

Study with the several resources on Docsity


Earn points to download
Earn points to download

Earn points by helping other students or get them with a premium plan


Guidelines and tips
Guidelines and tips

Economia Campesina na Amazônia: Atores, Territórios e Atributos, Study notes of Urban Services Design and Administration

Uma análise detalhada da economia campesina na Amazônia, incluindo atores, territórios e atributos. O artigo discute as trajetórias produtivas, como aquelas relacionadas à agricultura especializada, pecuária bovina e shifting cultivation. Além disso, ele aborda as políticas que podem dar uma função estratégica a esta economia na busca de desenvolvimento sustentável. Palavras-chave: Amazônia, economia campesina, trajetórias produtivas, desenvolvimento sustentável.

Typology: Study notes

2016/2017

Uploaded on 08/14/2021

neto-correa
neto-correa 🇬🇧

6 documents

1 / 22

Toggle sidebar

This page cannot be seen from the preview

Don't miss anything!

bg1
Paper do NAEA
Volume 29
Economia camponesa referida ao bioma da
Amazônia: atores, territórios e atributos1
Francisco de Assis Costa2
RESUMO
O artigo apresenta a economia camponesa que se destaca de outras formas camponesas
na Amazônia – de camponeses cujas estratégias se baseiam em maior especialização
agrícola ou pecuária –, porque nela se desenvolveram técnicas criticamente baseadas no
bioma amazônico. Após discorrer sobre seu importante crescimento na região norte nas
últimas duas décadas no que se refere ao valor da produção, à renda líquida, ao emprego
e ao acervo fundiário, descreverá as duas rotas de evolução técnica que a caracterizam,
as respectivas composições da produção e a distribuição e significado territoriais, com
comentários sobre os nexos industriais ai verificados. Ao final se indicarão políticas que
possam dar a essa economia referida ao bioma amazônico papel estratégico na busca de
um desenvolvimento com esperança de sustentabilidade.
Palavras-chave: Amazônia. Sistemas Agroflorestais. Camponeses. Trajetórias tecnológicas
na Amazônia.
_______________
1 Texto para subsidiar o Science Panel for the Amazon, 25 de agosto de 2020.
2 Professor Titular do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (GPDadesa-NAEA) e do Programa de Pós-Graduação
em Economia (PPGE) da Faculdade de Economia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16

Partial preview of the text

Download Economia Campesina na Amazônia: Atores, Territórios e Atributos and more Study notes Urban Services Design and Administration in PDF only on Docsity!

Paper do NAEA

Volume 29

Economia camponesa referida ao bioma da

Amazônia: atores, territórios e atributos

Francisco de Assis Costa^2 RESUMO O artigo apresenta a economia camponesa que se destaca de outras formas camponesas na Amazônia – de camponeses cujas estratégias se baseiam em maior especialização agrícola ou pecuária –, porque nela se desenvolveram técnicas criticamente baseadas no bioma amazônico. Após discorrer sobre seu importante crescimento na região norte nas últimas duas décadas no que se refere ao valor da produção, à renda líquida, ao emprego e ao acervo fundiário, descreverá as duas rotas de evolução técnica que a caracterizam, as respectivas composições da produção e a distribuição e significado territoriais, com comentários sobre os nexos industriais ai verificados. Ao final se indicarão políticas que possam dar a essa economia referida ao bioma amazônico papel estratégico na busca de um desenvolvimento com esperança de sustentabilidade. Palavras-chave: Amazônia. Sistemas Agroflorestais. Camponeses. Trajetórias tecnológicas na Amazônia.


1 Texto para subsidiar o Science Panel for the Amazon, 25 de agosto de 2020. 2 Professor Titular do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (GPDadesa-NAEA) e do Programa de Pós-Graduação em Economia (PPGE) da Faculdade de Economia da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Economia camponesa referida ao bioma da Amazônia: atores, territórios e atributos l 47 Paper do NAEA 2020, Volume 29, Nº 2

ABSTRACT

The article presents the peasant economy that stands out from other peasant forms in the Amazon - from peasants whose strategies are based on greater agricultural or livestock specialization - because their developments were critically based on the Amazon biome. After discussing its important growth in the northern region in the last two decades with regard to the value of production, net income, employment and the land tenure, the article will describe the two technical evolution routes that characterize it, the respective compositions of production and territorial distribution and significance, with comments on the industrial links found there. At the end, policies that can give this economy related to the Amazon biome a strategic role in the search for development with hope of sustainability will be indicated. keywords: Amazon. Agroforestry systems. Peasants. Technological trajectory in the Amazon.

Economia camponesa referida ao bioma da Amazônia: atores, territórios e atributos l 49 Paper do NAEA 2020, Volume 29, Nº 2 Sistemas Agroflorestais de tipo A: SAFs-A, o A indicando a agricultura como ponto de partida). Nisso consiste a base técnica do que chamamos aqui de economia camponesa referida ao bioma amazônico. Na seção 1, o texto apresenta essa economia no que se refere ao seu tamanho e crescimento agregados. Na seção 2, se distinguirão as rotas evolutivas dos SAFs-F e dos SAFs-A a ela inerentes, no que diz respeito à história de suas fundamentações técnicas e institucionais e à distribuição espacial de suas ocorrências. Na seção 3 se apresentará a estrutura da produção, destacando a relevância dos produtos e atividades agregadamente nos SAFs-F e nos SAFs-A. Por último, se tecerão considerações finais, inclusive indicativos de política.

TAMANHO E CRESCIMENTO

Os sistemas produtivos da economia camponesa referida ao bioma fundamentam uma economia rural de grande envergadura na Amazônia. No Censo de 2017, foram 199.855 mil unidades produtivas nesse padrão de convergência, ocupando uma área de 8,0 milhões de hectares (40,0 ha por estabelecimento), que empregavam 430 mil trabalhadores em toda Região Norte do Brasil^3 – dos quais, 92% aplicados como força de trabalho familiar. Houve um expressivo aumento em relação ao Censo de 2006, quando se contavam 138 mil estabelecimentos que controlavam 4,5 milhões de hectares (cada família com 32,5 ha) e empregavam 342 mil trabalhadores: mais ainda em relação a 1995, quando eram 131 mil estabelecimentos com 3,0 milhões de hectares. O número total de estabelecimentos de todo setor rural da Região Norte saiu de 443 mil em 1995 para 475 e para 547 mil estabelecimentos nos dois censos seguintes, e o volume total de empregos rurais, que 1995 era 1,9 milhões de ocupações, situou-se em torno de 1,3 milhões nos dois censos seguintes. O valor da produção rural da T2, em 2017, foi de R$ 4,8 bilhões de reais – era R$ 3,3 bilhões em 2006: um crescimento anual de 3,6%^4. Mesmo com o grande crescimento da importância das empresas patronais voltadas predominantemente para a pecuária de corte e para a soja, nas trajetórias tecnológicas Patronal.T4 e Patronal.T7, na classificação de Costa, nos trabalhos citados, verificado no período entre os censos como resultado de rápida expansão às taxas respectivas de 9,3% e 13,4% a.a., o peso da T2 na economia rural da região continuou expressivo, de 14,2% do total – fora de 20,8% em 2006 (ver Gráfico 2 e 3). 3 A delimitação estrutural dos diferentes grupos de estabelecimentos baseou-se na metodologia apresentada em Costa (2009; 2012b; 2020), que aplica análise estatística fatorial aos dados de produção dos Censos Agropecuários, compartidos entre estabelecimentos patronais e camponeses (familiares), associando os fatores resultantes aos tipos de trajetórias tecnológicas no rural amazônico. As trajetórias são dos seguintes tipos: as que resultam da convergência de sistemas camponeses de agricultura relativamente especializada (tipo T1, associado ao vetor ba- sicamente explicado pelo valor das culturas temporárias), ou com ênfase em pecuária bovina (tipo T3, associado ao vetor explicado pelo valor da produção da pecuária de leite e de corte), parcialmente orientadas por “shifting cultivation”, parcialmente definidas pelo “paradigma mecânico-químico” de produção agrícola que domina todas as trajetórias patronais: as voltadas para grãos (tipo T7, associado ao vetor explicado basicamente pelo valor da produção de culturas temporárias), para culturas permanentes e silvicultura (tipo T5, associado ao vetor explicado por culturas permanentes e silvicultura) e para pecuária de corte (tipo T4, associado ao vetor explicado basica- mente ). Os sistemas camponeses que se organizam como SAFs-A ou SAFs-F, seguindo um paradigma “agroecoló- gico” são os de tipo T2, associados ao vetor que se explica basicamente por extrativismo não madeireiro, culturas permanentes, silvicultura e culturas temporárias. Internamente a esse conjunto T2, os casos dominados por extra- tivismo não madeireiro são definidos como SAFs-F e por culturas permanentes, SAF-A (Costa, 2020). 4 Todos os valores monetários foram corrigidos para preços de 2019 pelo Índice Geral de Preços (IGP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Francisco de Assis Costa l 50 Paper do NAEA 2020, Volume 29, Nº 2 Gráfico 1 – Evolução de variáveis críticas da T2 na Região Norte em 1995, 2006 e 2017; as unidades estão entre parênteses, seguidas das taxas de crescimento das variáveis na seguinte sequência: entre 1995-2006, 2006-2017 e 1995- Fonte: IBGE, Censo Agropecuário de 2006 e 2017. Tabulação especial dos autores. Gráfico 2 – VBP das trajetórias tecnológicas na economia agrária da Região Norte em 1995, 2006 e 2017: valores absolutos em R$ bilhões a preços de 2019 e estrutura relativa em % do total; nas legendas, os percentuais se referem ao crescimento anual, respectivamente, no período de 1995 a 2006, 2006 a 2017 e 1995 a 2 017 Fonte: IBGE, Censo Agropecuário de 1995, 2006 e 20017.

Francisco de Assis Costa l 52 Paper do NAEA 2020, Volume 29, Nº 2 juntamente com o cupuaçu, taperebá, miriti e ingá. Ao lado disso, se constatava como parte das estratégias reprodutivas, uma produção para autoconsumo (não quantificada) de açaí, cacau, diversas frutas, pequenos animais e peixe, que garantia a reprodução das famílias com demonstrada eficiência reprodutiva. Em pesquisa de 1999^5 , o Grupo de Pesquisa Dinâmica Agrária e Desenvolvimento Sustentável do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (GPDadesa-NAEA- UFPA) obteve uma descrição, agora em nível meso, da economia camponesa de várzea de nove ilhas do município de Cametá. Revelaram-se convergências e complementaridades entre os estabelecimentos que compunham dois grupos distintos: os Ribeirinhos e os de Terra Firme. O grupo de Ribeirinhos , consoante às condições edafoclimáticas de suas posições territoriais, tinha como principal produto o açaí, do que produzia um excedente, ao passo que produzia farinha de mandioca em nível insuficiente para a sua demanda. Os estabelecimentos de Terra-Firme , ao contrário, produziam excedente de farinha e insuficiente açaí – as faltas e excessos sendo compensados em mercados locais de diferentes níveis. Ambos os grupos produziam proporções semelhantes de peixes e outras proteínas; ambos produziam cacau extrativo ou plantado, além de pimenta-do-reino como “bases de exportação" – itens nobres do portfólio de alternativas em suas relações com o mercado global, esta instituição do capitalismo. No intercâmbio entre os grupos, no mercado local, se realizava internamente ao território, entre as ilhas de Cametá, em complementaridade notável, uma “dieta tocantina” (ROGEZ, 2000), composta de açaí, farinha e peixe. Cada sistema, por sua vez, apresentava um portfólio de commodities (parcela da produção de açaí, cacau e pimenta do reino), com o que se acessava a produção do resto do mundo (ver Gráfico 10). Costa e Inhetvin (2005), em perspectiva ainda mais abrangente, descrevem esses arranjos como macro sistemas de várzea na Amazônia em 1995, o do Alto Solimões, os do Médio e Baixo Amazonas e o do Baixo Tocantins, demonstrando a dominância camponesa nessas áreas e a complementaridade entre várzea e terra firme em diferentes composições. Nas principais regiões de várzea do Pará, os sistemas camponeses do Baixo Tocantins distinguem- se dos do Baixo Amazonas, por exemplo, basicamente pelo grande presença do extrativismo de coleta (não madeireiro) no primeiro e de uma peculiar pecuária de várzea, na última. Tem-se avançado, também, nos últimos anos, na compreensão da dinâmica desses sistemas. O notável crescimento da produção do açaí, que, na economia baseada em bioma, saiu de 401,4 mil para 478,5 mil toneladas, nos anos de censo agropecuário, dependeu da elevação da eficiência no manejo das florestas de várzea em favor da palmeira do açaí e do plantio de novos pés de açaí em diferentes formas de adensamento da espécie. 5 A pesquisa alcançou 229 estabelecimentos. Financiada pelo Deutsh Entwicklung Dienst (DED), em coo- peração com a Federação de Órgão para Assistência Social e Educacional (FASE) e apoio da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Pará (FETAGRI), o intuito imediato do trabalho era subsidiar a avaliação do FNO Especial, cujos resultados foram publicados em Costa e Tura (2000) e Costa (2000). O Banco de Dados resultante encontra-se disponível no Grupo de Pesquisa Dinâmica Agrária e Desenvolvimento Sustentável, do NAEA (GPDadesaNAEA).

Economia camponesa referida ao bioma da Amazônia: atores, territórios e atributos l 53 Paper do NAEA 2020, Volume 29, Nº 2 Gráfico 3 – Distribuição relativa da produção de camponeses em Cametá, considerados seus sistemas “Ribeirinhos” e “Terra-Firme”, em 1999 (% do Valor Bruto da Produção, n=232) Fonte: Pesquisa de campo do GPDadesaNaea. O manejo dos recursos florestais, como dito acima, é capacidade ancestral das populações amazônicas. Estudos pioneiros do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG), descreveram na primeira metade dos anos noventa, práticas de produtores de açaí (ANDERSON, JARDIM, 1989; JARDIM, ANDERSON, 1987; ANDERSON et al., 1995), demonstrando padrões de manejo de açaizais nativos em que o aumento da produtividade de frutos requer a gestão de duas operações principais: a) o desbaste de estirpes altas, finas e com baixa produção de frutos, reduzindo a touceira a um número de 3 a 4 estirpes e b) o raleamento por corte ou anelamento de espécies arbóreas concorrentes sem, ou de menor valor econômico. Em uma avaliação mais precisa se verificou que quando apenas a operação a se realiza, a produtividade por estirpe cresce 50%, de 4,4 quilos para 6,6; se se realiza a operação b , a produtividade cresce adicionais 14%, de 6,6 para 7,5 quilos por estirpe (ANDERSON et al., 1995). Cria-se, na interação dessas duas variáveis, um campo de possibilidades de crescimento da produção e da produtividade na atividade extrativa. O crescimento da produção do açaí, no nível em que vem se verificando, dependeu da formação de novos açaizais, além da elevação da eficiência no manejo dos açaizais nativos mencionado. Como no caso da elevação da produtividade dos açaizais nativos, o conhecimento tácito dos camponeses, fundamente entranhado na cultura local, tem sido a base das mudanças que têm permitido a expansão, por plantio. Pesquisadores da Universidade de Indiana têm demonstrado como isso vem ocorrendo no Marajó, ao longo dos últimos vinte anos. Destacam a efetividade das técnicas aplicadas na formação dos “roçados de várzea”, os sistemas plantados de açaí: “Roçado de várzea é um sistema intensivo de combinação de culturas anuais, bianuais e permanentes em uma sequência espaço-temporal que se assemelha a estágios de sucessão secundária” (BRONDIZIO, 2008, p. 218). O sistema inicia com o plantio de culturas anuais de ciclos curtíssimos, como jerimum e pepino, juntamente com culturas anuais de ciclo mais longo, como arroz e milho, associado com banana, cana de açúcar, açaí e essências florestais. Logo no segundo mês, ocorre a colheita de jerimum e pepino, com mais quatro meses colhe-se o arroz e o milho; no final

Economia camponesa referida ao bioma da Amazônia: atores, territórios e atributos l 55 Paper do NAEA 2020, Volume 29, Nº 2 Gráfico 4 - Macrossistemas de Várzea do Pará: Baixo Amazonas e Baixo Tocantins, 1995 Fonte: Costa e Inhetvin, 2012. Baixo Amazonas: Juruti, Oriximiná, Óbidos, Alenquer, Santarém, Monte Alegre, Prainha, Almeirim, Gurupá; Baixo Tocantins: Baião, Mocajuba, Cametá, Oeiras do Pará, L. do Ajuru, Igarapé-Miri, Abaetetuba.

Francisco de Assis Costa l 56 Paper do NAEA 2020, Volume 29, Nº 2 Gráfico 5 – Valor Bruto da Produção Rural (VBPR) dos SAFs-F da economia baseada em bioma na Amazônia (R$ 1.000) Fonte: IBGE, Censo Agropecuário de 2017.

Francisco de Assis Costa l 58 Paper do NAEA 2020, Volume 29, Nº 2 fazia experimentos há mais de trinta em seu lote com essas espécies, além de cacau, urucu, guaraná e pimenta do reino, da qual foi o verdadeiro introdutor em Tomé-Açú; a família Sakagushi, outra pioneira, desenvolveu técnicas de plantio de cacau nativo utilizando árvores altas locais, como a andiroba, para sombreamento; por seu turno, a família Kusano desenvolveu, utilizando o mesmo método de plantio de Sakagushi, uma variedade de cacau híbrido que se disseminou em Tomé-Açú; os Yokokura, utilizando o aprendizado dos vizinhos Kusano com o cacau, desenvolveram os primeiros plantios de cupuaçu, também resistentes à vassoura de bruxa; Takuri Maki, a sua vez, foi pioneiro no plantio de freijó e macacauba, duas espécies madeireiras que vieram a se tornar muito valorizadas no sombreamento de cacau e do cupuaçu. Essa cadeia de eventos resultou em um vívido sistema local de inovação, que até a segunda metade dos anos noventa havia gerado 300 combinações policulturais utilizando 70 diferentes espécies (YAMADA, 1999). Pesquisadores descreveram nessa época os estabelecimentos rurais de Tomé-Açú compondo uma paisagem irregular, na qual espécies de diferentes idades se faziam presentes em uma variedade de combinações consorciadas. Um ponto destacado é o de que as sequências de culturas se assemelhavam à s ucessão natural do bioma , passando dos estágios herbáceo para o arbóreo e permitindo o uso permanente dos campos agrícolas (SUBLER, UHL, 1990; SERRÃO, HOMMA, 1993; SUBLER, 1993). Um desses sistemas, com idade de 25 anos e combinando cacau e diferentes espécies arbóreas, pesquisado por Yamada (1999), por exemplo, imita rigorosamente um estágio avançado de sucessão florestal, produzindo 250 toneladas métricas por hectare de biomassa acima da superfície – nada menos que 2/3 da produção da floresta primária na mesma região (TEIXEIRA et al., 1994). As colonizações da Transamazônica e de Rondônia apresentam roteiros com desfechos equivalentes no que se refere à experimentação e formação de SAFs-A. Na primeira década da colonização, o principal produto entre os camponeses numa colonização como na outra era o arroz plantado como monocultura. O rápido esgotamento do solo por lixiviação levou a uma primeira crise, por redução de produtividade (SMITH, 1978). Ainda nos anos setenta e início dos anos oitenta, a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (CEPLAC) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) promoveram, em substituição ao arroz, as monoculturas de cacau e do café nas terras altas da Amazônia, particularmente na Transamazônica e em Rondônia. No final dos anos oitenta abateu-se sobre os camponeses dessas áreas uma nova crise, agora provocada pela queda acentuada dos preços dessas commodities. Smith et al. (1996) indicaram três caminhos possíveis nessas áreas: o abandono dos plantios solteiros, ou sua manutenção mínima, até que uma elevação dos preços voltasse a justificar seu trato; a substituição das culturas por outras mais promissoras ou por pastagem e gado e, por fim, um terceiro caminho seguido por muitos: o consórcio de cacau ou café com outras plantas perenes. Nesse processo, desenvolveu-se uma grande variedade de sistemas envolvendo cacau e café. As espécies de frutas consorciadas com cacau incluíam açaí, biribá e manga; com o café, abacaxi e tangerina. Nesse contexto, as árvores de madeira constituíam investimento à longo prazo das famílias: mogno, cedro, freijó, ipê e pinho cuiabano, foram indiferentemente utilizadas em consórcios com cacau e café na Transamazônica e em Rondônia. O censo de 2017 registrou 106 mil estabelecimentos que estatisticamente correspondiam às características dessa rota agroflorestal, de SAFs-A, com um valor bruto da produção de R$ 3,2 bilhões, ou 59,5% do valor da produção da economia baseada em SAFs, distribuídos em 136 municípios da região, dos quais em 52 deles representavam acima de 50% da economia rural local (Gráfico 7).

Economia camponesa referida ao bioma da Amazônia: atores, territórios e atributos l 59 Paper do NAEA 2020, Volume 29, Nº 2 Gráfico 7 – Valor Bruto da Produção Rural (VBPR) dos SAFs-A da economia baseada em bioma na Amazônia (R$ 1.000) Fonte: IBGE, Censo Agropecuário de 2017.

Economia camponesa referida ao bioma da Amazônia: atores, territórios e atributos l 61 Paper do NAEA 2020, Volume 29, Nº 2

O QUE SE PRODUZ NA ECONOMIA BASEADA EM BIOMA NA

AMAZÔNIA

A linha que separa o extrativismo de coleta e as culturas permanentes é tênue nos sistemas da economia baseada em bioma, particularmente nos SAFs-F. Esses dois grupos de produtos representavam em 2017 em conjunto 31% do valor bruto da produção da economia em tela, respectivamente, 17% e 14% (Tabela 1). Nos SAFs-F destaca-se o açaí, manejado na várzea e, plantado, em terra firme (BRONDIZIO, 2008; COSTA, COSTA, 2007). Em 2017, a economia camponesa dos SAFs, ora discutida, produziu 70,5% das 255,3 mil toneladas de açaí plantado e 76,2% das 391,7 mil toneladas de açaí extrativo produzido em toda Região Norte. Ao todo, 478,6 mil toneladas, do total de 647, mil toneladas (74%). Os valores associados a tais produções cresceram substancialmente entre os censos: no total, de R$ 0,66 para R$ 1,58 bilhões de reais de um censo para o outro. Tabela 1 Composição da produção da economia baseada em biomas da Amazônia por grupos de culturas e atividades – Valor da Produção em R$ de 2019 2006 2017 2006 2017 Culturas Temporarias 1.991.961 1.204.868,11 50% 24% CulturasPermanentes 932.886 861.347 23% 17% Extrativismo de Coleta 404.654 695.643 10% 14% PecuáriaBovina 290.869 1.517.577 7% 31% Extrativismo madeireiro 203.138 (^) 4.419 5% 0% Outros 197.757 644.546 5% 13% Total 4.021.266 4.928.402 100% 100% Fonte: Censo Agropecuário de 2006 e 2017. Associada à produção de açaí há uma economia urbana, industrial e de serviços, produzindo e distribuindo polpa, alimentos processados e palmito que tem crescido rapidamente: o Valor Adicionado de produção de polpas cresceu a 7,4% ao ano, atingindo R$ 2,9 bilhões em 2011: R$ 2,6 bilhões de polpa e R$ 0,3 bilhões de palmito (ver Gráfico 7). O emprego atingiu 125,2 mil postos de trabalho, sendo 102 mil rurais e 23,2 mil urbanos, da indústria e do comércio (Gráfico 8).

Francisco de Assis Costa l 62 Paper do NAEA 2020, Volume 29, Nº 2 Gráfico 7 – Valor Adicionado Total da produção de polpa e palmito e açaí no Pará (1995-2011), estimativa em R$ 1.000.000,00 de 2018 Fonte: Costa, 2016. Gráfico 8 – Número de ocupações na produção rural de açaí e industrial de polpa e palmito no Pará (1995-2011), estimativa em milhares Fonte: Costa, 2016. Nos SAFs-A destacam-se as culturas permanentes do açaí e do cacau, que sofreram incremento extraordinário em relação a 2006. Ressalta, por sua vez, a produção extrativa do açaí e da castanha do Pará, significativas para SAFs-F no Sudeste Paraense, no Baixo Tocantins e no Acre. O crescimento no valor desse produto foi de 72% em relação a 2006 (Gráfico 9). As culturas temporárias são muito importantes na economia baseada em bioma, representando, em 2017, 24% do valor da produção. Destaca-se, aqui, a farinha de mandioca, que se agrega ao açaí e ao peixe na “dieta tocantina” (ROGGÉ, 2000), profundamente estabelecida na região do Baixo Tocantins, na Região Metropolitana de Belém e no arquipélago do Marajó (Gráfico 9).

Francisco de Assis Costa l 64 Paper do NAEA 2020, Volume 29, Nº 2

  1. O momento ascendente se associa a cadeias de valor nas quais arranjos industriais vêm se constituindo com o protagonismo marcante de uma indústria que cresce rapidamente voltada para o processamento do açaí, do cacau, de óleos e cosméticos. Dessas, há estimativas confiáveis apenas para o açaí: o Valor Adicionado Total tem crescido até 2011 a 7,4 a.a. e o relativo à produção de polpa a 13,2% a.a.; o emprego total a 12,2% a.a. e o urbano a 16,2% a.a.
  2. O conhecimento que permite a exploração eficiente e sustentável dos recursos do bioma por esses camponeses se constitui, em grande medida, de repertórios culturais herdados, de capacidades tácitas. Porém, uma estratégia de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) é necessária visando novas competências em três frentes: a rural, a logística e a da produção industrial, visando um futuro que, por resguardar as capacidades do bioma amazônico, ofereça vida digna aos que com ele interagem em seus processos produtivos e reprodutivos.
  3. Na dimensão rural: a. Desenvolver conhecimentos de base e aplicados que foquem os sistemas produtivos (SAFs-F e SAFs-A) e suas ecologias de reprodução em longa duração – ao invés da tradição agronômica de conhecimento orientado para produtos individualizados com vista à maximização de curto prazo. b. O conhecimento ajustado às necessidades dessa economia com grande esperança de sustentabilidade terá que ser amoldado aos diferentes territórios – ao invés da tradição da pesquisa agronômica que busca padrões generalizáveis, com ajustes apenas ao sistema edafo-climático. c. O conhecimento ajustado terá que ter ênfase biológica- ao invés da tradição agronômica da ênfase mecânico-química.
  4. Na dimensão logística: a. Os estabelecimentos da economia em questão operam em vastas áreas – a unidade fundiária (o lote) é apenas um ponto do espaço bem mais amplo onde opera a família camponesa. Há questões de mobilidade próprias desse processo produtivo que devem ser enfrentadas como problemas tecnológicos. b. A logística que articula a produção com os mercados constitui campo próprio a requerer soluções tecnológicas de diversos tipos, a depender da extensão das suas cadeias: os SAFs lidam com as cadeias longas (mundiais) de cacau, pimenta-do-reino e açaí, cadeias médias (nacionais) do açaí e cadeias curtas (locais) também do açaí e de uma multidão de produtos.
  5. Na dimensão industrial: a. Quanto aos fundamentos produtivos: desenvolver uma linha de investigação tecnológica relativa a equipamentos e meios de produção ajustados às necessidades da produção da economia baseada em bioma; b. Há um conjunto de necessidades ligadas à química dos produtos e ao desenvolvimento de aplicações na indústria de alimentos, na cosmética e na farmacêutica.

Economia camponesa referida ao bioma da Amazônia: atores, territórios e atributos l 65 Paper do NAEA 2020, Volume 29, Nº 2

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATAGANA, A.; KHASA, D.; CHANG, D.; DEGRANDE, A. Major agroforestry systems of the humid tropics. In: Atangana, A.; Khasa, D.; Chang, D.; Degrande, A. Tropical agroforestry. Dordrecht, Springer+Business Media, 2014. p. 35-47. BRONDÍZIO, E. S. The Amazonian caboclo and the açaí palm : forest farms in the global market. Nova York: The New York Botanical Garden Press, 2008. 403 p. (Advances in economic botany, 16). CASTRO, F. F. A identidade denegada: Discutindo as representações e a autorrepresentação dos caboclos da Amazônia. Revista de Antropologia , São Paulo, USP, v. 56 nº 2, 2013. P. 451-475. CHAYANOV, A. Die lehre von der bäuerlichen Wirtschaft : Versuch einer Therie der Familienwirtschaft in Landbau. Verlag Paul Parey, Berlin, 1923. COSTA, F. A. Mudança estrutural na economia agrária da Amazônia: uma avaliação inicial usando os censos agropecuários (1995, 2006 e 2017). Boletim Regional, Urbano e Ambiental. Brasília, IPEA, 2020. (número especial in print). COSTA, F. A. Trajetórias tecnológicas como objeto de política de conhecimento para a Amazônia: Uma metodologia de delineamento. Revista Brasileira de Inovação , v. 8, 2009. p. 287-312. COSTA, F. A. O Investimento Camponês: Considerações Teóricas. Revista de Economia Política , São Paulo, v. 15, n.1, 1995. p. 83-100. COSTA, F. A. Economia camponesa nas fronteiras do capitalismo : teoria e prática nos EUA e na Amazônia Brasileira. 1. ed. Belém: NAEA, 2012a. COSTA, F. A. Elementos para uma economia política da Amazônia : historicidade, territorialidade, diversidade, sustentabilidade. 1. ed. Belém: NAEA, 2012b. COSTA, F. A. Dinâmica Agrária na Amazônia, Situação Reprodutiva e Pobreza: Uma contextualização estrutural. In: MIRANDA, C., TIBURCI, B., BAUAINAIN, A. M., DEDECCA, C. (Org.). A Nova Cara da Pobreza Rural : Desenvolvimento e a questão regional. 1ed. Brasília: IICA, 2013. p. 111-182. COSTA, F. A. Notas sobre uma Economia Importante, (Super) Verde e (Ancestralmente) Inclusiva na Amazônia. In: AZEVEDO, A., CAMPANILI M., PEREIRA, C. (Org.). Caminhos para uma Agricultura Familiar sob Bases Ecológicas : Produzindo com Baixa Emissão de Carbono. 1ed. Brasília: IPAM, 2015. p. 51-72. COSTA, F. A. A Brief Economic History of the Amazon (1720-1970). New Cassel upon Tine, Cambridge Scholars Publishing, 2019.